Este texto e essas fotos estão no meu livro e provavelmente também no livro do Durango Duarte porque são de domínio público.
No dia 4 de abril de 1953, a revista semanal O Cruzeiro, publicava a matéria “27 Homens nos Bancos dos Réus”, com texto de Weselys Braga e fotos de Óscar Ramos e Flávio Damm:
Foi realizado em Manaus o julgamento dos choferes implicados no trucidamento do estudante Delmo Campelo Pereira, na noite de 5 de fevereiro de 1952, numa estrada deserta. Dos 54 homens que atraíram a vítima, somente 27 participaram dos bárbaros acontecimentos – o maior processo criminal do Brasil.
Ali se encontravam os culpados: vinte e sete ao todo. Nunca, na história criminal brasileira, foram levados ao banco dos réus, de uma só vez, tantos homens. Mas eles eram como uma única pessoa: estavam englobados num mesmo drama de sangue, ódio e vingança.
Tudo começou na noite do dia 31 de janeiro de 1952, em Manaus. A maior parte da população dormia, mas muito dos habitantes da cidade se conservavam acordados, entregues aos seus afazeres noturnos. Entre eles havia dois: José Firmino e José Honório. O primeiro, no seu posto de vigia, montando guarda nos portões da serraria Pereira. O segundo, debruçado no volante do seu carro de praça, a espera de algum freguês retardatário. Ambos, porém, marcados por um destino comum, não imaginavam estar com as horas contadas: uma terceira pessoa, dali a algumas horas, iria dar-lhes cabo da vida.
Era o estudante Delmo Campelo Pereira, filho do proprietário da serraria. Saíra de casa com o intuito de conseguir dinheiro, a fim de satisfazer o pagamento das mensalidades atrasadas de um clube onde pretendia brincar durante o carnaval. Mas em que lugar arranjar esse dinheiro e como? Delmo fazia a si próprio essa pergunta e, ante a impossibilidade de encontrar para ela uma resposta imediata, teve a idéia de assaltar a serraria de seu pai, à qual fora recolhida, naquele dia, uma vultosa importância.
Em frente a um botequim, Delmo apanhou o carro de chapa 279, um Hudson verde, que era justamente o que o chofer José Honório dirigia. Entrou e deu o endereço:
– Serraria Pereira.
Ali chegando, Delmo mandou o taxista esperar e, dando uma volta pelo barranco, para não despertar suspeitas, foi ao encontro de José Firmino, a quem pediu para entrar na serraria, sob a alegação de que no interior da mesma havia um começo de incêndio.
A princípio, o vigia relutou, dizendo que a notícia do incêndio não tinha fundamento, pois momentos antes dera uma busca em todo o prédio, nada encontrando de anormal.
Delmo fez novas tentativas para conseguir seu intento, até que, convencido da impraticabilidade de persuadir José Firmino a deixá-lo entrar por bem, resolveu abrir caminho à força. Munido de uma possante chave americana, agrediu o vigia pelas costas, vibrando-lhe profundos golpes na cabeça. Colhido de surpresa, pois não imaginava que o filho do patrão chegasse aquele extremo, José Firmino não teve tempo de esboçar nenhum tipo de reação.
Depois de esconder o corpo do vigia por detrás de alguns tambores de óleo, Delmo entrou na serraria e de novo voltou ao automóvel, mandando então que o chofer José Honório fosse direto para o Cabaré de Flores, distante da cidade dez quilômetros. Na verdade, Delmo estava convencido de que o taxista percebera tudo. E o medo ditava-lhe a única solução: eliminar a testemunha de seu covarde ato.
Ao chegar nas vizinhanças do cabaré, pediu ao chofer para passar pela estrada de Campos Sales, alegando que nas proximidades havia a chácara de um amigo com quem marcara um encontro. O carro prosseguiu viagem e, a três quilômetros do cabaré, Delmo mandou José Honório parar o carro, sob o pretexto de que precisava satisfazer a uma necessidade. O chofer atendeu, e Delmo, saltando, dirigiu-se a uma das margens da estrada e se pôs de cócoras.
Na serraria ele não conseguira obter dinheiro – mas encontrara um revólver calibre 38. Colocando-o por baixo da roupa, em posição de alvejar, chamou em seguida o chofer, pedindo-lhe um pedaço de papel. O chofer atendeu-o e, ao voltar para o carro, o estudante desferiu-lhe dois tiros pelas costas. Embora mortalmente ferido, José Honório conseguiu atingir o automóvel – mas logo Delmo, correndo para ele, deu-lhe mais dois tiros através de uma das portas traseiras do carro, matando-o. Carregou em seguida o corpo do chofer, atirando-o contra uma cerca de arame farpado, à margem da estrada.
Pela manhã, a cidade acordou abalada com a notícia dos dois crimes. Particularmente a classe de choferes, em número aproximado de dois mil homens, ficou chocada com o assassínio de José Honório, dando mesmo mostras de uma revolta generalizada. Enquanto isso, Delmo Pereira procurou o pai, confessando-lhe a autoria dos crimes. Para surpresa sua, porém, o vigia não morrera. Tendo procurado a polícia, revelara o nome do agressor, acrescentando que havia mais dois cúmplices e outro caminho não restou a Delmo senão entregar-se às autoridades.
Ante os múltiplos e contraditórios depoimentos do estudante, que ora admitia, ora negava a participação de outros elementos no assalto, as investigações se tornaram difíceis. Em virtude da lentidão dos trabalhos da polícia, a União Beneficente dos Choferes do Amazonas, por seus numerosos representantes, pediu ao governador a demissão do chefe de Polícia, Rocha Barros, único responsável, segundo alegavam, pela demora no esclarecimento dos fatos. Já então, diariamente, a imprensa e o rádio verberavam a incoerência dos depoimentos de Delmo e, ao mesmo tempo, que a frieza por ele manifestada em face dos acontecimentos.
De qualquer forma, as investigações prosseguiam. Para fazer o preso falar a verdade, a polícia recorreu à aplicação de Penthotal e Seopolamina – ou seja, o “Soro da Verdade” –, sem nenhum resultado, entretanto. Fracassada mais essa tentativa da polícia para fazer vir a lume a realidade dos fatos, os choferes se impacientaram mais ainda, a ponto de acreditarem que Delmo tinha cúmplices dentro da própria polícia.
No quinto dia depois da morte do chofer José Honório, Delmo seria reconduzido do Serviço de Socorros de Urgência (onde recebia a aplicação do “Soro da Verdade”) para a polícia, de acordo com instruções do Dr. Rocha Barros. Era ao cair da noite. Pouco antes de se fazer a transferência do preso, o padre João Batista Rottine, a pedido do próprio Delmo, o ouvira em confissão.
Finalmente, a ambulância partiu, guarnecida apenas por um investigador que, por sinal, estava desarmado. Em frente aos Cinemas Guarani e Polytheama, nas proximidades da Polícia Militar e não muito distante da Polícia Civil, a ambulância, que já vinha em marcha lenta, parou de repente, sendo então assaltada por um grupo de taxistas exaltados.
Arrancado o preso do interior do carro, foi ele conduzido, num dos automóveis mobilizados pelos choferes, para o local denominado Baixio dos Franceses, distante vários quilômetros da cidade, à margem da estrada de São Raimundo. Era um lugar de acesso tão difícil que os carros não puderam chegar até lá – não só o que conduzia o preso, como também os demais que o tinham seguido. E ali se consumou a tragédia. Os choferes, na ânsia de vingarem a morte do colega, se atiraram como chacais contra o estudante. E Delmo terminou então os seus dias de vida, depois de barbaramente espancado e seviciado.
Mesmo para pessoas afeitas a presenciar cenas de barbaridade, o cadáver de Delmo não podia ser contemplado sem piedade. Nu da cintura para cima, apresentava em todo corpo os vestígios da tortura sofrida nas mãos de seus algozes. Pelo tórax, havia equimoses de chicotadas desferidas com fios de eletricidade. Não ficara uma só parte do seu corpo, por pequena que fosse, que não tivesse a marca do espancamento mortal. Mas havia algo mais terrível ainda: o tronco do estudante fora aberto de alto a baixo, do umbigo até o pescoço. Na sua impaciência, na sua febre de fazer justiça com as próprias mãos, os choferes tinham cometido o mais monstruoso assassinato de que se tinha notícia no Brasil.
As autoridades ainda surpreenderam alguns motoristas nas imediações do local do crime. Em sinal de protesto, os estudantes desfilaram pelas ruas. O Exército e a polícia montaram guarda em todas as escolas. E a opinião pública sofreu completa reviravolta. Em meio ao pânico reinante, Delmo fora transformado em mártir e o povo esqueceu completamente o seu passado e os seus crimes.
Inúmeras prisões foram então efetuadas. Depois, serenados os ânimos, com Manaus reintegrada na sua tranqüilidade habitual, os dias seguintes se incumbiram de elucidar os fatos. Silvio Alves de Oliveira, chofer da ambulância, e que entregou Delmo aos seus algozes, não resistiu ao remorso de sua insensata solidariedade com a classe e suicidou-se cinco dias após ser preso.
Com o decorrer do processo – o maior processo criminal verificado no Brasil – e já com várias autoridades substituídas, 17 choferes foram impronunciados pelo juiz Ernesto Roessing, permanecendo na penitenciária os demais 27 que agora compareceram às barras do tribunal, no mais apaixonante júri popular de que se tem notícia.
Os estudantes amazonenses, que desde o massacre se movimentaram em massa pela punição dos choferes acusados, trouxeram a Manaus, para funcionar junto à Promotoria, na acusação, o advogado carioca Celso Nascimento. Conhecedor profundo dos autos (oito volumes com cerca de duas mil páginas datilografadas), o promotor Domingos de Queiroz teve uma impressionante atuação ao lado de seu colega ilustre.
Na defesa, lutando por uma causa ingrata, funcionaram os Drs. Manuel Barbuda, Nonato de Castro e Milton Assensi, sendo, os dois primeiros, professores de Direito Penal. Dentre os 27 choferes implicados no massacre, três foram defendidos pelos advogados Adriano Queiroz, Ligier Herculano e Rodolfo Martins.
No fim, com o pronunciamento do Conselho de Sentença, era este o resultado, pela ordem:
Condenados: Francisco de Souza Marques, vulgo “X-9”, 12 anos de reclusão; Vicente Gonçalves de Alencar, 20 anos de reclusão; Jorge de Souza, Joaquim Vieira da Mota, vulgo “Joaquim Mecânico”, Pedro de Farias e João Hipólito Bulhões, respectivamente, 12, 14, 12 e 14 anos de reclusão; Felismino da Silva, vulgo “Nego Chico”, 12 anos de reclusão; Pedro Gomes de Souza, vulgo “Mala Velha”, 20 anos de reclusão; Severino Gabriel da Silva, vulgo “Tambaqui”, 22 anos de reclusão; Francisco Ribeiro dos Santos, vulgo “Toba de Vaca”, 20 anos de reclusão; Mário Ribeiro de Souza, vulgo “Mário Trezentos”, 25 anos de reclusão; Benori Alencar Linhares, 20 anos de reclusão; José Cesário de Oliveira, 28 anos de reclusão; Ludgero Sarmento, vulgo “Carioca”, 30 anos de reclusão; Aurino do Espírito Santo Silva, vulgo “Santo Pobre”, 27 anos de reclusão; Luiz Azevedo da Silva, vulgo “Mal de Vida”, 26 anos de reclusão; João Brito Teixeira, vulgo “Pirolito”, 20 anos de reclusão; Manuel Rodrigues Cruz, 28 anos de reclusão, perfazendo um total de dezoito condenados.
Absolvidos: Carlos Gomes de Farias e Sebastião da Silva Pardo, por unanimidade de votos; Orlando Marreiro Lúcio, Guilherme Monteiro da Silva, Newton Palmeiras, Silas Araújo, João Jovino Borges, Luiz Albano da Costa e Helvídio Alves de Oliveira, por maioria de votos, totalizando nove absolvidos.
Depois de tudo isso, perdura ainda a dúvida: teria o estudante Delmo agido sozinho ou com a cumplicidade de outros, conforme alegou em um dos seus contraditórios depoimentos, confirmado pelo vigia? As duas pessoas que poderiam esclarecer definitivamente a verdade estão mortas: o chofer José Honório e o próprio Delmo. Há ainda uma terceira pessoa, mas esta não o poderá fazer, por um imperativo da religião: o padre João Batista Rottine, que ouviu Delmo em confissão, na noite em que ele iria perder a vida de maneira tão brutal.
Um comentário:
Para mim, que tantas historias escutei de meu pai e meu irmão, que tenho na memória apenas a opinião de que Delmo nao passou de um ladrão e assassino, que algumas pessoas gostam de tachar de "estudante", só se fosse estudante do crime. Apenas acho que não deveria ser feita justiça com as proprias mãos.
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http://simaopessoa.blogspot.com.br/2011/07/caso-delmo-27-homens-nos-bancos-dos.html)