Andar pelo centro das grandes cidades é um exercício que demanda paciência e coragem.
Andar pelo centro das grandes cidades é um exercício que demanda paciência e coragem.

Margarete Hülsendeger 

Andar pelo centro das grandes cidades é um exercício que demanda paciência e coragem. Ruas cheias de gente a qualquer hora do dia transformam qualquer pedaço de calçada num ringue de boxe. São inevitáveis os encontrões e empurrões. E nesse intercurso, até a boa educação fica esquecida. Afinal, se realmente quiséssemos exercitar as boas maneiras recebidas de nossos pais, ficaríamos a maior parte do tempo repetindo:

“Desculpe, foi sem querer”. 

E quando se trata de sair da calçada apinhada e atravessar a rua, aí a coisa realmente fica difícil.

Hoje, os grandes centros urbanos têm investido em grandes e largas avenidas, com o objetivo de dar vazão a uma frota de veículos cada vez maior. Assim, enquanto os automóveis recebem espaços cada vez maiores, os pedestres acabam ocupando espaços cada vez menores. Calçadas estreitas e avenidas largas tornaram-se uma combinação praticamente mortal para qualquer pessoa menos atenta.

Quando o sinal fecha apenas alguns segundos nos separam de um possível atropelamento. Não há tempo para grandes reflexões e muito menos para passeios. Inclusive, para muitos motoristas – mais do que seria razoável ou prudente – o sinal vermelho é apenas um pequeno detalhe fácil de ser esquecido. Nem mesmo quando existe faixa de segurança isso é levado em consideração. Assim, o pedestre, ao atravessar uma rua, precisa confiar não só na legislação, mas também no equilíbrio mental dos motoristas. No entanto, todos sabem que bom senso é um artigo em falta e o respeito às leis é algo que, na mente de muitos, é mera peça de ficção. Portanto, o recurso é “acelerar” sem olhar para os lados.

Contudo, às vezes nos deparamos com situações que nos levam a acreditar na existência de uma luz no final do túnel. E eu vi essa luz!

Outro dia deixei o carro na garagem e fui de ônibus até um compromisso um tanto quanto longe da minha casa. Vivi um daqueles momentos politicamente corretos: colaborar com a preservação da camada de ozônio do nosso planeta. Desacostumada a utilizar esse meio de transporte, aconteceu o inevitável: acabei me atrasando. Para complicar as coisas, a parada do coletivo ficava a duas quadras do meu compromisso e, entre elas, uma grande e larga avenida.

Com os olhos no relógio, corri por toda a primeira quadra. Quando me aproximei da avenida, percebi que o sinal estava verde para os pedestres. Há quanto tempo, eu não sabia. A prudência aconselhava que eu aguardasse. Nervosa decidi atravessar. Apressei o passo e rezei para o sinal não abrir no meio do caminho. Foi quando me deparei com uma cena atípica para os dias conturbados de hoje. Enquanto corria para salvar a minha vida (física e profissional), uma senhora, no sentido contrário ao meu, atravessava a avenida como se nada existisse além dela. Não havia medo ou susto em seu olhar. Com um andar calmo e seguro, olhava em frente, desconsiderando o rugido dos aceleradores.

Quando já estava segura do outro lado, não resisti à curiosidade e me virei para observá-la. Foi nesse momento que o sinal resolveu passar do vermelho para o verde. Apreensiva, vi que a senhora não alterou o passo mantendo-o lento e cuidadoso. Fiquei apavorada. Entretanto, para minha surpresa e alívio, nenhum – repito, nenhum! – veículo se moveu. Todos esperaram que ela chegasse em segurança na calçada. Ao presenciar tal cena, quis aplaudir, mas me faltou coragem.

“Aplaudir o quê?”, poderão se perguntar. Não sei ao certo, talvez a vitória da dignidade. Ou, quem sabe, da boa educação, finalmente transparecendo nas ações de pessoas anônimas. Não sei. Só tenho certeza que foi uma cena linda de se ver.

A senhora eu não sei quem é, muito provavelmente nunca mais a encontre. Porém, com seu silêncio e seu passo decidido, foi a protagonista de um episódio carregado de significados. A convivência baseada no respeito é possível. Esperar alguns segundos para pisar o pé no acelerador e sair literalmente voando é possível. Compreender que os mais velhos são de uma época na qual toda essa pressa e loucura não eram comuns, é possível.

Comportarmo-nos com educação e gentileza, é possível. É possível...

Entretanto, apesar de todas essas possibilidades reais e facilmente alcançáveis, é preciso reconhecer que estamos longe de atingi-las. Infelizmente, esse episódio pode ser considerado um momento raro na nossa vida em sociedade. Logo, recomendar o tipo de comportamento assumido por essa senhora não me parece muito seguro.

Assim, sinto-me na obrigação de aconselhar que, com toda a dignidade possível, continuemos atravessando as ruas e avenidas a um passo ligeiro. Não há como saber que tipo de pessoa estará atrás do volante pronta para arrancar. É triste, eu sei. Uma espécie de anticlímax para tudo o que até agora narrei, mas essa é a nossa realidade. E enquanto ela não se modificar, todo o cuidado é pouco. Mas lembrem: há, sim, uma luz no final desse túnel. E essa luz eu a vi personificada em uma senhora, de cabelos brancos e andar nobre, atravessando uma avenida de Porto Alegre.