SILVERIO NERY

SENADOR DR. SILVERIO JOSÉ NERY


Raul de Azevedo


Na galeria dos homens notáveis da Amazônia de certo tem lugar de destaque o sr. Silvério Jose Nery. Amazonense. Pertencia a uma família de talentos e cultura, dominando intelectualmente a figura do seu irmão o Barão de Sant'Ana Nery, jornalista e escritor dos melhores. Deixou este alguns livros de valor inconteste, principalmente Les pays des Amazones, traduzido em diversas línguas. Escreveu durante 20 anos de Paris para 0 Jornal do Commercio, os seus saborosos folhetins Ver, Ouvir e Contar.
Por que não se reunir em volumes esses rodapés, tão cheios de graça e ironia?
Silverio Jose Nery teve também outro irmão de relevo no Pais, 0 General Constantino Nery. Fez a campanha de Canudos deixando um livro forte sobre o assunto que então abalou a Nação. Foi Governador do estado do Amazonas e Senador da Republica.
Um dos seus irmãos mais notáveis foi dr. Marcio Nery, medico, cientista de relevo invulgar. É um nome que merece o respeito do Brasil. Psiquiatra de fama mundial, ele dirigiu com saber o Hospício de Alienados. Dedicando-se aos problemas sanitários, sobre este assunto e outros, deixou diversos estudos e monografias, livros, relatórios e ensaios.
Onde esta o melhor trabalho feito até hoje sobre o problema sanitário do Amazonas, e da sua autoria? E necessário que esse estudo, escrito depois de centenas de pesquisas, apareça para orientar o Governo do Pais, de acordo com a boa vontade do mesmo Governo.
Um outro seu irmao, o dr. Raymundo Nery foi deputado federal, engenheiro civil. Outro engenheiro civil, o dr. Abilio Nery. Há ainda o dr. Atilio Nery.
Silverio Nery foi uma figura de recorte inconfundível. Inteligente e culto, foi sempre um amigo dedicado dos livros. A sua biblioteca era vasta e selecionada.
O estadista amazonense nasceu em Coary, Amazonas, a 8 de outubro de 1858 e morreu em Manaus a 23 de junho de 1934.
Verificou praça no Exercito em 6 de novembro de 1873. Agrimensor, em março de 1883. Deputado provincial de 1882 a 1886, fez parte da campanha abolicionista em 1884.
Casou em 3 de maio de 1884, com a distintíssima Senhora Maria Maquine de Silva Nery. Pediu demissão do Exercito em 1885, no posta de tenente de artilharia. Vereador municipal de Manaus de 1886 a 1888. Deputado estadual de 1892 a 1895. Deputado federal de 1897 a 1900. Senador federal em maio de 1900 . Governador do Amazonas de 1900 a 1904. Eleito Governador em 25 de março de 1900, tomou posse no dia 23 de julho do mesmo ano. Voltou ao Senado Federal, em 1904, conservando a sua cadeira ate outubro de 1930.
Filho do major do Exercito Silverio Jose Nery e de D. Maria Antony Nery, foi o primogenito de oito irmaos. Estudou no seminario diocesano de Manaus as primeiras letras e o curso secundario, seguindo depois como cadete para a Escola Militar da Praia Vermelha, onde tirou o curso das tres armas, saindo alferes de artilharia. Voltando a terra natal como ajudante de ordens do presidente da provincia, Dr. Satyro de Oliveira Dias, pouco demorou alheio a politica, ingressando no Partido Liberal, chefiado pelo Barão de Juruá, Guilherme Jose Moreira.
Contrariando o partido dominante, o comandante das armas promoveu sua retirada da circunscrição militar, motivando o pedido de demissao do Exercito, por que estava comprometido em pleitear uma cadeira na Assembleia Legislativa. Abandonou, assim, a carreira militar, entregando-se ao serviço de sua provincia, iniciando a vida politica, onde ocupou todas as posições de destaque.
Casou-se com a nobre senhora Maria Maquine da Silva Nery, pertencente a uma familia tradicional do Amazonas, tendo os filhos Mario, Julio, Paulo, Silverio e Antonio, formados em Direito os tres primeiros, Lita, casada essa com o dr. Caetano Cabral. Estão todos vivos, exceção do primeiro.
O dr. Julio Nery foi deputado estadual do Amazonas em varias legislaturas, e em quase duas decadas ocupou as funçoes de fiscal do governo federal junto a estabelecimentos de ensino. Foi membro do Departamento Administrativo do Serviço Publico. Foi Interventor Federal no Amazonas. O dr. Paulo Nery foi Consultor da Delegacia Fiscal do Amazonas, tendo exercido diversas comissoes. 0 sr. Antonio Nery é alto funcionario do Ministerio da Fazenda. 0 sr. Silverio Nery é funcionario federal.
Mas voltemos a figura de Silverio Nery. A sua açao e a sua influencia no Ama¬zonas foram de grande relevo. Teve projeção larga no Pais. Deputado Federal, Governador do Amazonas, Senador Federal, Secretario do Senado da Republica. Muito relacionado, com um vasto circulo de amizades na alta politica do Pais, esse homem pertencia a velha escola inglesa e, superiormente educado, era um gentleman. Palestrador excelente, sabendo contar anedotas, relembrando paginas de leituras, citando autores.
Ele de certo fazia parte do grupo do Brasil, hoje reduzidíssimo, de gentlemen e palestradores. Sao racas que se extinguem. Talvez a vida apressada de hoje, um pouco brutal, turbilhonante, não comporte mais os homens superiormente educados e os conversadores cheios de espirito e ironia.
Na vida do Amazonas ha um equivoco quando se afirma que foi o grande engenheiro capitao Eduardo Ribeiro, o "Pensador" - ele fundara e dirigira no Maranhao, em Sao Luiz, um jornal a que denominara  Pensador - quem fez Manaus. Ele de certo fez muito, fez imenso. Outros, porem, trabalharam com ardor nessa obra patriótica. Manaus não foi um produto exclusivo de Pensador, nem este o urbanista único da Cidade Risonha.
Houve, sim, uma conjugacao de esforços entre os auxiliares do Governador Eduardo Ribeiro, que durante oito anos geriu os destinos do Amazonas. Todos tinham a maior boa vontade em cooperar na obra administrativa que se desenrolava. Houve tambem desavenças serias... Uma delas prejudicial a capital. Um erro grave – o cotovelo da principal arteria na esquina da atual Avenida 7 de Setembro, afeiando o traçado que devera seguir em linha reta ate o chamado Trapiche Teixeira. Ficaria uma avenida formidável. Vencera Governador que não pudera ou não quisera contrariar a proprietários intransigentes, divergindo dos técnicos.
Pensador era um pouco teimoso ...
A verdade é que, parece, nunca houve um plano geral para a transformação da cidade. Antes, 0 General Thaumaturgo de Azevedo, que governou o Amazonas, quis fixar a urbanizaçao de Manaus, depois Eduardo Ribeiro transformou a ideia e iniciou os trabalhos, cabendo ao pranteado Governador capitão Dr. Fileto Pires Ferreira, depois General, o inicio, a continuaçao e a conclusao de algumas importantes obras.
Ao Coronel Jose Cardoso Ramalho Junior, Vice-Governador no exercicio de Governador, coube ainda a conclusao de obras que orguIham a Cidade Risonha, por mim assim denominada outrora. Eduardo Ribeiro fez muito, e muito fizeram os Governadores dr. Fileto Pires Ferreira e o Vice-Governador Coronel Jose Cardoso Ramalho Junior, no passado.
Numa obra de reparaçao e justiça é preciso nao esquece-los.
0 trabalho intenso de Fileto Pires Ferreira nas conclusoes do suntuoso Teatro Amazonas, do Forum, do Reservatório do Moco e em outras obras necessarias mas de menor relevo! Essas obras foram algumas concluídas pelo coronel Jose Ramalho, que as inaugurou. 0 dr. Fileto Pires Ferreira concluiu e inaugurou o belo Teatro Amazonas.
Sendo Secretario do Estado, na administraçao Fileto Pires e na primeira fase da do coronel Jose Ramalho, posso atestar o esforço herculeo desses tres dirigentes para dotar Manaus, como dotaram, de soberbos palacios e outros melhoramentos.
Assim, em 1900, Manaus ja era uma cidade moderna, bem calçada, bem iluminada, com magnificos bondes eletricos.
Um irmao de Silverio Nery, quando no Governo, o General dr. Antonio Constantino Nery, engenheiro militar, tambem deu um contingente eficiente a Cidade. A Biblioteca Pública e a Penitenciaria confirmam a asserção. E mais, essa vultosa obra, que é realmente maravilhosa, os melhoramentos no bombeamento da Ponta do Ismael. A agua é captada no Rio Negro, em grande distancia de terra, e depois de passar por 12 enormes filtros, sai clara e purificada. E é uma
agua saborosa.  
Afirma-se, assim, que todos deram um contingente valioso para as coisas uteis de Manaus, e o seu embelezamento. Esqueçamos os erros. Nao adianta relembrar as faltas.
Pensador, exemplificando, muito trabalhou no nivelamento da cidade, aterros e desaterros. Calçamentos. Essas obras continuaram nas administrações subsequentes mais proximas. Mais tarde, tiveram continuidade nas administrações felizes do ilustre Interventor dr. Alfredo Sa e do notavel e bonissimo Governador dr. Ephigenio Ferreira de Salles. Outros Interventores trabalharam.
Tudo, pois, - o que é racional - dependeu da conjugação de esforços das primeiras administrações republicanas. A situação financeira era boa, e as obras prosseguiam, ate a conclusão. Daí ter surgido Manaus, a Cidade Risonha - que um dia, em artigo de jornal batisei assim, que ficou com essa denominaçao pelo consenso popular, - nascida da mata virgem e selvagem, revelaçao da Republica na frase do Presidente Affonso Penna, e depois, com a crise da borracha, sem aquele trabalho cientifico, aquela alegria ruidosa e
sadia dos dias de antanho...  .
0 Governador dr. Silverio Nery deu a Manaus uma obra importantíssima e prestou-lhe um serviço de enorme valia. A sua administração foi fecunda de trabalho serio e metodizado. Em tudo, - nos seus quatro anos de administração - está o vinco da sua' inteligência e da sua ação marcante.
A obra foi o porto de Manaus, que é modelar. 0 seu trabalho insano para conseguir o placet do Governo Federal! Porto moderno, trabalho que honra a engenharia, ele é maravilhoso. Acresce que essa obra, suntuosa e pratica, nada absolutamente custou ao Governo do Pais. Nada. E mais, - a Naçao ainda ganhou o belo predio da Alfandega, inaugurado pelo Presidente Affonso Penna, e considerado entao dos melhores edificios do Norte.
O outro grande serviço prestado por Silverio Nery foi a lei aurea, denominada do beneficiamento da borracha. Ate entao, toda a produçao do Amazonas, a da goma elastica e a da castanha, era cognominada do Para. Estados irmaos, sim, tudo Amazonia, esta bem, mas era justa que a borracha do Amazonas nao fosse exportada como do Para, assim como a castanha. A sua lei estabeleceu uma outra situaçao para o Amazonas - de reivindicaçao. Nao que o Pará fizesse algo contra o Estado irmao, mas era a tradiçao que se conservava e que ficara.
Só essas duas obras honrariam qualquer administraçao.
Mas ha o papel marcante do Governador Silverio Jose Nery na integraçao do territorio brasileiro, na chamada questao do Acre. A sua açao foi notavel e decisiva. 0 seu auxilio a Placido de Castro uma realidade, e de tal forma ele agiu que, em uma das suas Mensagens, a AssembIeia Legislativa - ao tempo eu era Deputado e acompanhei na tribuna e na imprensa a sua atitude, - externava-se, francamente, com a sua responsabilidade de Governador do Estado, em favor do movimento do Acre pro-Brasil.
O vasto, curioso e interessante arquivo do Senador Silverio Nery foi destruido pouco depois da sua morte, por expressa vontade sua. Quanta revelacao! Quanta elucidacao de fatos foi perdida, quanta traicao e ingratidao seriam comprovadas, se essa fartura de papeis subsistisse.
Subsidios preciosos para a historia politica do Brasil, especialmente do Amazonas, todos perdidos !
Quando da chamada revolta - Ribeiro Junior, o ilustre parlamentar, pronunciou no Senado Federal uma serie de discursos excelentes, que despertaram a atencao, estao enfeixados em folheto.
Silverio Nery fez com ardor e entusiasmo a campanha abolicionista. Foi notavel a sua acao na imprensa e na tribuna. Foi tambem um combatente pela Republica, seu propagandista.

A sua larga carreira politica nao teve soluçao de continuidade.
A sua ascensão foi feita normalmente.
Primeiro, vereador municipal, na Monarquia; depois, deputado estadual, varias vezes, ja na Republica; deputado federal, reeleito; Governador do Amazonas; chefe do Partido, de grande prestigio e respeitado pelos proprios adversarios; Senador Federal, em varias Iegislaturas. Eleito, e sempre reeleito, 1.° Secretario do Senado da Republica. Presidiu diversas vezes o Senado Federal.
Fez varias viagens a Europa. Assinale-se, para honra sua, - foi o unico congressista que, estando na Europa, no momento da revoluçao de 1930 no Brasil, embarcou de Paris para o Rio de Janeiro, imediatamente. Nao se deixou ficar, comodamente ou nao, mas em todo o caso sossegadamente, na Europa.
Matou-o enfermidade cruel e dolorosa.
Sempre de animo forte, encorajando a familia e os amigos. Morreu em Manaus a 23 de junho de 1934, e em 14 de julho seguinte tínhamos a Constituiçao.  Era a sua ansia, o seu desejo de brasileiro e de patriota, que a Naçao entrasse na vida Constitucional. Era um verdadeiro democrata, dentro dos velhos moldes ingleses.
Engenheiro-agronomo, Silverio Nery palmilhou as terras do Amazonas, navegou os seus igarapes e igapós, demarcando. Conhecia perfeitamente o seu Estado, em todas as zonas, as mais perigosas, intranquilas e longinquas. Muita vez, de volta dos horr1veis e penosos trabalhos de demarcaçao de terras, em lugares pantanosos, vinha enfermo, com a molestia das regioes, o impaludismo. Tratava-se e regressava ao interior.
Tinha estudos de agricultura e pecuaria. Era um entusiasta por estas. Lia muitos livros e revistas especializados. Na terra é que está a fortuna do Pais. E executava. Confronte a Manaus tinha o seu sitio denominado Janauary, uma enorme faixa de terra que adquiriu em hasta pública por uns seis contos de reis. Plantava, e desenvolvia a criaçao. As suas plantaçoes de milho, inteligentemente feitas, foram extraordinarias. A qualidade, excelente; a fartura, imensa.
Era sempre bom para todos, especialmente para a gente simples e modesta, que, tratava com verdadeiro carinho. Os caboclos admiravam o Chefe e lhe queriam um bem imenso.
Nos dias de eleiçoes, os aspectos da sua residencia, na entao Avenida Silverio Nery - trocaram o nome da Avenida ... - eram interessantes. Os seus eleitores vinham de longe para votarem consigo. Hospedava a todos.
Tivera tambem uma bela fazenda, o Amatary, no Amazonas, distante de Manaus sete a oito horas de vapor, onde desenvolvera a agricultura e a pecuaria. Era uma zona de panorama deslumbrante. Dificuldades de vida fizeram com que se desfizesse dessa fazenda, pela qual tinha grande amor e cuidado.
Notavel o seu gosto pela caça. Conhecedor profundo dos problemas nacionais, sabia que a terra devia ser amanhada, tratada com inteligencia, zelo, comperencia e carinho. Assim, daria tudo e bem.
A par disso, da vida pratica, Silverio Nery era um velho jornalista, com ideias e ideais equilibrados, fazendo o artigo dentro do bom senso e dos conhecimentos profundos que possuia do Brasil todo, e particularmente da Amazonia. Era um cronista elegantissimo, cheio de ironia, e as suas cronicas diarias fizeram epoca. Assinava-as “Yren”.
Sempre, nos jornais que dirigi no Amazonas, seu Diretor ou Redator chefe, contei com a colaboraçao do amazonense que sempre honrou a sua terra. No Amazonas Comercial, propriedade do meu pranteado amigo coronel Caetano Monteiro da Silva - capitalista, comerciante, homem digno; - no 0 Rio Negro, Diario de Noticias, Comercio do Amazonas, A Federaçao, na Folha do Amazonas, no 0 Globo e em outros, os seus artigos, cronicas ou sueltos, despertavam a atençao do publico.
Modesto sempre. Simples, duma educaçao apuradissima, dum controle perfeito.
Esse homem tinha defeitos? Talvez. É provavel. De certo os tinha. É humano. Mas nao os conheci. Seu amigo intimo, por quatro decadas, observei sempre a sua superioridade, a sua generosidade, a sua elegancia moral, a sua competencia e o seu civismo.
Era um bom brasileiro, na significaçao justa e precisa do vocabulo. Tinha uma Fe imensa nos destinos da sua, da nossa patria.

Poucas vezes ocupou a tribuna da Camara Federal ou do Senado da Republica. Era, alias, orador elegante. Mas os que mais falam nao sao os que mais produzem. .. Ele agia controladamente. E muito conseguiu em prol especialmente do Amazonas.
Espirito liberal, conciliador, era em politica um tolerante. Todos os seus amigos, os seus intimos, e eu era um deles, podemos atesta-Io .
Ha provas edificantes.
Chefe de Partido, com prestigio pessoal, muita vez - o emaranhado e a complexidade da politica ! - tinha que assumir a responsabilidade do que outros faziam a sua revelia ...
A politica outrora era assim.
Alto e forte, espadaúdo, sempre elegante de atitudes e maneiras, fidalgo de porte, esmerado no trajar, esse que a morte abateu foi um dos nossos vultos politicos mais singulares, mais impressionantes, odiado por uns no momento supremo das vitorias, amado por outros, guardando sempre, nas epocas agitadas e trepidantes da politica, ou nos dias serenos, um controle invulgar, dominando  pela generosidade e pela bondade.

Silverio Nery é um nome que nao se apagará na sua terra, no seu Estado, e que ficou como um belo padrao de trabalho orientado, de amor ao Brasil, de devoçao, escudado numa simplicidade que era um encanto e numa Modestia que chegava a ser um crime.
Com 76 anos de idade, Silverio Nery era um moço. Na idade parecia que ficara nos cinquenta, e no espirito era positivamente um jovem.
A sua velhice de decadas não perturbava nunca o seu esplendor fisico. 0 moral, fora sempre excelente. E poucos homens do Brasil sofreram a ingratidao, a perfidia, a calúnia, a traiçao, a injustiga, como ele.
Mas, duma educaçao rara, duma inteligencia clara e brilhante, com uma boa cultura, esse homem despretencioso tinha a serenidade dum forte. Estudara o latim e o portugues, seriamente. Lia os latinistas no
original e gostava de recordar Ovidio e Horacio. Tinha uma riqueza vocabular que ja se vai tomando rara. A nossa lingua portuguesa, e a nossa linguagem brasileira, escrevia e falava com apuramento, com distinçao, com bravura.
Jornalista e escritor, Silverio Nery tinha um pouco daquela ironia de que foi principe o seu irmao, o Barao de Sant'Anna Nery - aquele escritor malicioso do livro “De Paris a Fernando de Noronha” - e poderia, se quizesse, nos ter legado alguns livros interessantes e profundos.
Era um observador agudo e penetrante, de costumes e habitos, e um guloso de livros, revistas e jornais. E duma simplicidade incomum; Sorria do cabotismo politico ...
Viajor infatigavel, frequentador dos mais altos meios sociais, era um prazer a sua palestra. Notava-se sempre, a par da graça na conversa, um grande equilibrio mental. Raciocinava com acerto.
Tinha bom senso, - predicado que devia ser banal, e é tao raro nos homens que dirigem e governam! E nunca, mesmo nos dias de injustiças supremas e de ataques brutais, partidos da tribuna partidaria ou da imprensa política, deixou de guardar aquela linha impecavel de estadista que se respeita.
Esse homem foi desde Vereador Municipal ate Senador da Republica. Ganhou os pastos, um a um. Quando assumiu o governo do Amazonas, no seu discurso inaugural, traçou o seu roteiro - MAIS ADMINISTRACAO E MENOS POLÍTICA! A frase correu todo o Pais:
Em,1930, quando caiu a 1ª Republica e foi proclamada a 2ª, estava na Europa, eleito pelo Senado Federal membro do Congresso Internacional Inter-Parlamentar do Comercio, em Bruxellas.
Sofreu heroicamente quatro anos, silenciosamente, - sem ódios, sem extravasamentos, coberto de estoicismo.,
Esperava sempre que o Pais entrasse na vida Constitucional, - o que aconteceu logo depois da sua morte.
Vivendo a vida, Silverio Nery era um idealista. Nunca o dominou o pessimismo. Acreditava nos homens da sua patria. Apaixonado por esta, bem querendo a sua terra natal, confiante nos destinos ciclópicos do Amazonas, perdoava a ingratidao de certos homens que inventara, a sua inveja e a seu odio.
Sorria, - intimamente penalizado de tanta inferioridade mental e moral.
Os homens passavam, - e os maus iam se destruindo por si mesmo, lentamente. Era a fatalidade. E Silverio Nery ficava sempre, tranquilo, calmo, sereno, superior, bem norteado, seguro de si, cheio de fé, vitorioso nos dias aureos, vitorioso ainda na derrota - um paradoxo ! - porque, no ostracismo, as suas atitudes, as seus gestos, a seu nome, ficaram sempre limpos, incolumes.
Mais de 50 anos de trabalhos e lutas em prol do Amazonas e da Naçao, em prol especialmente da sua terra natal - fora as seus estudos, a sua formatura em agronomia. Ajudante de ordens do Comandante da Regiao Militar, tenente do Exercito, posto em que se demissionou - Silverio Jose Nery tem o seu nome ligado aos acontecimentos maiores do Brasil politico, nesta fase larga da vida nacional. Foram cinco decadas em que ele, modesto que era, se viu focalizado, envolvido nos acontecimentos que surgiram. A par de defeitos que par acaso tivesse, - a sua obra é magnifica, consolidada, forrada dum grande patriotismo, cheia dum civismo que ja se evoca como um exemplo.
Era duma lealdade absoluta. Sempre, desde o primeiro ao ultimo dia, foi amigo e companheiro do General Pinheiro Machado. Sacrificava-se para ficar com os seus amigos. Duma grande correção de proceder, Silverio Nery foi um forte. E um bom. Tinha oculto sereno da justiça. De certo, pensava como Hugo "ayez em vous ces doux choses qui sont Ie plus court chemin de l'homme a la verite'-la certitude dans l'esprit, la droiture dans Ie creur".
E' preciso nao esquecer nunca a sua ação energica, patriotica e decisiva na chamada questao do Acre. Reivindicação do nosso território. 0 seu antecessor no Governo, coronel Jose Cardoso Ramalho Junior, coadjuvara um trabalho pro-Acre, para livra-Io do jugo estrangeiro, que o cobiçava. A ação de Silverio Nery foi decisiva, dentro dum rumo claro e largo.
Auxiliou em tudo ao Barao do Rio Branco e ao Governo do Pais. Ao tempo eu era deputado estadual e correspondente e representante no Amazonas do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Sei como tudo se passava ...
Depois o Govemo Federal tomou o Acre.
Retalhou o Amazonas. As rendas diminuiram, escoaram-se para a Uniao. E o Amazonas, entao, foi empobrecendo, endividando-se, sem a borracha nunca ter tido amparo inteligente e honesto, e depois de ter feito naquela epoca uma grande e formosa Cidade, foi apontado ao Pais como um nababo louco, esperdiçador, esbanjador, - ele que salvara também uma faixa larga e rica do território nacional, ele que pela força, no primeiro momento decisivo, conservara o Acre brasileiro, nao deixando que o estrangeiro o assaltasse, o abocanhasse, dele se apoderasse!
Era Governador do Amazonas o dr. Silverio Jose Nery.
Escrevo emocionado esta pagina. Perdi em Silverio Nery o amigo certo, o companheiro fiel de algumas decadas. Os dias maus, os da administraçao, da política e da imprensa, vivemos juntos. Quando duma das tentativas de assassinato contra mim, - naquele tempo era assim! - eu era o redator-chefe do seu belo jornal, órgao do Partido Oposicionista, a Folha do Amazonas. Esta foi assaltada, empastelada, por elementos policiais disfarçados e assalariados. A mim me couberam tres balas, outros companheiros feridos. Dias depois revivíamos a Folha do Amazonas, e era obrigado a ir a Europa, Alemanha, completar um tratamento, afim de evitar uma operaçao cirurgica, a amputaçao da mao esquerda.
Juntos vivemos tambem os dias de triunfo, de vitórias serenas, de alegria e sol. Mas, nem por isso, me julgo suspeito, dentro da tranquilidade da minha consciencia, dentro da justiça do meu espirito, para traçar o seu epitafio. E ainda vou buscar no idioma de Ovidio e Horacio, que ele tanto amava, o conceito para o seu túmulo – EMUNCTAE NARIS HOMO - Homem de tato fino, de bom gosto, inteligente, homem de bom juizo.
O Amazonas ainda lhe erguerá uma estatua.
Nota - No Municipio de Coari, onde nasceu, ja Ihe ergueram um busto em bronze.