[Paulo Ghiraldelli Jr.]

 

Silvano foi libertado como todos os outros, pelo ato da Princesa Isabel. Mas, diferente de seus colegas de infortúnio ali da fazenda, ele não saiu da senzala. O próprio capitão do mato, meio atordoado, mas contente porque o Dr. José de Azevedo não havia lhe despedido, foi até o buraco fedorento de Silvano e gritou: “Última ordem que você recebe na fazenda, vá Silvano, tá livre, rua!”. Silvano não respondeu nada e amuou. Encolheu-se todo e rapidamente entrou em posição fetal.

 

O ex-capitão do mato deu mais uns dois ou três gritos. Não obteve sucesso. Silvano fazia que não escutava nada. E o homem parou de berrar e resmungou: “Ah, passei uma vida caçando esse negro, não tenho que fazer mais isso, se ele não quer ser livre, eu quero”. Afastou-se. Agora era capataz. Tinha de cuidar do gado. Isso sim era profissão que daria orgulho à família. Sua mulher nunca teve orgulho dele caçar negros.

Foi o ex-pegador de negro ladino sair dali e chegou o próprio Dr. José de Azevedo: “Silvano, tá livre, se manda homem – vá com os seus pares para onde quiser”. Mas não havia pares mais ali. Os negros estavam na estrada. As mulheres pegaram seus filhos e os homens ganharam alguma cachaça e já se encontravam largados pelos cantos. Na cidade do Rio de Janeiro o fedor era insuportável. Negros de todo tipo, inclusive nus, dançavam e rebolavam, urinando pelo chão e bebendo. Alguns choravam e riam. Outros apenas tentavam perder a consciência. De longe, aquilo era a visão do inferno. Mulatos e abolicionistas começavam, finalmente, a ficarem preocupados. Mas, na fazenda, Silvano se recusava a participar desse apocalipse.

Enquanto o Rio de Janeiro se transformava em um imenso navio negreiro, a Corte se preparava para um baile, o chamado Baile da Abolição. Neste baile a princesa ouviria, uma vez mais, a célebre frase “libertaste um povo, mas perdeste a coroa”. Mas, àquela hora da tarde ela ainda não sabia ao certo o que ocorreria à noite, embora soubesse bem o que ocorreria nos próximos dias. Aliás, todos sabiam. Menos os libertos. Estes não sabiam o principal, que quando o sol entrasse pelas montanhas deixando a praia solitária, eles não poderiam voltar para a senzala, embora pudessem voltar para o pelourinho. É que o pelourinho havia se democratizado. Dali para diante, todo lugar seria pelourinho.

A polícia recebeu ordem de não intervir na festa dos negros. As senhoras recolheram suas meninas e moças mais cedo, com medo daqueles selvagens, dos capoeiristas e de todo aquele povo preto e sem vestimentas. Pela primeira vez todo o Rio de Janeiro podia ver, por horas, o dorso das mulheres com os vergões de anos de castigo. Mas é mentira que viram. Poucos realmente olharam. Alguns olharam porque a carne marcada aguça a curiosidade de um modo estranho. Outros viram de relance, mas sabiam-se responsáveis por aquela barbárie. Afinal, os tempos haviam mudado e várias pessoas que anos antes nada viam nos negros senão montes de carne, agora os reconheciam como gente. A campanha abolicionista havia conseguido incutir culpa e dor em alguns brancos.

O morro esperava os negros, para que eles povoassem o Rio de favelas. Mas eles não procuraram o morro na primeira semana. Eles ficaram uma semana ou mais pelo Rio de Janeiro, andando, bebendo, perdendo os últimos trapos, fazendo sexo com negras que se iniciariam na prostituição barata. Alguns já haviam se metido em brigas e estavam em melhores condições, uma vez na cadeia. Mas era muita gente. Era um mar preto de gente preta. Menos Silvano.

Silvano estava lá na senzala, não como sempre esteve porque, afinal, ele quase nunca esteve. Ele foi o negro mais fujão da Fazenda Santa Mônica. Ele nunca conseguiu ficar muito tempo foragido, mas a quantidade de vezes que escapuliu fez dele, somando as horas, um quase homem livre durante uns quarenta anos. Todos imaginavam que Silvano, uma vez livre, iria correr como maluco para fora da fazenda, atravessando o portal feito de pedra e que durante anos guardou os domínios do avô de Azevedo, de seu pai e, então, dele próprio. Mas que nada, Silvano não arredou pé dali.

O senhor da fazenda não havia aderido ao programa de pegar italianos. Estava quebrado. Na verdade, entre ele e Silvano, àquela altura, havia pouca diferença. Mais cedo ou mais tarde, do mesmo modo que Azevedo tentava enxotar Silvano, também ele seria enxotado pelas dívidas no Banco do Brasil. A esperança de convencer a princesa de pagar uma indenização aos fazendeiros era já tomada como proposta derrotada. Nem negros e nem fazendeiros receberiam qualquer coisa. E para que ninguém mesmo reclamasse de direitos, Rui Barbosa já estava providenciando o enorme forno da imprensa imperial para assar toda a documentação de registro de escravos.

Foi assim que realmente aconteceu. Menos de uma semana depois, Azevedo estava em um hotel da cidade. Era viúvo e tinha apenas um filho, que trabalhava na Europa e que jamais retornou. Tinha alguns recursos para ficar em um hotel, ao menos por uns dias, mas era um bem barato. Tão barato que os proprietários não fariam questão de receber junto com ele o Silvano. E lá foram para o hotel o ex-senhor de escravos e o ex-escravo.

Dividiram um quarto, sem cerimônias. Azevedo era orgulhoso. Mas, estranhamente, tornou-se um homem humilde e completamente em paz com o seu destino. Dividiu o quarto com o Silvano sem problema algum. Silvano, por sua vez, não fez troça, não boquejou e nada disse senão o necessário. Silvano não era negro de puxar saco de senhor, nem mesmo de olhar para baixo quando o branco o encarava. Tinha o corpo bem marcado por isso. Mas, ao mesmo tempo, não era desrespeitoso e muito menos burro.

Azevedo girava em torno dos sessenta e poucos anos. Silvano se aproximava dos quarenta ou já tinha quarenta – nunca se soube. Era um touro de forte. Por sua vez, Azevedo era uma minhoca de fraco. Ambos arrumaram emprego em uma gráfica. Azevedo pegava os tipos para a composição da matriz, coisa que sabia fazer bem porque havia sido dono de jornal uma época. Silvano carregava pacotes, fazia serviço braçal. Rapidamente aprendeu a ler e a escrever e se tornou um redator do jornal da gráfica. Silvano chorou só uma vez em toda a sua vida, quando recebeu a incumbência de escrever um obituário. Era o de Azevedo.

Essa história foi contada mais tarde, por um colega de gráfica de Silvano e Azevedo, bem mais jovem, e que se tornou um aguerrido anarquista durante os primeiros anos da República. “É uma história completamente verídica”, dizia ele. Então, nas rodas anarquistas perguntavam mais: “que fim levou Silvano?” e “com quem ficou a gráfica?”. Há quem diga que um anarquista italiano de nome … ah, bem, não me lembro agora, escutou a história toda, e que a passou para o papel. A narrativa ganhou corpo mesmo só após a morte de Azevedo. Foi então que a história passou a ter um enredo atrativo. Nela, Silvano mostrou-se um personagem de uma série de acontecimentos esquisitos e curiosos do Rio de Janeiro. Mas, desde então, vários são os que procuram essa narrativa do anarquista, contando tudo sobre o destino do negro fujão, então escritor de periódico no Rio de Janeiro. Houve rumores uma determinada época – ou eu sonhei? – que havia documentos mostrando que Silvano e Machado de Assis se encontraram, e que Machado leu Silvano e o aprovou.

Paulo Ghiraldelli Jr.