Será o fim do livreiro?
Em: 23/02/2013, às 19H26
[Afonso Borges]
O mundo dos livros está passando por grandes mudanças. Uma delas é a ‘‘supermercadização’’ das grandes livrarias, que comercializam seus espaços para as grandes editoras, como mostra artigo do jornalista Afonso Borges, coordenador do projeto Sempre um papo. Em seu artigo, ele lamenta a desvalorização da figura do livreiro, que contribuiu para formar gerações de apreciadores do bom livro, e defende que o governo conceda incentivos fiscais a linhas de crédito para empresários que quiserem investir em livrarias, ou seja, em estabelecimentos comerciais que vendam apenas livros.
O mundo editorial, definitivamente, está passando por um momento delicado. Palavras novas como e-books, riders, iTouchs, iPads, notes e laptops estão deixando todos de cabeça virada. Mas ninguém, de verdade, esperava esta notícia: as grandes redes de livrarias estão comercializando espaços em seu interior. É o seguinte, amigos leitores desavisados: quando vocês virem aquelas grandes pilhas de livros nas megastores, saibam que aquele espaço é vendido como se fosse um anúncio de revista. Os livros não estão ali por gosto ou indicação da livraria e sim porque alguém pagou para eles estarem naquela posição, na maioria das vezes, na vitrine, ou em destaque nas gôndolas. Cada centímetro de altura tem um preço.
Quebra-se aí, de cara, uma relação tão antiga quanto a invenção da livraria: a credibilidade da curadoria do livreiro. O bom e respeitável livreiro coloca na frente da sua casa ou na banca principal o mais vendido, sim. Mas coloca também o que ele indica. O que ele considera de mais relevante, o que ele recomenda. Esta relação de confiança formou gerações de bons leitores e apreciadores do ambiente agradável e instigante de uma livraria. A lenda do bom livreiro que sabe se o livro vai vender passando as páginas rapidamente e cheirando aquele ventinho vale até hoje. Afinal, quem é que garante, mesmo, que um livro vai ou não vai vender? A indústria editorial está recheada de grandes livros e grandes fracassos.
Há que se fazer um parêntese para as heroicas livrarias pequenas e médias. Aquelas poucas que ainda restam neste país de megastores. Ali ainda se encontra o vendedor autêntico, que, antes de indicar um livro, passa os olhos nele ou o lê, de verdade, inteiro. Ainda se encontra os bons livros, em destaque. Aquela livraria em que você entra e sabe que do lado esquerdo, na terceira prateleira de baixo pra cima, está lá, há anos, a obra completa de Fernando Pessoa. E nas prateleiras seguintes, poesia. Poesia, esta raridade absoluta nas grandes livrarias brasileiras. E em pleno século 21, quando a neurociência prova que a velha arte de Withman faz o cérebro trabalhar à velocidade de fórmula 1 durante a leitura de um poema. Por que será?
Na ponta de lá da cadeia alimentar, as editoras também contribuem de forma anacrônica. Estarão reinventando a roda? Ou esperando a onda voltar? Aquela onda que quando volta deixa um terreno arrasado? Vejam, as editoras estão investindo valores significativos neste marketing. Mas só investem, claro, nos livros que podem dar retorno comercial, que são os best-sellers internacionais. E, neste ponto uma curiosidade: nem sempre as editoras investem em peças publicitárias e promocionais por causa do retorno comercial em si. Hoje, elas investem porque são obrigadas – porque assinaram contratos internacionais com cláusulas draconianas, que exigem um determinado volume de recursos nesta área.
Esta iniciativa vem sendo chamada de "supermercadização" do livro. Esse termo bizarro, curiosamente, não tem sinônimo em outras áreas da economia. Foi cunhado quando a Editora Record comprou uma das mais tradicionais casas brasileiras, a Paz e Terra, dona de um catálogo invejável pela qualidade. Na época, o dono era Marcus Gasparian, filho de uma lenda do mundo dos livros, Fernando Gasparian. A Paz e Terra é conhecida pelas edições em ciências sociais e humanas e seu catálogo inclui 1.200 títulos de 500 autores, entre eles, Paulo Freire, Norberto Bobbio, Eric Hobsbawn, Kenneth Maxwell e Celso Furtado. Em entrevista, Gasparian declarou que não conseguia fazer seus livros serem vistos pelos leitores.
Aí vêm as perguntas. Como ficarão os autores de ficção brasileira? Vai rolar a conversa do gato correndo atrás do próprio rabo? Ou seja, não se investe em ficção brasileira porque não vende, e vice-versa? Eu duvido, mas duvido muito que, se as editoras fizerem este monumental esforço de marketing em cima dos bons escritores brasileiros, esta história não muda. Muda sim. E teríamos, aqui, grandes vendedores, best-sellers nacionais que, além de tudo, podem rodar o país falando para os seus leitores. Fazendo um outro papel, tão importante quanto os demais, que é incentivar o hábito da leitura.
E outra pergunta: é fato que o Brasil tem pouquíssimas livrarias. Falo daquelas de verdade, que só vendem livros. Hoje as megastores, principalmente, uma de origem francesa, têm no livro um objeto de decoração (de muito mau gosto, por sinal). E é neste ponto que o mais grave transparece: como fica a questão espaço físico? Se elas estão vendendo estes espaços, onde ficarão os livros das editoras que não têm grana para comprar o anúncio, digo, gôndola? Francamente, do jeito que as coisas vão, daqui a pouco, para estas editoras exporem seus livros terão que pagar. E, de certa forma, já pagam. Como? Simples: uma tal rede só aceita tal livro de tal editora se o desconto aumentar. É matemática perversa, pura: hoje, o normal é a livraria ficar com 30%, 35% do valor de capa do livro. Para pegar o livro, eles pedem 40%, 50%. Entenderam? E aí acontece o obscurantismo: eles recebem o livro, em consignação, na maioria das vezes, e os colocam onde? Na prateleira no canto, em pé, no meio de mais de uma centena de outras publicações, que vêm da mesma origem. E, dos 10 mais vendidos em ficção do ano de 2012, tem um só brasileiro: o bravo, bravíssimo Luis Fernando Veríssimo. Mas não é um romance. Aí entra a outra pergunta: não estariam as editoras e as grandes redes armando uma armadilha contra si próprias? Ao impor, visualmente, ao consumidor a compra dos best-sellers não estariam acabando com o bom gosto? Ou pelo menos baixando o nível da leitura, consideravelmente? Como fica, de verdade, aos olhos do bom leitor, a questão da qualidade? Em outro sentido, os leitores que gostam de bons livros, livros de qualidade, vão acabar fugindo destas megastores e procurando outras fontes de informação e consumo. Porque o mercado é dinâmico e os modismos passam.
No mundo do negócio, a livraria convencional não existe. As contas não fecham. Piadas à parte, o que fecha, mesmo, é a própria livraria, que deveria ser incluída na pauta da ONU como patrimônio cultural da humanidade, objeto de extinção. Com a experiência de quem já teve uma delas durante 10 anos pergunto: a empresa recebe um produto com uma margem de 35% de desconto; 5% vão para a operadora de cartão de crédito; entre 18% e 23%, impostos. É um produto que não vende em escala, ou seja, o comprador leva um ou dois, no máximo. Resultado: prejuízo na certa. Estou cansado de arrasar amigos que dizem acalentar o sonho de ter uma livraria. Faço as contas e peço a eles para se sentarem, meditar e, com paz e calma, esperar a vontade passar. A solução é a da vez: a livraria tem que se transformar em papelaria, loja de CDs e outros espantos. Comprei, uma vez, em uma delas, o mais lindo isqueiro que já vi. Guardo-o com carinho, na gaveta de objetos inúteis.
Qual seria a solução, afinal? Em primeiro lugar, estímulo ao negócio. Mas estímulo diferenciado, via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e outras fontes de financiamento. Quem quiser abrir uma livraria terá isenção de impostos, empréstimos facilitados e outras benesses fiscais. Mas tem que comprovar que ali apenas livros serão vendidos. Imóveis, carrocerias usadas de caminhão e gravatas escocesas não serão permitidas. Vou além, e repito: caso isso não aconteça, a livraria convencional não vai mais existir no Brasil. Aliás, existe?
Em outra medida, investimento sério e concentrado no autor nacional. Reserva de mercado? Não: inteligência estratégica, com os olhos focados no futuro, ou seja, o autor de ficção brasileiro pode pegar um avião e ir até Araxá, interior de Minas, conversar com um público ávido de conhecimento e informação. Como aconteceu com a Fliaraxá – Festival Literário de Araxá, que reuniu mais de 6 mul pessoas em três dias de realização. O escritor brasileiro é a salvação da lavoura. Anotem, façam as contas. Mas esta iniciativa deve ser conjunta das editoras e órgãos governamentais de cultura e educação.
E não preciso inventar a roda: festivais, feiras, rodas, projetos, programas, uma onda literária que, na verdade, já começou. Vejam os números da Secretaria do Livro e Leitura do Ministério da Cultura: cresceram por milagre e dedicação de tantos. Por falar nisso, uma informação espantosa: há apenas um ano, a Lei Rouanet foi modificada, via instrução normativa, permitindo que estes eventos sejam enquadrados no artigo 18, ou seja, o patrocinador pode deduzir 100% do valor investido. Ou seja, desde que foi criada, há 21 anos, quem quisesse patrocinar eventos literários, mesmo que com entrada franca, tinha que desembolsar 30% do valor em recursos próprios, se igualando a eventos como os lucrativos espetáculos musicais. Curioso, não?
O escritor brasileiro é a bola da vez. Os grandes eventos de literatura estão aí aos montes, crescendo e disputando o autor nacional a tapa e pedra. Pena que parte gigantesca do governo não veja isso. E lamentavelmente, ainda, como as megastores, tenta vender espaços na gôndola, em vez de se concentrar no principal: a nossa inteligência, a nossa formação, o nosso bom gosto. Como o futuro é hoje, nestes tempos velozes, vamos ver no que dá isso. Depois de amanhã.
Publicado originalmente em O Estado de Minhas, em 23.02.2012
Na foto, o famoso livreiro Amadeus Rossi, de Belo Horizonte.