Poeta Marcello Silva
Poeta Marcello Silva

 

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SER TÃO ÍNTIMO DA TERRA NATAL

 

 

 

Diego Mendes Sousa

 

 

 

A poesia entorna os sentidos na obra, Na garganta um sertão enjaulado, de Marcello Silva. A paisagem de currutela transfigura o pertencimento a um desertão de miragens e de fantasmas: o sertão é grito na madrugada. É o vagar do homem por sua história, por seu deserto interior.

O sertão com as suas personagens peculiares e os seus aboios secretos, misticamente vivos. Marcello Silva privilegia a ressurreição bíblica, com a força da religiosidade (esperança em santos e em ritos, na arribação longínqua das eras e nos louvores marianos) em três movimentos ultra poéticos pelo peso milenar: gênese (o nascimento e o surgimento do homem-mulher do sertão), êxodo (a peregrinação em quarenta acontecimentos e fotografias rurais) e apocalipse (o reinício e a certeza do menino-homem, de que existe um sertão em seu cerne de poeta).

A ambiência desse agreste mítico é o Ceará, mais precisamente, um torrão de mata adentro, conhecido como Chaval, terra natal de Marcello Silva, na fronteira dos Estados do Ceará e do Piauí.

Embora a precisão geográfica não esteja revelada no poema, o leitor observará elementos simbólicos que identificam um lugarejo banhado pelo Rio Ubatuba, cercado de pedras e de carnaubais.  

A mitografia do sertão nordestino revela-se em anáforas induzidas através de uma música silenciosa, íntima e sinestésica, que arrasta as percepções sobre o universo sertanejo: há um sertão em mim // que canta e sangra.

A repetição encontra solidez na recriação de imagens e na fértil migração da realidade para o imaginário. Eis a caatinga com os seus exóticos viventes. Seres estacionais, que sentem a seca e a chuva, com a mesma intensidade de drama e de advertência: há um ser-tão-rio que vaza dentro da gente.

Marcello Silva opera com a intertextualidade, com ideias de Graciliano Ramos e de Euclides da Cunha (baleia graciliana tão comum por aqui ou todo sertanejo é antes de tudo sertanejo) e com máximas populares, como esse sertão já foi mar. Arrojado e sucedido, ele funda a sua cidade, o seu lugar perdido na voragem do Brasil.

A região descrita no poema é uma evocação profunda, que sensibiliza o leitor pelo estranhamento e pela oculta beleza de nomes da fauna (piabas piaus camarões cangatis) e da flora (catingueiras e catanduvas). Existem bem-aventuradas passagens metafóricas como sete sertões andamos por séculos e deus é sertão ser tão tão ser infindo.

A raridade de certas visagens traz ascese. São aparições lendárias que encantam pela legítima poeticidade. O lirismo contido em excertos extraídos dos cantos XXXII e XXXIII, da seção êxodo, é deveras comovente.

A gravidade dos ritmos e a magia imagética das palavras embevecem a memória (ressurreição // e boi levanta gira ginga // poeira terreiro poeira) e o sentimento de pertença (foi poeta poeta poeta // que palavrão na roça ser poeta. // quando cansou das metáforas // foi ser rio... peixe encantado // sempre disseram que ubaldo não era deste mundo).

Marcello Silva instaura um diálogo inteligente com a tradição, pois vem de uma catequese transmitida e reconhecida nos tempos, não somente pela linguagem subterrânea do inconsciente e da observação das cousas desde a infância, mas também pelo conhecimento da doutrinação de um Gerardo Mello Mourão, que decantou os sertões de dentro desde Ipu e Crateús, a elevar um Ceará grande, inigualável, que brilha vigoroso nas páginas de Os peãs.

O acento da poesia com os rituais da fé em Na garganta um sertão enjaulado possui atmosfera profética. A lida do sertão, a criação do homem-mulher, do menino-homem, do mar-sertão, do rio, a aparição do elemento água em metamorfose... (há algo que nasce no âmago da madrugada).

Tudo isso desponta de um caminho de exortação. Há um ser’tão aqui. A insistência do eu lírico no verbo haver é motivada pelo rompimento da própria alma. Permanece uma litania subjetiva do começo ao fim.

Na garganta um sertão enjaulado é um longo poema que se eleva pela liberdade em exprimir o que cala ou encharca o coração, sendo de uma intuição memorialística e afetiva fascinantes.

 

Ensaio de Diego Mendes Sousa

 

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há um sertão em mim

que canta e sangra

ubaldo foi poeta

que nunca aprendeu ler palavras

lia noite a chuva os amanheceres

tinha uma mania de perde-se entre os carnaubais

nasceu doente e andou depois dos cinco

vó murici parteira deu-lhe cinco dias

esse não vinga

ele viveu cinco décadas

poetizou repente cordel

foi poeta poeta poeta

que palavrão na roça ser poeta.

quando cansou das metáforas

foi ser rio... peixe encantado

sempre disseram que ubaldo não era deste mundo

 

Poema de Marcello Silva

Extraído do livro "Na garganta um sertão enjaulado" (2022)

 

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Marcello Silva nasceu em Chaval, no Estado do Ceará.  É autor dos livros O Pescador (2015) e Homo Cactus (2018).

 

Diego Mendes Sousa é poeta e crítico. Filho da Parnaíba, costa do Piauí.