Cunha e Silva Filho


                              Sob que pretexto for, não se pode nunca justificar a implantação de um estado não democrático num país, seja aqui no Brasil ou qualquer país da América do Sul, no Caribe, na Europa, Ásia, África, em qualquer continente do mundo. Os regimes de exceção, os regimes de força, as ditaduras da esquerda, da direita, militares ou civis devem ser abominadas pelo cidadão que defende e ama a democracia, não as falsas democracias de fachada, mas aquelas que respeitam as liberdades do individuo, a de livre expressão do pensamento, a de ir e vir, a de poder deslocar-se para outro país sem que seja obrigatória a permissão do ditador de plantão ou ditador por tempo indeterminado.
                            Uma vez, o ex-presidente Bush pai, no discurso de posse para a Presidência dos EUA, declarou: “O tempo do ditador se acabou.” Isso foi no tempo da Guerra do Golfo(1990-1991), quando o Iraque invadiu o Kwait. As forças de coalizão das Nações Unidas, sob a liderança americana, conseguiram derrotar Saddam Russein. Suas palavras, porém no contexto atual, viraram apenas retórica vazia, visto que as ditaduras continuaram e continuam assombrando os homens em alguns países.
                          Se o estado discricionário, por via militar, se instala num país qualquer, rompe-se de repente todo o arcabouço jurídico do Estado. Os partidos políticos existentes se esfacelam, os direitos inalienáveis do indivíduo são eliminados da noite para o dia e toda a estrutura da máquina do Estado sofre um colapso. É o caos instantâneo que se estabelece. Os déspotas que se apoderam do poder, para que deem continuidade mínima à administração do país, provocam alterações substanciais em todos os setores do Estado.
                         O país ideologicamente se divide. Os compatriotas deixam as ideias comuns de solidariedade mútua para ingressarem em blocos divisórios a favor ou contra os novos donos do poder. Este é um dos primeiros males semeados pelas ditaduras. Ou seja, o irmãos da mesma pátria se tornam hostis entre si, cada um defendendo suas pretensas ideologias. A pátria é ferida em sua unidade de diversidade de opiniões políticas mantidas em campos ideológicos diversos mas não como inimigos sangrentos. A ditadura, porém, sabendo que depende da mínima fachada para se manter no poder, redesenha uma forma de criar partidos artificialmente mas sem nenhuma independência de programas com nítida coloração política. Assim, o Senado, a Câmara dos deputados e mesmo o Judiciário ficam à mercê dos humores do ditador. Cria-se, portanto, um caricatura de governo. O povo, por sua vez, no geral, pouco ou nada se dá conta das mudanças radicais que se instalaram nos palácios dos governos. A arraia miúda, despolitizada, sem instrução e qualificação alguma, sem consciência efetiva dos seus direitos e obrigações, vai chafurdar na monotonia de suas vidas sem perspectivas e sem sentido.
                     Enquanto isso, os governantes autoritários, senhores todo-poderosos, uns mais outros menos, gerenciam suas funções de mandonismo, de árbitro–mor , com poderes ilimitados, senhor do destino da vida ou da morte de seus povos, a eles submissos sob o tacão de suas botas, das armas e do poder de fogo que, se necessários, podem ser empregados contra os ex-compatriotas, porque, numa ditadura, a noção de pátria se distorce e se abastarda..
                    A legalidade sofre um golpe mortal e, para sobreviver, se acomoda ao novo status quo da arbitrariedade sem limites. Dificilmente, as ditaduras se eternizam. O seu destino é o fracasso, a derrota dos autocratas. O seu fim é quase sempre trágico, assim como de seus familiares e de seus asseclas mais próximos. Poucos governos discricionários, com na China, na Coreia do Norte, em Cuba, em alguns países africanos se sustentam pela força e ignomínia de suas lideranças. A Síria está a um passo da derrocada de um tirano sanguinário e genocida. Assim, no passado ocorreu com Hitler, Mussolini, Franco, Salazar, Pinochet, Idi Amin, entre outros inimigos da humanidade.
                   O século 21 não há de ter o mesmo destino nefasto de ditadores. Vejo como tendência dos tempos modernos e de alta evolução tecnológica, que haverá um horizonte cujo brilho é o da esperança de uma nova era de estabilidade de governos sob a égide da paz e da democracia. Não haverá espaço para novas ondas de tomadas do poder por caminhos anti-democráticos. Por isso, os povos manietados por ditadores não se conformam com o seu estado de amordaçamento político dian te dos anseios de liberdade, de conquistarem com independência seus objetivos individuais. Daí os protestos, as oposições em armas contra a prepotência da tirania.
                 As facilidades das comunicações através da Internet, sobretudo das redes sociais de comunicação instantânea e globalizada, terão um largo espaço de barganha para difundirem ideias de liberdade e de autonomia da sociedade civil, de melhor compreensão do que seja o sistema democrático de governo. Não há povo que não almeje a liberdade do pensamento, a liberdade de locomoção, a liberdade de escolher o seu destino, de planejar as suas vidas, de ter a sua utopia pessoal e intransferível, a liberdade enfim, de produzir obras de arte nos vários setores da criação artística, sem as peias dos produtos artísticos das ditaduras de esquerda ou de direita ou mesmo as oriundas dos setores militares.
              Por isso, achei comovente e ao mesmo tempo melancólico o testemunho de um escritor argentino, Juan Guelman, poeta tido hoje como um dos mais importantes poetas de língua espanhola. Guelman deu uma entrevista ao jornalista Guilherme Freitas, da equipe de Prosa & Verso de O Globo. O poeta esteve em Brasília neste mês participando da I Bienal Brasil do Livro e da Leitura em Brasília.
Seu depoimento repassado de saudade e de tristeza pelo trágico destino que teve seu filho Marcelo, vítima, com tantas outras, da ditadura argentina, responsável por 30.000 desaparecidos. Triste triplamente porque sua nora grávida de uma menina. Maria Cláudia García, havia também sido assassinada por militares argentinos, mas seus restos mortais ainda não foram localizados, mas Guelman teve informações de que restos mortais encontrados num batalhão uruguaio podem bem ser os da sua nora. O poeta só está aguardando o resultado de “exames” para identificação. A filha que ela teve com Marcelo fora entregue a uma família no Uruguai. O poeta só conseguiu encontrar a neta, após penosas tentativas de localização, vinte e três anos depois do sequestro em 1976.
            A grande saga em que se converteu a sua história de pai de um desaparecido consistiu em lutar, com todas as suas forças, no sentido de descobrir o corpo do filho, o que só aconteceu em 1990.Para o pai foi “..como se tivesse recuperado sua memória”, da mesma maneira que o encontro com a sua neta, de nome Macarena, lhe trouxa grande alegria de avô.
Guelman não mais quis retornar para a Argentina. As cicatrizes foram grandes demais e, mesmo com a volta à democracia, não mais se sentiria bem em seu país . Escolheu como lugar definitivo o México onde continua produzindo poesia. A morte de seu filho amado lhe inspirou um poema longo a ele dedicado  chamado “Carta aberta.”
          O exemplo do Juan Guelman resume o de tantos outros argentinos sofridos e eternamente amargurados, cujo símbolo maior são “as mães da Praça de Maio”, com os seus desaparecidos durante o  longo pesadelo que foi o período em que imperavam absolutas  as forças antidemocráticas, o que demonstra à saciedade o quanto as ditaduras fazem mal à humanidade e o quanto os homens de bem e de pensamento livre, em qualquer parte, devem lutar incessantemente para que o ser humano não perca a vida e a liberdade.