SANGUE: CENTENÁRIO DA ESTRÉIA

                                                                                                    Cunha e Silva Filho


                    Em 1985, Da Costa e Silva fazia cem anos, pois nasceu em 1885. Seu centenário foi merecidamente comemorado no Piauí, estado natal do poeta. Todo um ano cultural no Piauí foi-lhe dedicado, e sua poesia relida e reavaliada. Desse evento colheram-se frutos dadivosos naquele ano de celebração: uma numerosidade de artigos publicados, ensaios, não só de escritores e estudiosos piauienses, mas de vários críticos e intelectuais fora do Piauí foi reunida numa uma edição especial da consagrada revista Presença, nº 13, Ano VI, com capa exibindo o título “100 anos de Da Costa e Silva” e estampando a figura do poeta. A par disso, houve a participação inestimável do filho do poeta, o embaixador Alberto da Costa e Silva, ele próprio também poeta e um influente intérprete da obra do pai, responsável, desde, pelo menos 1950, pela divulgação da obra dacostiana, dando um belo exemplo, na história literária brasileira, de dedicação a toda prova de um filho à preservação do legado poético paterno. 
                  No ano de 1985 saiu também um importante Tablóide, Da Costa e Silva e a crítica literária, organizado exemplarmente por um grupo de professores da Universidade Federal do Piauí com o apoio do CNPq. Essa publicação significou um marco notável para a fortuna crítica do poeta da saudade., esse ilustre filho da cidade de Amarante. O referido Tablóide na realidade era parte de um projeto mais ambicioso pretendido pelos pesquisadores da UFPI: mapear a produção de autores piauienses de alta qualidade e recolher sua produção esparsa e inédita. No caso de Da Costa e Silva, o Tablóide preparou uma seleção de estudos de várias épocas sobre o poeta, resultando numa espécie de antologia crítica com diversas visões e abordagens. 
                  Agora, neste ano, no Piauí me parece que se está festejando a obra de estréia de Da Costa e Silva – Sangue - , editada em Recife pela Livraria Francesa no ano de 1908. A estréia de Sangue teve grande repercussão na época em Recife e, provavelmente, no Piauí e em âmbito nacional, segundo deduzimos das palavras de Darcy Damasceno, citado por Alberto da Costa e Silva (Cf. “Notícia sobre Da Costa e Silva”, introdução de Alberto da Costa e Silva à segunda edição da Poesias Completas, editora Cátedra, 1976, p. 25).
                Examinando a bibliografia recolhida há anos por Alberto da Costa e Silva constante das edições da obras completas do poeta, verifico que artigos ou estudos sobre Da Costa e Silva não revelam um número considerável de apreciações críticas de Sangue publicadas no ano da estréia do poeta nem tampouco em anos mais próximos ao lançamento da edição princeps. É bem provável que muito material se tenha perdido na voragem do tempo, fora a circunstância de que o poeta não era muito dado a guardar recortes de jornal, como afirma Alberto da Costa e Silva (Cf. Da Costa e Silva . Poesias Completas. Nova edição revista e ampliada, editora Nova Fronteira, 2000, p. p.14).
               As matérias críticas mais remotas ou aproximadas da data de estréia são assinadas por Alfredo de Carvalho (1909), Benedito Nogueira (19090, Artur Orlando (1909) Mario Rodrigues (1909) e Américo Facó (1911). Isso já seria por si só campo fértil para os pesquisadores da fortuna crítica relativa ao livro de estréia do poeta. Na minha pesquisa para o mestrado não tive acesso a essa publicações antigas, o que é uma pena. Num julgamento preliminar, diria que o grande salto da fortuna crítica dacostiana só ocorreria a partir da publicação de Zodíaco (1917).
              Sangue foi escrito no período cultural chamado Belle époque, que se estende no Brasil, conforme nos lembra José Guilherme Merquior (Presença, op. cit., p. 40) até “no mínimo” 1930. Na Europa tal período teria para aquele crítico início em 1895 (Teoria literária, org. por Eduardo Portella, Tempo Brasileiro, 1979, p. 79).
               Sangue engloba 48 peças poéticas e se abre com um poema já famoso “Cântico do sangue” – uma exaltação do valor da vida simbolizada pelo elemento “sangue” – tema, por sinal muito recorrente no contexto cultural da primeira metade do século 20, segundo nos recorda Otavio Paz (A outra voz. Trad. de Wladir Dupon. São Paulo, Siciliano, 1993, p. 42). O vocábulo “sangue” – vale ressaltar – não somente é no poema empregado na acepção biológica, mas também expressa a exacerbação dos sentimentos, o que configura uma flagrante contradição de um estilo poético que se singulariza por uma espécie de aversão às formas concretas da natureza, embora, por outro lado, saibamos que o Simbolismo jamais se pautou pelo racionalismo na interpretação do Cosmos e da existência humana. É significativo que o livro termine com o soneto “Depois da luta,” cujo último verso, por sua vez, arremata com o vocábulo “sangue.” Recorde-se que, de outra parte, Augusto dos Anjos, no famoso Eu e outras poesias (1919)) tematiza o elemento sangue no poema “A obsessão de sangue.”
              O “Cântico do sangue” tipifica um exemplo paradigmático de um poema simbolista, com ressonâncias evidentes de um Cruz e Sousa tanto ao nível da expressão da linguagem quanto na forma do pensamento elaborado. Pode-se asseverar que o poema vale como um projeto poético a ser desenvolvido a partir de uma ampla reflexão sobre o sentido da existência através de um pertinaz exercício metapoético que procuraria dar conta da índole múltipla e dinâmica de sua produção literária. Cumpriria, então, verificar até que ponto o seu projeto poético confirmaria em parte ou plenamente o seu intento com as obras que posteriormente lançaria , isto é, com Zodíaco, Pandora, Verônica e Alhambra. É o que veremos em outra oportunidade.