Rousseau: devaneios do caminhante solitário

FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

 

O trabalho, na visão dos antigos, não é um fim em si mesmo; se o fosse, os ho­mens estariam inseridos na necessidade natural como única dimensão da vida. Ora, o ethos humano não consiste na pura e simples submissão à natureza, mas na liberdade: para além do animal laborans, a dignidade humana se revela no pensamento e na ação sem finalidade técnica. São estas as características pelas quais o ser humano se dá a conhecer a si mesmo, distinguindo-se da exterioridade bruta e da instrumentalidade imediata. A desvalorização do trabalho na cultura antiga provém de uma concepção que torna inseparáveis o pensamento e a liberdade. Disto decorre que a ação, diver­samente do trabalho, não se submete à necessidade, mas é da ordem da criação. O que há de mais intrínseco no homem é a política – a ação política (o animal político) –, porque se trata de uma atividade que tem como finalidade o próprio homem: o ob­jeto da política é a humanidade e o significado do agir político é o viver junto. A vida social e a liberdade devem ser uma e mesma criação. Por isso a ação, na sua dimensão ética, isto é, propriamente humana, não pode ser objeto de ciência demonstrativa, para Aristóteles, mas tão-somente do discernimento prático, que releva da sabedoria, mais do que do raciocínio.

No mundo moderno, em que a liberdade tornou-se princípio e ideia, ausente do modo de vida na sua efetividade, a necessidade triunfou na vertente monofônica do racionalismo aplicado a todas as dimensões da existência. Na perspectiva de uma racionalidade externalista, moldada segundo os parâmetros da represen­tação do mundo natural, a exigência do trabalho como condição de reprodução da vida aparece como virtude, ou pelo menos como consequência inevitável da condição humana. Indivíduo e sociedade são então associados ao trabalho, ex­pressando-se numa mesma realidade, a produção. O trabalho humano passa a ser definido como a intervenção refletida na natureza, assinalando-se assim que o pensamento está comprometido com a produtividade. Opera-se então uma altera­ção fundamental: tanto a ação quanto o pensamento são concebidos sob o signo da necessidade. A ação é naturalmente necessária; e o pensamento desfruta da “liberdade” de reconhecer esta necessidade.

Não é surpreendente, então, que o trabalho venha a ser intelectualmente valorizado e moralmente justificado. Será, até mesmo, sacralizado. Entretanto, a reação ao racio­nalismo estrito, contemporânea já ao seu próprio surgimento, expande o pensamento para além dos limites da racionalidade técnica: pensar é também imaginar e sonhar, mas não como modalidades, no estilo cartesiano, mas como autonomia do imaginário e do sonho. Assim, não é por acaso que a última obra de Rousseau, que coroa a ex­pressão do seu pensamento, seja as Rêveries Os devaneios de um caminhante solitário. Se a pretendida autonomia do pensamento sempre esteve submetida ao trabalho da razão, no universo cartesiano, agora o pensamento parece atingir a liberdade em si mesma, sem foco objetivo, sem unidade: o devaneio é o desfrutar do pensamento, que difere totalmente de seu uso pragmático e finalista.

Talvez seja preciso constatar que o devaneio difere do sonho pelo menos em dois aspectos: primeiramente, a fantasia não é submetida posteriormente a um trabalho de interpretação para revelar o significado oculto; em segundo lugar, o devaneio não produz o fantástico, mas dilui a realidade transfigurando-a para além de suas articulações habituais. O ócio prepara o devaneio; o ócio também faz prosseguir o devaneio em meditação. Dois modos pelos quais a realidade revela a interioridade do sujeito e do mundo, num mesmo movimento que se aproxima do êxtase. Talvez tenha sido este o estado de espírito que Rousseau buscou durante toda a vida nas suas tentativas de decifração das origens: sociedade, linguagem, subjetividade; nas reconstituições teóricas e nas narrativas romanescas; na formulação das hipóteses e no exame da realidade.

Ele mesmo confessa, no entanto, que, ao longo deste trabalho imenso, o que na verdade almejava era a tranquila solidão, o afastamento dos afazeres do mundo, um nada fazer que é, na verdade, condição de um intenso compromisso com o conhecimento da própria alma. Neste sentido as Rêveries constituem uma narra­ção da subjetividade na instância inalcançável para a reflexão convencional, isto é, para o trabalho da razão. Assim, as categorias cartesianas são subvertidas: em vez da unidade, a pluralidade; em vez do ponto de partida, os pontos de passa­gem; em vez da ordem metódica, a divagação; em vez da objetividade, a mais absoluta imanência do sujeito a si mesmo.

Vale a tentativa de compreender, a partir deste iluminista incompreendido, que depois de um longo e amargo périplo pelos negócios do mundo parece ter en­contrado a arché existencial, alguns aspectos de um formidável recuo do pensa­mento para identificar-se ao sentimento.