Crime mesmo que deu o que falar em todo o Brasil, até se tornar um caso célebre, foi certamente aquele a quem os jornais e revistas denominaram “O Crime da Lagoa”, “O Crime do Citroen”, “O Crime do Sacopã”. Foi um crime que dominou os noticiários por longo tempo, permanecendo ainda na mídia por vários anos, na realidade até o raiar do novo milênio. Em pleno 2006, ainda se falava do rumoroso caso.
As primeiras notícias davam conta de que , no dia 6 de abril de 1952, Afrânio Arsênio de Lemos, bancário do Banco do Brasil, foi encontrado morto dentro de seu carro, um Citroen negro, na ladeira do Sacopã, localizada na Lagoa Rodrigo de Freitas. Figura carimbada no eixo Copacabana-Leblon, Afrânio acabara de chegar de Bauru, interior de São Paulo, onde passara suas férias, quando recebe um chamado telefônico misterioso, voz de homem, convocando-o para um encontro. Logo ele saía ao encontro da morte.
Quando, na manhã seguinte, a polícia comparece ao local do crime, encontra Afrânio deitado no fundo da parte da frente do carro, todo ensangüentado, com a cabeça apoiada em uma almofada que estava sobre o banco de direção, logo se descobrindo que fora abatido com três tiros de revólver. Logo também sua identidade é revelada, fato confirmado por seu irmão, Aluizio Mendes, funcionário do Ministério da Aeronáutica.
Após os procedimentos de praxe, a polícia inicia as investigações, sendo a vingança, afastada a versão de latrocínio a hipótese que toma maior vulto, porquanto uma das primeiras descobertas da polícia é que Afrânio era chegado num rabo de saia, quase sempre visto com mulheres diferentes. Aliás, o bancário tinha dois violentos amores: carros e mulheres. E não tarda, um nome de mulher – Marina – começa a correr de boca em boca, isso porque, dentro da carteira da vítima, encontrou-se um retrato de uma jovem com a seguinte dedicatória: “Este sorriso te pertence”, assinado por uma certa Marina.
Em um primeiro momento, Marina fora tomada como a esposa do bancário, fato logo desmentido, ao se descobrir tratar-se de uma antiga namorada. Logo também se descobriria que ele era casado e separado da esposa. Assim, em seguida, o foco das atenções se desloca para a esposa abandonada e para um médico amigo da família, tido como seu amante, os primeiros suspeitos. Ismênia Tuneis, a ex-esposa, assim que cercada pelos repórteres, desmente tudo. Realmente fora casada com Afrânio durante dois anos. Mas, por incompatibilidade de gênios, se separaram, continuando, porém, amigos. Também o médico era íntimo da família e não seu namorado ou companheiro. A polícia, após algumas investigações, tem que abandonar essa pista que parecia promissora. E tudo volta à estaca zero.
Eis que, depois de vários dias de investigação, a imprensa alvoraçada à busca frenética de culpados, aparece uma testemunha que prometia abalar o caso. Gilda Pacine, empregada doméstica em Copacabana, revela à polícia que se encontrava com o namorado, um sargento da polícia militar, na orla da lagoa, quando dois homens param um automóvel e se acercam dele. Dentro do carro, Afrânio e mais uma pessoa. Um dos homens se chega à janela do carro onde se encontra o bancário e, após uma rápida conversa em voz baixa, os ânimos se exaltam. Afrânio sai do carro e os dois que haviam discutido se atracam, trocando socos e pontapés, após o que o agressor saca de um revólver e abate o bancário com três tiros. Consumado o fato, o desconhecido pega a vítima e a coloca dentro do carro. Depois, vai até a praia, joga o revólver no mar, entra no carro da vítima e desaparece. No outro dia, o corpo é encontrado.
A história de Gilda é considerada pela polícia bastante fantasiosa, apesar de, pelos detalhes, possuir alguns laivos de verdade. Só que nenhuma pista mais forte aparece em seu depoimento, fazendo com que os investigadores continuassem as diligências em busca do culpado. E as luzes voltam a dirigir seu foco para a antiga namorada, Marina de Andrade.
A imprensa, principalmente a mais sensacionalista, cerca Marina de todos os lados; A moça se declara perplexa e amedrontada, declarando também que nem sabia que Afrânio era casado, apesar de freqüentar a família do moço. Diz-se cansada e em estado de depressão, também se sentindo perseguida em virtude dos acontecimentos. Considera-se prejudicada pelo fato de estar sob o foco da imprensa simplesmente por causa de uma simples fotografia.
E assim, um a um, os suspeitos são abandonados, ficando a polícia, mais uma vez, de mãos abanando.
Em retrospectiva, a polícia parecia se sentir perdida mesmo e deveras acuada pela opinião pública, que exigia um culpado. Os boatos corriam a solto por todos os cantos, a maioria afirmando haver peixe graúdo na história. O delegado encarregado do caso, Hermes Machado, constantemente sabatinado pela imprensa, também constantemente saía pela tangente: não, ele não sabia de nenhuma interferência alienígena no caso; não, não havia diligências particulares atrapalhando as investigações, nem as obstruindo; não, ele não poderia dizer se havia mais de um suspeito no caso; sim, ele trabalhava, apesar da falta de provas, com a hipótese de vingança como móvel do crime; sim, ele acreditava estar perto da solução do caso. E por aí afora.
A essa altura, a polícia já tem um retrato físico e psicológico do bancário, além de já ter mapeado seus passos. Sabia que ele morava no Engenho Novo e trabalhava na agência de Botafogo do Banco do Brasil; que ele, rapaz bom e tranqüilo, com muitos amigos, era também um desportista, sendo um aficcionado em corridas de automóvel. Sua outra diversão eram as mulheres. Gostava muito de mulheres. Que no dia do crime, ele chegara a casa às 14 horas, e, às 20h30min, uma voz masculina o chama ao telefone; como não fora atendido, a pessoa volta a ligar 20 minutos depois, desta vez conseguindo seu intento. Algo deve ter saído dessa conversa, porque, 10 minutos depois, novo telefonema, novamente atendido por Afrânio. Segundo sua irmã, o rapaz dissera ao telefone estar cansado da viagem, não podendo ir a um encontro proposto pelo interlocutor do outro lado da linha. Durante a conversa, porém, mudando de idéia, ele concorda em se encontrar com a pessoa, informando-lhe que estaria em frente ao Iate Clube às 10h30min, descrevendo, inclusive, seu carro, dizendo tratar-se de um Citroen negro. Nunca mais voltou do encontro.
Ainda sem rumo nas investigações, apesar do aparecimento de várias outras testemunhas, a polícia volta novamente suas investigações em direção à bela Marina de Andrade, que, por causa de sua violenta exposição na mídia, tinha se tornado uma celebridade, alguns vaticinando até uma carreira no cinema. Daí a pouco, se depara ela com um nome até então desprezado: Jorge Alberto Franco Bandeira, um tenente aviador da Aeronáutica que servia no Ceará e estava no Rio de Janeiro para participar das olimpíadas das Forças Armadas. Sisudo, com pinta de galã de filmes mexicanos, o jovem tenente é o atual namorado de Marina, sua noiva, segundo alguns. Ele bem que poderia ser o assassino de Afrânio, já que, um dos motivos mais aceitos para o crime pela polícia, era o de que uma mulher poderia ser o “pivot” do crime.
A polícia também se prendia a um detalhe: segundo a irmã da vítima, que escutara a conversa, a pessoa do outro lado da linha não conhecia o Citroen, já que, durante a conversa, Afrânio o descrevera para o outro; contudo, bastante interessante era o fato de o criminoso saber o número do telefone do bancário, apesar de esse número não constar da lista telefônica. Assim, a conclusão da polícia era de que algum conhecido do morto o fornecera ao assassino. Em síntese, Marina bem que poderia ter fornecido o número do telefone de Afrânio para o noivo, tenente Jorge Bandeira.
Dessa forma, a polícia resolve concentrar suas investigações no agora chamado tenente Bandeira. Primeiramente deveria ser solicitada sua arma; depois, confrontá-la com as balas extraídas do corpo da vítima e com uma outra recolhida no interior do carro. Se eles conseguissem provar que as balas pertenciam mesmo à arma do tenente, então, o assassinato estaria esclarecido.
Entretanto, as coisas se precipitam; um ambicioso jovem advogado, Leopoldo Heitor, absolutamente fascinado com os holofotes da fama, e que, alguns anos depois, seria o personagem principal de um crime tão rumoroso quanto esse, o famoso caso do desaparecimento da milionária Dana de Teffé, começa a soltar para a imprensa que sabia o nome do assassino e que uma pessoa, sua cliente, fora testemunha ocular da história. E, apesar da insistência dos repórteres, Leopoldo Heitor se nega a revelar o nome da testemunha, conseguindo o que queria, ser o foco de atenção da imprensa. E ele não perde tempo: Vai diariamente à porta da delegacia do 2.º distrito policial encarregada do caso, dá dezenas de entrevistas, briga com o delegado Hermes Machado e, finalmente, quando a imprensa estava na eminência de descobrir a famosa testemunha, Leopoldo Heitor solta a bomba e revela: A testemunha se chamava Valter (ou Walton) Avancini e era bastante amigo de Afrânio.
A história contada por Avancini era, para dizer o mínimo, curiosa; segundo ele, estava em São Paulo, capital, quando, sem querer, se encontra com Afrânio, que estava voltando para o Rio de Janeiro, após uma temporada em Bauru, interior do estado. Convidado a voltar com ele, servindo de companhia, Avancini aceita. Durante a viagem, o bancário se abre com ele, contando-lhe tudo sobre um romance que estava vivendo. De acordo com Afrânio, havia uma jovem em sua vida por quem se apaixonara, mesmo sendo casado. Seu nome era Marina e atualmente estava de romance com um tenente da Aeronáutica, conhecido como tenente Bandeira, um homem perigoso, de semblante taciturno e atitudes desconfiadas. Segundo ainda Avancini, Afrânio lhe confessara estar com medo de ser morto pelo rival que já conhecia seu romance com a jovem. No dia seguinte estava morto.
Enquanto isso, novos fatos são revelados e novas testemunhas aparecem: dentre outros, um jovem de nome Geovan afirma à polícia ter visto Avancini ao lado do bancário no dia do crime. Quando, no outro dia, fica sabendo do acontecimento, logo desconfia ser Avancini o assassino, por saber de seu passado cheio de delitos. Ou seja, de testemunha, Avancini também passa a suspeito.
Contudo, o mais sensacional ainda estava por vir. Outro jovem, Gilberto Nogueira Bastos, estudante de arquitetura, conta à polícia que, no dia do crime, estava em seu carro voltando para casa, quando vê duas mulheres em estado de grande aflição. Devido ao adiantado da hora, oferece-lhes uma carona, prontamente aceita. Elas dizem-lhe estarem indo em direção ao Iate Clube, onde, conforme ficaria sabendo depois, o bancário se encontraria com o tenente Bandeira para solucionarem o triângulo amoroso.
Na verdade, ficara sabendo durante a viagem que Marina saíra de casa com a mãe a tiracolo para tentar evitar uma tragédia. Só que nada encontraram no Clube dos Caiçaras, àquela hora deserta. Após verificarem o local por alguns instantes, resolvem voltar, pedindo-lhe que as deixassem em determinado ponto no Leblon. No dia seguinte, soube pelos jornais que o bancário havia sido assassinado na estrada do Sacopã. Na mesma hora, ele liga os dois fatos, tendo a certeza de que as previsões das duas mulheres se confirmaram, um crime tendo sido realmente cometido. Ele, como todo o mundo, permanece na dele por não ser efetivamente uma testemunha, mesmo estando certo de que ele poderia ser a chave do mistério.
O cerco contra o tenente Bandeira se fechava rapidamente.
De posse de novos fatos, Marina é chamada ao 2.º distrito policial para novo e secreto depoimento. Acuada, confirma todas as palavras do jovem estudante de arquitetura. Seu propósito era mesmo evitar que o tenente Bandeira efetivamente matasse o bancário. Quando soube do crime no dia seguinte, ficara calada por ter sido ameaçada de morte pelo namorado, de temperamento violento e frio. Logo, porém, para desespero de Hermes Machado, Marina, provocada pela imprensa, anuncia que seu depoimento não tinha nenhum valor legal, pois fora conseguido sob coação, debaixo de violento interrogatório. Disse mesmo que negaria tudo em juízo. Sobre o estudante, disse que nem sabia quem era e que tinha sido induzida a confirmar suas palavras. Disse também que, livre das ameaças, iria restabelecer a verdade dos fatos.
Face aos novos depoimentos, a polícia pede a prisão preventiva do tenente, que chega escoltado à delegacia. O inquérito policial incriminando Bandeira é então enviado à justiça, onde novos e importantes depoimentos são esperados. Enquanto isso, a imprensa lavava a égua, não passando um dia sem que novos e surpreendentes detalhes, na maioria falsos, aparecessem em manchetes escandalosas. Tanto Marina, quanto o tenente são tratados diariamente como superastros, o que faziam, o que comiam, com quem conversavam etc. etc.
Com o início do sumário de culpa do oficial, o Tribunal de Júri de transforma em uma arena de guerra, a sala de audiência da 1.ª vara criminal lotada de curiosos e estudantes de direito durante todas as fases do trabalho, os quais foram presididos pelo juiz Costa Caiubi, e com as presenças do promotor, Emerson Lima, do advogado de acusação, Milton Sales, e do advogado de defesa do tenente, Romeiro Neto.
As testemunhas, então, começam a ser ouvidas. Alberto Taunay, que supostamente passara próximo do local na hora do crime, repete seu depoimento anteriormente dado à polícia. Que estava próximo do Clube dos Caiçaras quando ouve alguns disparos de arma de fogo vindo de dentro de um carro. Curioso, aproxima-se do local em seu próprio carro, conseguindo ver o homem que estava ao volante. Segundo ele, a pessoa tinha o mesmo tipo físico do tenente Bandeira, afirmando ainda que, se não tivesse sido ele, teria sido uma pessoa muito parecida. Outra testemunha, Maria Helena, aliás, Maria Raimunda Moreira Ribeiro, conta em seu depoimento que, alguns dias após o crime, Marina teria ido ao seu apartamento e de lá ligado para o tenente, a essa altura lá no Ceará, solicitando-lhe se desfazer o quanto antes de sua arma, porquanto um comissário de polícia do Rio de Janeiro teria ido para Fortaleza para realizar algumas investigações relacionadas com o crime.
Como alguém envolvido em crime tão famoso iria ligar de uma casa de pessoas, no mínimo, não tão próximas e falar sobre fatos relacionados com ele de maneira tão óbvia, Maria Helena não explicou. Mas, a coisa tinha virado isso mesmo: um circo, onde valia tudo para se ter um minuto de fama. E o tenente, impávido colosso. Não se manifestava de forma alguma quando escutava depoimentos como esse, o semblante absolutamente neutro, mais chegado ao taciturno. Apegou-se, obstinadamente, ao seu depoimento inicial, segundo o qual mal conhecia Afrânio, que se lembrava dele porque, dias antes, o bancário tinha tirado “um fino” nele e em Marina em sua possante moto, uma Harley-Davidson, e que, na noite do crime, se encontrava na casa de sua avó paterna.
O terceiro depoimento é mais contundente; Elda Peres, que se disse amiga da mãe do tenente, conta que, no dia seguinte ao crime, Marina a procurara para pedir-lhe o favor de guardar um revólver pedido emprestado pelo tenente; perguntada por uma amiga da depoente, Laura Macedo, o porquê de o tenente não guardar a arma em sua própria casa, na casa de sua mãe, Marina ter-lhe-ia respondido que lá seria um lugar muito perigoso, pois seria o primeiro lugar onde a polícia a procuraria. Segundo Elda Peres, ao saber dos comentários da amiga, o tenente foi tomado de violenta fúria, afirmando mesmo que ela merecia ter o pescoço torcido como o de um frango até morrer. Também sua filha, Leila Peres, bota mais lenha na fogueira, dizendo em seu depoimento que o tenente tinha um ciúme doentio de Marina, ameaçando de morte quem dela se aproximasse, ou aqueles que ele soubesse terem tido qualquer romance com a moça. Mais depoimentos estranhos, também recebidos de forma absolutamente fria e sem reação do acusado.
Então chega o momento do depoimento mais esperado: o de Marina de Andrade. Chegou como uma estrela de cinema, toda a imprensa brasileira presente. E como quase toda essa imprensa já vinha noticiando, ela desmente todo o seu depoimento prestado à polícia, alegando coação por parte de Hermes Machado. Apesar do pesado interrogatório a que é submetida, Marina se houve muito bem, mostrando-se firme e decidida, negando absolutamente tudo. Enfrenta altivamente o promotor e o advogado de acusação, todos, inclusive a inevitável platéia, impressionados como ela abordava os pontos mais delicados do processo com calma e precisão. E por fim, e um tanto melodramática, ela, com os olhos marejados de lágrimas, exclama que, naquela situação de coerção em que se encontrava, ela assinaria qualquer documento, mesmo se dissesse que ela era a criminosa.
E por fim o depoimento de Walton (Valter) Avancini. E esse se dá sob forte comoção devido ao fato de que, Leopoldo Heitor e seu cliente Avancini, ao saírem de uma boate em Copacabana, são surpreendidos em uma emboscada, ficando o carro do advogado, outro Citroen, crivado de balas. Armado o circo, Leopoldo Heitor gritava aos quatro cantos ter sido vítima de uma emboscada, que aquilo era para ele não se meter onde não era chamado, mas que ele, Leopoldo Heitor, não tinha medo de caras feias e nem temia represálias de quem ele sabia muito bem quem era. Valter Avancini, inclusive, com medo, se esconde na própria delegacia, somente saindo para prestar depoimento no Palácio de Justiça, cercado pela polícia. E como todo advogado em busca de sensacionalismo, Leopoldo Heitor é uma espécie de bufão, mas um bufão esperto, só sua versão aparecendo, respondendo com evasivas, ou mesmo não respondendo, as perguntas dos repórteres que não lhe interessavam. A imprensa fica em polvorosa, deliciada com mais esse ingrediente.
Em seu depoimento perante o juiz, presente um tenente Bandeira calmo como sempre, Avancini vai direto ao ponto. De sua boca sai a sentença definitiva: “Eu me encontrava no Citroen quando se deu o crime e foi o tenente Bandeira quem matou Afrânio”. E disse mais: que ele marcara um encontro com Afrânio em Copacabana às 23 horas, chegando este na hora combinada, só que acompanhado do tenente. Depois rumaram em direção ao Clube dos Caiçaras, ninguém conversando com ninguém durante o trajeto. Porém, assim que o carro é estacionado, os dois começam a discutir de forma alterada, ambos trocando insultos. Em determinada altura da discussão, Afrânio agride o tenente com um soco. O último sai do carro, saca o revólver e dispara vários tiros no bancário. Avancini, apavorado, desce correndo do carro, após o qual toma um táxi para a cidade. Ainda segundo ele, nada contou à polícia por medo, devido ao seu passado um tanto quanto problemático em termos policiais.
A boataria então toma conta da cidade. Um dos mais fortes envolvia um mais do que influente político da República, o senador Alencastro Guimarães, que, segundo se murmurava, estaria por detrás das cortinas, manobrando os cordéis, a fim de incriminar o tenente. Segundo esses boatos uma filha do senador, conhecida nas altas rodas do “café-society” como "Mimi", viúva de um ricaço dono de uma fábrica de sabonetes, teria tido um caso amoroso com Afrânio, o que teria desagradado profundamente sua família. Logo, de acordo com a boataria, sua morte estava decretada. E mais: em versão encampada até pelo próprio advogado de Bandeira, Souza Neto, um irmão de Mimi de nome Fritz é que teria contratado dois homens para matar o bancário, um guarda-municipal de sobrenome Teixeira Bastos e o próprio Avancini.
Até o fim do ano, o público leitor acompanha a trama policial cheio de mórbida curiosidade, e mesmo após a apresentação do tenente à justiça como o matador de Afrânio, a opinião pública não fica satisfeita, a maioria considerando o tenente inocente. Sua calma e tranqüilidade impressionam a todos, e suas negativas eram aceitas como convincentes pela população e por parte da mídia.
Em 1954, em um dos julgamentos mais concorridos no Rio de Janeiro, com repercussões em todo o país e até no exterior, o tenente Bandeira foi condenado a 15 anos de prisão, dos quais cumpriu sete em regime fechado. Nesse ínterim, em 1959, Bandeira conseguiu um aliado de peso para colocar em cheque seu julgamento, o controvertido deputado Tenório Cavalcanti, conhecido como “O Homem da Capa Preta”, político temido na baixada fluminense, seu feudo eleitoral, que, sem papas na língua, acusava parte da grande imprensa de, na realidade, não querer que a verdade viesse à tona.
O Homem da Capa Preta, filme com José Wilker baseado na vida de Tenório Cavalcanti.
Tenório, um político que sabia muito bem explorar a sanha sensacioalista da imprensa, em 24 de outubro de 1959, por exemplo, concede curiosa entrevista à revista o Cruzeiro que estampou uma carta-denúncia do deputado em que ele acusava alguns órgãos da mídia impressa, mais precisamente, O Globo e Última Hora:
“Neste momento sou alvo de uma das mais violentas e bem organizadas campanhas jamais sofridas por um homem público brasileiro. Não se discute mais o crime do Sacopã. Discute-se Tenório Cavalcanti. Nada me é poupado. Nem a honra, nem a família. Dois jornais brasileiros, de coloração tão diversa, deixaram de lado velhas e tradicionais divergências para, em artigos e reportagens, atacar os defensores de Bandeira.
Refiro-me a ‘O Globo’ e ‘Ultima Hora’. Sem respeito pelo seu público, esses dois órgãos de imprensa transformaram-se em promotores públicos da nova fase Sacopã. Não é preciso muita argúcia para se compreender onde querem eles chegar. Desejam, com esse fogo de barragem, destruir as provas que inexoràvelmente temos acumulado em trabalho que vem empolgando a Nação.
Que apresentam os acusadores de Bandeira contra a nossa compacta avalancha de provas? Nada. Apenas desaforos e velhos chavões ultrapassados. Ainda agora, um desses jornais, ‘Ultima Hora’, com imaginação de novelista, confeccionou um encontro meu com o titular da Justiça, Sr. Armando Falcão, a quem eu teria ‘afirmado não ter provas da inocência de Bandeira’. Nada mais absurdo e ridículo.
Esse encontro, com esse objetivo, só existiu ou existe na cabeça dos seus inventores. Como também inexistente foi a minha declaração ao Presidente Juscelino Kubitschek de que não possuía provas capazes de levar o Judiciário a uma revisão do processo Sacopã. A verdade é que os promotores públicos de 'O Globo' e ‘Ultima Hora’ estão em carência de melhor material. Tanto assim que, num lance à Rocambole, mobilizaram um velho ‘habitué' do crime e da trapaça, um ‘doutor’ Junqueira, como testemunha contra nós. É descer muito. Essa figura do 'bas-fond' da ‘escroquerie’ nacional será daqui por diante o retrato, de corpo inteiro, dos que colocaram Bandeira no fundo do cárcere.
É um retrato de lama. A lama com que o ‘O Globo’ e ‘Ultima Hora’ tentam inutilmente encobrir a verdade."
Finalmente, em 1972, o julgamento foi anulado pelo STF que encontrou falhas no processo, permitindo ao tenente ser reintegrado à Aeronáutica em 1974 e reformado com a patente de capitão, não obstante, por todo o resto de sua vida, amargurado, se considerar o mais injustiçado dos homens. Ele morreria em agosto de 2006, sem que conseguisse ser realmente considerado inocente pela justiça".
(http://decadade50.blogspot.com/2006/08/o-crime-do-sacop.html)
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