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 Pecado é provocar desejo e depois renunciar.

Renato Russo

Ao contrário do que muitos podem pensar, o dia estava lindo. Céu muito azul, sem nenhuma nuvem, e a temperatura, amena. Um típico dia de primavera. Talvez por isso tenha sido tão difícil. Quem sabe se o céu estivesse escuro, coberto por nuvens negras, riscado por descargas elétricas, com o som dos trovões fazendo a terra estremecer teria sido mais fácil.

O fato é que, apesar de o dia estar lindo e absurdamente agradável, Adão e Eva foram obrigados a deixar o Paraíso. Ingênuos, deveriam ter desconfiado. A Serpente não parecia uma “serpente normal”. Nenhuma outra tinha sequer olhado para eles, muito menos puxado uma conversa estranha sobre a importância do conhecimento. Contudo, todos os dias, Adão e Eva ficavam debaixo da árvore proibida jogando conversa fora com ela. Talvez fosse o tédio. Afinal, comer, dormir e andar era tudo o que eles faziam.

Além disso, havia a tal fruta que a Serpente não parava de lhes oferecer e que crescia justamente na árvore proibida. No início, eles ignoraram o oferecimento. A fruta não parecia saborosa. Com uma casca dura, amarelo-avermelhada, nem mesmo tinha um cheiro muito bom. Mas a Serpente estava obcecada e insistia que a provassem. Eles, no entanto, demoraram a ceder. Até o momento que a Serpente resolveu mudar o seu discurso.

Um dia, Adão e Eva estavam descansando perto da árvore proibida quando ouviram o chamado da Serpente:

- Psssiu, psssiu. Venham aqui, vamosss conversssar.

Eles se fizeram de surdos, andavam cansados das suas conversas sem sentido. Não deu certo. A Serpente, fingindo-se de magoada, perguntou:

- Vocêsss essstão me ignorando?

Encabulados, o casal quis negar.

- Claro que não! – respondeu Eva. – Estávamos apenas distraídos.

A Serpente olhou para os dois com um sorriso travesso.

- Dissstraídosss? Com o quê? – disse, colocando a comprida língua para fora como se degustasse o ar.

- Com nada em especial – respondeu prontamente Adão.

- Humm...

- Sério, Serpente. Adão só estava me dizendo que ele pode correr mais rápido que os leões e o quanto os seus músculos são mais fortes do que o de um búfalo e... – nesse ponto Eva interrompeu-se, ficando com o rosto vermelho feito um tomate.

- Humm... – voltou a repetir a Serpente.

Eva olhou para Adão pedindo ajuda.

- Ela fala a verdade Serpente. Eva mostrou-me as tetas das vacas e pediu uma explicação sobre o seu funcionamento, já que ela tem algo parecido no corpo. Eu apenas demonstrei a ela que todos os animais do Paraíso têm suas habilidades e nós nos assemelhamos a eles.

Enquanto Adão falava, Eva, nervosa, se remexia na grama como se estivesse incomodada com alguma coisa. A Serpente voltou a sorrir e a ponta de sua língua alcançou o ombro da mulher.

- Para com isso, Serpente! – reclamou Eva.

- Com o quê, minha linda? – perguntou com inocência, enquanto voltava a lambê-la.

- Ora não se faça de boba, não quero que me lamba. É nojento! – disse Eva com repugnância.

- Humm... Esssa é uma das minhas habilidades, lamber. Quem sssabe ssse Adão a demonstrasssse voccê entenderia melhor? Vai, Adão, lambe o pessscoço da Eva, mossstra que também tem uma língua.

Adão olhava para Eva e a Serpente sentindo-se um pouco tonto. Não gostou da atitude da cobra, mas vê-la lambendo Eva provocou algo completamente desconhecido nele. Algo que não entendia.

- Não vou lamber ninguém, Serpente. Guarde sua língua para si. Vamos, Eva! – disse irritado.

Eva, pela primeira vez, não o obedeceu de imediato. Ficou sentada na grama olhando séria para Adão. Ela também estava sentindo algo muito estranho, inexplicável. Algo que fazia seus olhos se encherem com o que parecia ser água.

- Por que você não quer me lamber, Adão? – perguntou num sussurro.

A boca de Adão abriu com a surpresa. O que estava acontecendo? Nunca tinha visto Eva daquele jeito. Ela era sempre tão alegre e tranquila. E o que seria aquela água formando-se em seus olhos?

- Eva, não fica assim. Eu posso te lamber, se você faz tanta questão. É que não quero mais assunto com essa cobra.

- Eu?! – perguntou, fingindo surpresa, a Serpente. – É voccê que essstá fazzzendo Eva chorar com a sssua recusssa em lambê-la.

- Chorar? O que é isso? – perguntaram os dois ao mesmo tempo.

- Aí, meu bom deus! Estava tudo saindo melhor do que encomenda. Talvez nem precisasse mais da maldita fruta – pensou feliz a Serpente.

Virando-se para o casal (se deus quiser, um casal com todos os benefícios e malefícios) a Serpente pensou bem nas palavras que iria dizer. Todo o seu plano dependia delas. Esse era o momento pelo qual estava esperando há tanto tempo.

- A água que voccê, Adão, vê ssse formando nosss olhosss de Eva, sssão chamadasss lágrimasss. Elasss podem sssurgir quando uma pesssoa essstá muito trissste. Issso acontecce quando ela é magoada ou ferida.

- Mas eu não a feri! – disse apavorado Adão. – Eu nunca a toquei!

Um soluço saiu meio estrangulado da boca de Eva e duas lágrimas grossas rolaram pelo seu rosto.

- Viu? Voccê fezzz de novo – acusou a Serpente.

- Mas eu não fiz nada! – disse confuso Adão.

- Eva, minha querida, exxplique a Adão o que a essstá magoando – pediu gentilmente a Serpente.

Eva ficou em silêncio. Ela também não sabia explicar o que estava acontecendo. Mas a atitude de Adão a tinha entristecido de uma maneira que ela não conseguia compreender. Resolveu, então, dizer a primeira coisa que lhe veio a cabeça:

- Você não quis me lamber! – disse com um murmúrio sentido, enquanto mais lágrimas saiam de seus olhos.

- Compreendeu, Adão? – perguntou a Serpente já sabendo de antemão a resposta. – Você não está cuidando das necessidades de Eva e isso a está ferindo.

Adão olhava atordoado para Eva. Necessidades? Que necessidades? Eles tinham tudo no Paraíso. O que poderia estar faltando? No entanto, como era um homem razoável, ele daria isso a Eva só para vê-la feliz novamente.

- Eva, eu vou te lamber – disse com firmeza, enquanto se abaixava diante dela. Lentamente, foi passando a língua em seu rosto, sentido o gosto de sal nas tais lágrimas. Era como se bebesse do oceano. Quando percebeu havia fechado os olhos e estava lambendo uma segunda vez o rosto de Eva, chegando muito perto da sua boca.

Eva sentiu um arrepio percorrer todo o corpo. Não sabia dizer o porquê, mas, sem pensar, abriu a boca em expectativa. Queria ser lambida. Queria Adão lambendo-a toda.

Quando Adão se afastou os dois respiravam com dificuldade. A pele pinicava e o desejo de tocar era quase insuportável. Pela primeira vez, desde que haviam sido criados, eles realmente se viam. Os olhos de Adão baixaram para os seios de Eva, seguiram devagar pela barriga, chegando, finalmente, naquela fenda misteriosa no meio de suas pernas. Eva, por sua vez, também percorreu com os olhos o corpo de Adão, alcançando aquele pedaço de carne entre suas pernas que hoje, por um motivo que ela não entendia, estava quase na posição horizontal e, aparentemente, apontando para ela. Ambos puxaram o ar com mais dificuldade, afastando-se confusos e envergonhados. Só não entendiam a razão.

A Serpente viu tudo e sua felicidade era tanta que teve de se obrigar a permanecer calma. Enfim, a semente havia sido plantada. Agora era apenas esperar e, pelo que estava vendo, não ia demorar muito. A fome entre eles cresceria até... Bem, quando isso acontecesse ela estaria ali para oferecer-lhes o que há tanto tempo recusavam: o fruto da árvore proibida. Um fruto especial que, muito mais tarde, seria chamado de romã.