Resenha de "Azul",  Rubem Dario

Wílson Alves Bezerra

Havia, na segunda metade do século XIX, um escritor nicaraguense que lia Baudelaire, Verlaine, Mallarmé, Rimbaud, Lautréamont, Poe e Withman. Ele escrevia poemas, contos e artigos nos quais se percebiam tais leituras. O leitor brasileiro se assanha, e logo se pergunta se essa figura, que em nossas terras é ainda obscura, era um poeta maldito, censurado, inédito. A resposta é negativa, trata-se de um dos autores mais celebrados da língua espanhola; considerado o mais importante poeta desde o século 17. Trata-se de Rubén Darío (1867-1916), figura-chave para se entender a modernidade literária hispano-americana, e que tem finalmente traduzido “Azul”, seu livro de 1888, publicado aqui pelo selo Demônio Negro, da editora Annablume (tradução de Marcelo Barbão, 140 pgs, R$ 48).

Lido no Brasil de hoje, com o repertório de expectativas do leitor médio, Darío se mostra algo paradoxal. Mesmo sendo o fundador do modernismo em língua espanhola, ele nos parece algo conservador e ainda assim surpreendente. Darío importa da poesia francesa metros e musicalidades até então desconhecidos na poesia hispânica — como os alexandrinos de Victor Hugo — e introduz inclusive o poema em prosa, experimentado por Baudelaire em seu “O spleen de Paris” (1869). Inova também nos temas, pois já na fábula de abertura de “Azul”, “O rei burguês”, logra trazer os questionamentos acerca do lugar marginalizado do poeta na sociedade burguesa, tal qual se lia no precursor “O albatroz”, do Baudelaire das “Flores do mal”. 

Onde então estaria isso que nos soa conservador em Darío? Se o soneto de Baudelaire compara o poeta a um albatroz, ave soberana nos céus mas ridícula no convés do navio, onde os marujos lhe enfiam um charuto no bico, enquanto ela coxeia por suas grandes asas, em Darío a cena se transforma em fábula amena, na qual o poeta é engaiolado pelo Rei Burguês, canta quando se gira uma manivela e termina morrendo de fome no inverno. A crueza de Baudelaire dá lugar à fabula e à alegoria, amenizando seu efeito crítico para o gosto contemporâneo. 

Assim, o sabor parnasiano da escrita de Darío, oriundo de Catulle Mendès, e sua saturação de imagens orientais, gregas, como vasos chineses, fadas, palácios de mármore, rainhas, animais mitológicos, sátiros e... cisnes, muitos cisnes, soam ao leitor de hoje meio cafonas. Paradoxo dos paradoxos: soa-nos cafona justamente porque, em certo momento, foi fundadora. Darío é responsável por uma virada estética nas letras hispânicas que se tornará, com o corte imposto pelas vanguardas dos anos vinte, ultrapassado. 

Não por acaso é a coincidência no nome tanto do movimento que Darío funda quanto daquele também aquele que tem Mario e Oswald de Andrade e Manuel Bandeira no Brasil como fundadores. Há um repertório comum de leituras entre os autores das duas bandas: Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé são patrimônio de ambas gerações. O que difere, além da herança parnasiana, é a leitura que se fará dos precursores, e como ela incidirá sobre a escrita de uns e outros. Tomar contato com a obra deste “parnasiano moderno” que foi Rubén Darío nos possibilita pensar no caráter fundador das vanguardas latinoamericanas. 

Ainda assim, como já disse, Darío está longe de ser um escritor superado. Quem ler os retratos traçados por ele em seu “Los raros” (1896), coleção de perfis literários de autores como Poe, Lautréamont, Verlaine, Rimbaud, percebe a argúcia de leitor do nicaraguense, bem afeita a nosso gosto contemporâneo. É um autor lúcido, que tem a exata medida do quanto as preferências estéticas hispânicas diferem muito das francesas. Diz ele, acerca de Verlaine: “Na Espanha, é quase desconhecido e continuará sendo por muito tempo”. Já sobre Lautréamont: “Escreveu um livro que seria único se não existissem as prosas de Rimbaud”. 

O que o selo Demônio Negro, da Annablume, oferece ao leitor é apenas uma amostra da obra de Darío. Trata-se de “Azul”, livro considerado o fundador do modernismo hispânico, e que originalmente trazia fábulas, poemas e alguns retratos em verso de contemporâneos seus, mas que na edição nacional limita-se às fábulas. Uma pena. 


É premente que venham à luz os contos fantásticos de Darío, um dos primeiros a introduzir o terror de Edgar Allan Poe nas letras hispânicas, ao lado do uruguaio Horacio Quiroga. É preciso também que se edite sua poesia em português, seus textos fundamentais e precursores como “La página blanca”, em que tematiza a angústia do autor diante do papel em branco, e aproxima as letras manuscritas a uma caravana de beduínos — outro exemplo de como sua poesia trabalha temas modernos. 

Diga-se então que a iniciativa da Demônio Negro é um importante passo na publicação do autor. É como lucidamente observa André Fiorussi, estudioso de Darío e autor do ótimo prefácio a “Azul”, “resta muito a editar ainda de Darío e dos modernistas”. Espera-se que tal clamor produza ecos e efeitos. 

WILSON ALVES-BEZERRA é professor do Departamento de Letras da UFSCar, tradutor e autor de "Reverberações da fronteira em Horacio Quiroga" (Humanitas/FAPESP)