(Miguel Carqueija)

Resenha originalmente publicada no fanzine "Megalon", na coluna "Galeria do Tempo"



Resenha: DA TERRA Á LUA, DE JÚLIO VERNE


    Coleção Saraiva, 240 (S.Paulo) – tradução de Augusto de Souza – título original: “De la Terre a la Lune” – junho de 1968.


    Para os aficcionados de ficção científica, falar em Júlio Verne é algo que deve ser feito com respeito e reverência. Afinal, pode-se dizer que a ele devemos tudo.
    Verne foi um mapeador das possibilidades reais da civilização, assim mesmo colocou-se muito à frente de sua época. Basta dizer que a efetiva viagem à Lua só veio a ocorrer em 1969, isto é, aproximadamente um século depois.
    No caso específico deste romance, o leitor pode sentir uma certa leviandade na maneira como são apresentados os membros do “Gun-Club”, formado em Baltimore por engenheiros bélicos: “Uma condição sine qua non era imposta a toda a pessoa que desejasse entrar no clube: a de ter imaginado, ou pelo menos aperfeiçoado um canhão, e não sendo canhão, uma arma de fogo qualquer.” Prossegue Verne explanando a escalada de poder destrutivo a que se dedicavam os clubistas, chegando ao seguinte cálculo: “dividindo o número das vítimas de balas pelo dos membros do Gun-Club, chega-se à conclusão de que cada um destes matou em média 2.375 homens e uma fração” (sic). “Considerando devidamente este cálculo, torna-se evidente que a única preocupação daquela sociedade científica foi a destruição da humanidade com intuitos filantrópicos, e o aperfeiçoamento das armas de guerra, consideradas como instrumentos de civilização.” E mais: “Era uma espécie de núcleo de Anjos Exterminadores, sem embargo de serem as melhores pessoas do mundo.”
    Verne coloca tantas descrições minuciosas de fatos, datas e lugares, que fica difícil saber onde termina a ficção. Terá existido alguma instituição semelhante ao Gun-Club? Confesso que não sei; entretanto tais personagens, que brincavam de matar, não me parecem tão simpáticos como o autor os apresenta. Não sei se Verne quis apenas satirizar os norte-americanos, realmente não alcancei o seu senso de humor.
    Mais interessante é o desenvolvimento posterior da história, quando Barbicane, J.T. Maston e demais protagonistas esquecem as guerras e se concentram na proeza científica do lançamento de um projétil à Lua. E aí talvez Verne mais uma vez estivesse com a razão: afinal, durante a II Guerra Mundial, surgiram as sementes da Astronáutica com as bombas voadoras de Wernher von Braun. O uso bélico, fratricida, infelizmente precedeu a aplicação científica, pacífica. Um aspecto da profecia verneana raramente apontado.
    Infelizmente, ao contrário do que acontece em outros romances de sua lavra, J.V. insiste em sair do sério num romance supostamente sério. A unanimidade dos cidadãos norte-americanos, os estereótipos com que são considerados os outros países, não convencem. Tanto apoio a um empreendimento evidentemente temerário — Miguel Ardan não esperava regressar do satélite — e a apresentação do Capitão Nicholl como a única voz, em todo o país, a se erguer contra a aventura (o autor assim o diz taxativamente) corre no terreno do inverossímil. As segundas intenções de Nicholl não impedem que os leitores concordem com o bom senso das suas observações, na discussão pública com Ardan e que quase leva ao duelo com Barbicane.
    Essas objeções não impedem que o romance seja interessantíssimo até o dia de hoje, quando a sua presciência — e de sua continuação, “À roda da Lua” — impôs-se à evidência. Mas Verne é um escritor que conduz a narrativa passo a passo, com meticulosidade de arqueólogo — por isso deve ser lido com calma para ser bem apreciado.

(Resenha escrita entre 18 e 23 de outubro de 1988)