Recordações
Por Raphael Cerqueira Silva Em: 10/12/2024, às 09H16

O ano vai chegando ao fim. Lojistas enfeitam vitrines, o vento prenuncia o verão, burocratas discutem as datas das famigeradas confraternizações, o mercado projeta vendas... Recordando outros natais, tento escrever uma crônica.
Outros natais porque, de uns anos para cá, perdi o encantamento por árvores enfeitadas, cartões votivos, ceias, presentes, presépios... Nossa, como eu era fascinado por presépios. De tudo o que via nas casas e igrejas — guirlandas, festões, novenas, Papai Noel, trenós, renas, pisca-piscas, bolas coloridas — eram os presépios que fisgavam minha atenção.
Como esquecer aquele montado na catedral de Petrópolis, que me encantou muito mais do que os noivos no altar repetindo frases ditadas pelo padre... Ou o que ocupava quase toda a garagem de uma casa em Ubá, iluminado pela douradíssima estrela que guiava os reis-magos... Ou ainda o presépio de cartolina que montei para a aula de religião, colorido a lápis e com o chão coberto pela serragem que meu pai trouxera da fábrica de móveis.
Eu era tão fascinado por presépios — e pela história que cada imagem carregava — que, em certo dezembro, pedi um de presente. Renunciei, naquela vez, aos brinquedos e cartuchos de videogame: queria um presépio. E ganhei um, com peças de gesso, comprado na papelaria da Odila.
Encerro o parágrafo anterior mais saudoso. A papelaria da Odila fazia parte do nosso cotidiano. Ali comprávamos estojo de madeira, lápis de cor, cartolina, papel para encapar os cadernos, borrachas com personagens de desenho animado, apontadores, papéis de carta, giz de cera, fitas para máquina de escrever, os carbonos que meu pai usava para bater ofícios e requerimentos, canetas, corretivos, marca-textos... Ali também se vendiam imagens de santos, cartões natalinos, missais, velas, calendários, lembrancinhas de primeira comunhão... e presépios.
Não me lembro o ano em que ganhei o meu. Era uma tarde ensolarada; eu lia, deitado no tapete, quando meu pai entrou com uma caixa de papelão. Desta vez, meu presente não veio embrulhado em papel colorido, não tinha laço, sequer precisei esperar a noite de 24 de dezembro. Dentro da caixa, a Sagrada Família, os reis magos, o pastor e as ovelhas, o camelo e a vaca, o burrico e o anjo — todos enrolados em folhas de jornal. “Pra não quebrar”, dissera a mãe.
Pra não quebrar, como quebravam com facilidade as bolas que pendurávamos na árvore. A cada ano, duas ou três se desfaziam em cacos que agarravam no tapete. Não sei se eram de vidro, as bolas de Natal de antigamente; só sei que bastava um esbarrão ou pegar de mau jeito, e lá ia mais uma pro beleléu. Aos poucos, nossa árvore foi ficando pelada. Então minha mãe comprou uns enfeites de borracha: um soldadinho quebra-nozes, uma bailarina, uma bengala vermelha e branca, um boneco-de-neve, um Papai Noel magrelo demais pro meu gosto.
Mas quem disse que esses enfeites ficavam muito tempo na árvore? Para mim, eram brinquedos. E, como todo brinquedo merece liberdade, eu os levava a viver aventuras ao lado dos Comandos em Ação e dos heróis japoneses. Tudo virava farra: o soldadinho quebra-nozes embarcava no caça-tigre, a bailarina rodopiava no convés do navio de plástico, o Touro Sentado contava estórias do Velho Oeste para o Papai Noel, enquanto a bengala vermelha e branca saltava do helicóptero pilotado pelo boneco de neve para mergulhar no tapete que, àquela altura, virara um mar, enormíssimo e perigosíssimo.
Hoje, parafraseando aquela canção do Roberto, meus natais são doces recordações. É assim, com nostalgia, que tenho recebido os últimos dezembros. Sem o entusiasmo de antes, sem o brilho nos olhos que a miopia a cada ano devora, sem um presépio como aquele da Odila a enfeitar a sala. Ainda temos a árvore, por insistência da mãe. Ainda distribuímos presentes antes da ceia: as crianças não têm culpa de eu ter perdido o caminho sinalizado pela douradíssima estrela. Ainda estamos aqui — embora sem o alumbramento de outrora — reunidos na sala para tirar mais uma foto na noite de Natal.