Recebemos - leitura e leituras

                [Geovane Monteiro*]

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 W. Ramos,

Li o Morro da casa- grande, de Dilson Lages, muitas vezes, especialmente porque o romance fala por si. É nesse aspecto que discordo de suas “impressões subjetivas”.  

Acredito que a subjetividade deve estar a serviço de uma leitura que reflita a veracidade de uma obra. Um trabalho deve de fato corresponder ao que quer respaldar nossas impressões. Infelizmente não conferi esse cuidado na sua leitura. Por exemplo, dizer que o tema da derrubada da igreja católica se limitou a fatos históricos em si é no mínimo uma desatenção. Leia e releia Cristo em pó, parágrafo que fecha o romance, e veja facilmente que se trata, assim como todos os capítulos, de uma bela prosa poética na qual personagens se enredam numa trama inquietante, cheia de movimentos que compõem o fazer artístico. É inconcebível a afirmação de que Deusimar é uma das poucas a se posicionar contra a demolição da igreja, porque da vendedora de espanadores a Marciano, os mais diversos personagens integram uma intriga imagética em sofisticado efeito emocional. E ainda que o fosse, poderia perfeitamente caber numa só personagem todo um universo inventivo no qual figura uma condição humana, preocupação visível na obra de Dilson Lages.

 Vejamos pequenos excertos retirados dos incontáveis achados de ficção e realidade entrecruzando-se a partir de um envolvimento estético com a linguagem. Os trechos que seguem narram, em agradável exercício de criação literária, o impacto da derrubada da igreja para a população da cidade. 

“– Compadre, eu estava lá no dia em que decidiram! Dona Deusimar ficou braba; as beatas da Rua Grande todas praguejaram. Não derrubariam não, mas padre tem poder – explicou Epitáfio para Genésio, esfregando a mão esquerda na testa.

(...)

O caminhão acelerou e, como galhos de árvores apodrecidas, os quais se apertam do alto em tempestades, o Cristo despedaçou-se; despedaçou-se a alguns metros antes de onde deveria acomodar-se. Despedaçou no calçamento, sem pneus, algodão ou palha de arroz que evitasse. O estrondo dividiu a multidão curiosa e surgiu, em uma rapidez de assustar, gente de todas as ruas, as lágrimas querendo levar para casa uma parte de Nosso Senhor, desfeito em minúsculos pedaços e em pó.” (Cristo em pó, pp. 122 e 125) 

Fatos históricos em si não suportam interferências, insinuações e estados de espíritos que tanto nos faz visualizar os personagens ante a destruição da igreja. O próprio narrador afirma que se presenciava “um grande fato histórico”,... “o mesmo que fechava a história de várias gerações”. Porém, ao contrário do que se afirma em Recebemos – O morro da casa-grande, o romance tem o claro projeto literário de se valer de recursos de abordagem literária a partir de diálogo com fatos históricos. Na verdade, a inquietação de cada personagem assume uma densidade maior que o episódio da derrubada em si, para nos prendermos nos aspectos psicológicos que evidenciam uma gente voltada às suas raízes. O próprio lirismo admitido no início de seu texto, W. Ramos, justifica essa façanha. O jogo de aflição, de indignação, da impossibilidade que acomete as personagens, para não me estender muito, desfaz a noção de que a história em si é predominante em O Morro da casa-grande. Releio toda a obra para relembrar M. Bakhtin quando afirma que o romance comporta uma concepção de tempo permeado de mundos distintos, presididos por estruturas sociais diversas, por diferentes conceitos e concepções. O curioso é que a obra de Dilson não exige uma investida tão apurada para enxergarmos todas essas nuanças proferidas por M. Bakhtin. A ideia da “história em si” seria verídica se o passado fosse abordado de forma absoluta, fechada e inquestionável em Barras, cidade onde foi ambientada a narrativa. Note que as personagens são construídas com fissura entre o aspecto externo e interno e, por essa razão, capazes de habitar sua época a provocar no leitor conflitos não necessariamente idênticos ao da obra.  

A história registra fatos em seus aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais, com o intuito de compreendermos melhor o presente. O que Dilson Monteiro faz é literatura, já que, por meio da sugestão da linguagem carregada de emoção, é capaz de manifestação artística. Veja, Ramos, que, ao apostar que Marciano talvez seja o alter ego do autor, você está realizando um exercício que os textos literários oferecem: a ausência de rigor. Por outro lado, a verdade única está presente nos registros meramente históricos. É preciso considerar que história e literatura são conceitos distintos, mas que se relacionam, pois as manifestações literárias nascem de determinados contextos históricos. 

Sobre o episódio do cão e da cobra, não há impropriedade. Na verdade existem vários rituais de ataque de cobras quando elas, ou porque se sentem ameaçadas, ou porque seguem seu instinto brutal, planejam o bote. Por exemplo, quando se sentem ameaçadas, a cascavel toca o seu chocalho na ponta da cauda e a jararaca vibra a cauda.

Segundo o biólogo, agrimensor e pesquisador da vida animal silvestre Roberto Muylaert, as serpentes, em geral, para pressentir a aproximação de alguma coisa, mantêm o corpo entorpecido e enrodilhado na posição de descanso. É quando seu sistema nervoso entra em posição de alerta. É preciso, no entanto, analisar a semântica situacional da cobra no livro. Se o cão encontrou-a esticada, logo a própria natureza da cobra explica que ela poderia não o estar esperando, o que não anula o seu poder de ataque (elas possuem radares que estimulam, a qualquer hora e circunstância, um possível bote), já que vive em permanente estado de vigília. Seria absurdo imaginar um ofídio venenoso – porque não se encontra enrodilhado – manter-se passivo, esperando ser morto pelo cão.

Também não há oscilação quanto a Marciano ser ou não ser coroinha. Não há nenhum registro de que ele não era coroinha. Na passagem: mas queria ver Marciano ainda coroinha, o “ainda”, da forma que se dispõe todo o parágrafo, tem valor de uma permanência de situação e não meramente de um desencontro temporal (o que justificaria uma contradição, nesse segundo caso). Veja: logo que há uma pontual descrição do personagem com vestes de coroinha é que o “ainda” ocorre, passando afinal a assumir uma preocupação da avó em, por conta do poder de decisão na figura do padre Barata, ver o rapaz ser obrigado a deixar de ser coroinha. Algo análogo a dizer: meu filho é marinheiro e trabalha sob o regime de serviço prestado. Mas queria vê-lo ainda marinheiro. Aqui faço uma analogia: A avó teme Marciano deixar de ser coroinha, assim como a mãe teme o filho deixar de ser marinheiro; o primeiro pela possível intervenção do padre, o segundo pela instabilidade do serviço prestado.

Quanto a outro questionamento, o da linguagem, algumas questiúnculas relativas à superfície do texto poderão ser revistas em edições posteriores. Em Ressureição, temos o capítulo ADVERTÊNCIA DA NOVA EDIÇÃO, em que o próprio Machado de Assis, humilde encorajado, assim anota:

“Este foi o meu primeiro romance, escrito aí vão muitos anos. Dado em nova edição, não lhe altero a composição nem o estilo, apenas troco dois ou três vocábulos, e faço tais ou quais correções de ortografia. (...).”.

 Ademais, não há um temor em investir na oralidade. Os registros da fala oral representam construções mentais de personagens. A linguagem ora recupera marcas linguísticas de personagens bem regionais, ora representa o olhar do narrador. Nesse quesito, não há por que o predomínio deste ou daquele nível de linguagem.

W. Ramos, quanto às fotografias, elas fazem, inicialmente, parte de um projeto gráfico e, ainda que não, são comuns em livros que trabalham a memória coletiva. Afinal, temos um romance que dialoga com a história de Barras em meados do século XX. Fotografias da Igreja que fora demolida, do rio Marataoã etc. lembram-nos as epopeias e a prosa regionalista ou com vivências regionalistas.

O que há é uma consciência histórica representada artisticamente no modo de ser e de agir das personagens que vivenciaram profundas e decisivas transformações sociais. O processo de transição é bem assinalado na orelha do livro: “As fazendas ainda estavam de pé como elemento concentrador de renda, mas o modelo socioeconômico já dava sinais de ruína”. Vale endossar, a matéria de o Morro da casa-grande é acrescida sim do adjetivo histórico, mas isso não quer dizer que a obra não comporta inventividade, que não se estende à “história em si”. Quando consideramos o comportamento de Marciano e/ ou de Deusimar, por exemplo, podemos analisar conceitos morais ou jogos metafóricos, através da percepção, da introspecção, da memória e testemunho que marcam a vida desses dois personagens. A história resgata a verdade e a literatura, o verossímil. Por exemplo, Marciano me fez desconfiar não propriamente do alter ego do autor, mas da simbologia de uma cidade em transição: Barras provinciana e Barras se engajando, ainda que timidamente, numa estrutura mais urbana. Uma estrutura que sofreu certa resistência quando valores e tradições haveriam de acompanhar a poeira do passado. Marciano percorre o enredo num intervalo de tempo que compreende o menino (província) e o rapaz (o aglomerado urbano se formando).

O livro é um todo poético. Para o caso particular de Marciano, aqui destacado, reproduzirei alguns trechos do capítulo A franga pedrês, um verdadeiro exercício estético que me chamou bastante a atenção e que representa bem o supracitado:

(...) O peito [de Marciano] se contraía quando se lembrava da casa em Barras, do Marataoã, dos movimentos da praça da Matriz, mas queria ficar parado, como as árvores, como os morros. (...)

Era bom aceitar logo a certeza e se preparar para outras alegrias, a de abraçar a mãe, a de entrar na igreja, a de brincar pelo quintal imaginando-se senhor das terras e bichos. Enquanto o caminhão não chegasse, que tomasse banho no tanque, que comesse crioli, que domasse o cavalim de carnaúba até o tempo se esgotar.

W. Ramos, outro leitor apresentar-me-ia outro viés a respeito desses e de quaisquer outros fragmentos em O Morro da Casa-Grande. Literatura é capaz disso; apenas história, não.

Geovane Monteiro é colunista de Entretextos.