RADUAN NASSAR GANHA PRÊMIO CAMÕES

 


 Prémio Camões 2016 foi esta segunda-feira atribuído por unanimidade ao escritor Raduan Nassar, de 80 anos, o 12.º brasileiro a receber aquele que é considerado o mais importante prémio literário destinado a autores de língua portuguesa. O júri sublinhou "a extraordinária qualidade da sua linguagem" e a "força poética da sua prosa".
"Através da ficção, o autor revela, no universo da sua obra, a complexidade das relações humanas em planos dificilmente acessíveis a outros modos do discurso", justificou o júri, acrescentando que "muitas vezes essa revelação é agreste e incómoda, e não é raro que aborde temas considerados tabu". O júri realçou ainda "o uso rigoroso de uma linguagem cuja plasticidade se imprime em diferentes registos discursivos verificáveis numa obra que privilegia a densidade acima da extensão".
Com apenas três livros publicados – os romances Lavoura Arcaica (1975) eUm Copo de Cólera (1978) e o livro de contos Menina a Caminho (1994) –, a exiguidade da obra não impede que Raduan Nassar seja há muito considerado pela crítica um dos grandes nomes da literatura brasileira, ao nível de um Guimarães Rosa ou de uma Clarice Lispector.
Se a singularidade de Nassar lhe garantiu desde cedo um círculo de admiradores fiéis, e se os seus romances alcançaram algum sucesso internacional já na primeira metade dos anos 80, quando foram traduzidos para francês, espanhol e alemão, a popularidade da sua obra aumentou significativamente com a adaptação cinematográfica de Um Copo de Cólera, em 1999, numa realização de Aluizio Abranches, e de Lavoura Arcaica, em 2001, num filme de Luiz Fernando Carvalho.
Já este ano, Raduar Nassar foi um dos 13 escritores escolhidos para a longlistdo Man Booker International Prize, com a tradução inglesa de Um Copo de Cólera, mas não chegou à lista de seis finalistas, que incluiu o angolano José Eduardo Agualusa.
Em Portugal, Raduan Nassar só começou a ser publicado em 1998, quandoUm Copo de Cólera saiu na Relógio D'Água, que logo no ano seguinte editou também Lavoura Arcaica. No ano 2000, a Cotovia publicou Menina a Caminho e outros Contos.
Mas se a sua obra só chegou no final dos anos 90, o escritor visitou Portugal pouco após o 25 de Abril. Almeida Faria contou a história em 2014, na Festa Literária Internacional de Paraty. Corria o conturbado ano de 1975, quando o romancista português ouviu tocar a campainha da sua casa de Lisboa. À porta estava um jovem casal desconhecido. Perguntaram se podiam entrar e ele apresentou-se como escritor brasileiro. Trazia na mão um livro, Lavoura Arcaica, e disse ao escritor português: “Este meu livro saiu agora no Brasil, e como eu acho que ele deve muito ao seu livro A Paixão, quis vir oferecer-lhe o livro pessoalmente”. Faria e Nassar tornaram-se amigos desde então.
Nassar é conhecido pela extrema raridade das suas aparições públicas, o que veio conferir um peso particular à sua presença, junto de Dilma Rousseff, no Palácio do Planalto em Brasília, a 31 de Março, num Encontro com Artistas e Intelectuais em Defesa da Democracia. "Os que tentam promover a saída de Dilma arrogam-se hoje, sem pudor, como detentores da ética mas serão execrados amanhã", afirmou então, citado pela Folha de S. Paulo. Embora o reconhecimento da qualidade do autor seja francamente consensual, esta sua recente intervenção vem também dar à sua escolha para o prémio Camões deste ano uma inevitável dimensão política.
Com um valor pecuniário de cem mil euros, o prémio foi anunciado ao fim da tarde no Hotel Tivoli pelo secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado, após a reunião do júri, que este ano incluiu a professora e ensaísta Paula Morão e o poeta e colunista Pedro Mexia, os professores universitários, críticos e escritores brasileiros Flora Süssekind e Sérgio Alcides do Amaral, e ainda o autor moçambicano Lourenço do Rosário, reitor da Universidade Politécnica de Maputo, e a ensaísta são-tomense Inocência Mata, actualmente radicada em Macau.
Um lado secreto
Raduan Nassar foi informado de que lhe tinha sito atribuído o prémio no valor de cem mil euros por Miguel Honrado. Ao telefone, ter-se-á mostrado “surpreendido e satisfeito”, contou ao PÚBLICO o presidente do júri, Sérgio Alcides do Amaral. “Ele é muito recluso, mas uma pessoa simples. Não é recluso por arrogância. Espero que possa ter um público maior agora”, sublinhou.
O papel de divulgação que um prémio como este pode ter foi destacado por Pedro Mexia, o representante português do júri. Para Mexia, o Camões tem uma vertente de consagração, mas muitas vezes a consagração também é uma revelação. É este o caso. “Isso aconteceu em Portugal no caso do Manuel António Pina, que quase toda a gente conhecia dos jornais, pelas crónicas, ou da literatura infanto-juvenil, mas era um poeta pouco lido, e que até ser editada a Poesia Completa (Assírio & Alvim), não estava no cânone. O Prémio deu-lhe uma visibilidade maior. Claro que é sempre difícil falar de uma revelação num autor de 80 anos, como é Raduan Nassar, mas revelação fora do meio estrito da literatura.”
Estamos perante uma obra curta de um escritor pouco conhecido que já deixou de escrever há uns anos, desde Menina a Caminho, em 1987. “O prémio revela-o a um espaço público ampliado, importante”, referiu, por sua vez Sérgio Alcides do Amaral ao PÚBLICO, salientando que no Brasil Nassar é muito conhecido nos meios literários, mas admirado sobretudo à distância devido à sua rejeição da exposição mediática. Mas sublinha: “A importância pública de Raduan Nassar revelou-se de uma maneira bem explícita recentemente, considerando o que se está a passar no Brasil um golpe de Estado. Ele saiu do seu hábito de recolhimento e declarou-se contrário à quebra da legalidade na nossa República. Isso teve um impacto cívico forte na cultura brasileira. Foi um alento." Negando qualquer tipo de politização do prémio, Alcides do Amaral disse que se trata apenas de uma forma de evidenciar o papel que um intelectual pode ter na sociedade. “Tivemos a preocupação de não comprometer politicamente o prémio, mas é impossível deixar de reconhecer que a literatura, sendo um fenómeno público, tem uma revelação política. Mas, sublinho, não foi esse o critério.”
Para Mexia, “não são as opiniões políticas de Raduan Nassar que estão a ser discutidas, mas é evidente que dar um prémio a um escritor brasileiro neste momento é falar do Brasil, é falar da situação política". E um prémio destes, admite, "pode ser um pequeno conforto para a situação complicada que o Brasil vive". Sublinhando que "a literatura não é uma realidade estanque da política, mas este é um prémio literário”, Pedro Mexia referiu que o nome de Raduan Nassar estava, como possibilidade, na lista de todos os membros do júri. Mas havia uma interrogação: ele aceitaria prémios? “O facto de ter estado entre os finalistas do Man Booker deste ano e não ter retirado o livro de concurso, indiciava que pelo menos não era hostil. No telefonema, quando lhe foi comunicado o prémio, não mostrou qualquer espécie de relutância”, conta Pedro Mexia
Para o escritor português, Nassar faz parte de uma “grande família de escritores agrestes” de que fazem parte outros nomes já distinguidos com o Prémio Camões, como Rubem Fonseca ou Dalton Trevisan. Nele há “uma visão das relações humanas e uma linguagem que são ásperas e muitos distantes de um certo cliché da alegria de viver e de suavidade tantas vezes associada aos brasileiros.” Apesar de muito escassa, a obra é suficientemente ampla para ser considerada diversa. Mexia vê em Lavoura Arcaica “um livro quase bíblico”. “É um livro terrível sobre uma relação, enquanto Um Copo de Cólera é mais coloquial, uma espécie de longa discussão conjugal. Mas são ambos livros em que é a linguagem que vai revelando todas as camadas problemáticas das relações entre as pessoas, dos não-ditos ou do que só se diz para ferir alguém. Há um lado de facto muito agreste que também tem a ver com a literatura da Clarice Lispector, todo o outro lado que não é o Brasil do cartão postal.”
O facto de os três livros de Nassar terem edição portuguesa não o impede de ser pouco conhecido em Portugal fora dos meios literários. “A conjugação entre uma obra escassa e dura, a falta de presença mediática e estar há décadas sem escrever fazem com que seja um autor de uns happy few, mas foi um nome que nos pôs todos de acordo e essa é uma boa indicação”, adianta Pedro Mexia, que quis deixar uma nota pessoal nesta conversa. “Esta não é uma consideração do júri, mas é minha: gostava de ver nisto uma tentativa para que a literatura brasileira contemporânea seja lida com mais atenção em Portugal. Há editoras que têm dado muito espaço a autores brasileiros, como a Cotovia, que há uns anos até lançou uma colecção a que chamou o Curso Breve de Literatura Brasileira [dirigida por Abel Barros Baptista], mas há uma relutância por parte dos leitores que não consigo explicar.”
André Jorge é o editor dessa colecção e publicou Menina a Caminho. Ao saber da notícia, disse ser um prémio “muito merecido” para um “grande autor”, que conheceu há cerca de dez anos. “Foi em S. Paulo, em casa de Milton Hatoum, e lembro-me de que conversámos enquanto bebíamos bom vinho português. Um homem muito inteligente, afável, mas com um lado secreto.”   
Coelhos e galinhas
Nascido em 1935 em Pindorama, no interior do estado de S. Paulo, sétimo filho de um casal de emigrantes libaneses que ali abrira uma venda depois convertida em loja de tecidos, a Casa Nassar, Raduan frequentou a escola primária local a partir dos oito anos, e recordará mais tarde como "uma das melhores alegrias da infância" o dia em o pai lhe ofereceu um casal de galinhas-de-angola. Quando decide, nos anos 80, que o sucesso literário não lhe convém e se retira para a sua fazenda, uma das actividades a que se dedica será justamente criar galinhas, arte que herdou da mãe, Chafika Cassis.
Em 1947, iniciou os estudos liceais na vizinha cidade Catanduva em 1947, para onde a família se mudou pouco depois. Em Lavoura Arcaica fala da colecção de pombas que teve de deixar para trás em Pindorama. Aos 15 anos, durante uma aula, sofreu a primeira de várias convulsões, que se prolongam por dois dias. Tratado por um neurologista em S. Paulo, sai da crise com uma amnésia parcial e não consegue terminar o ano lectivo.  
No ano seguinte retomou os estudos, tendo como professora de português a sua irmã Rosa, que o instiga a ler os clássicos brasileiros. Para facilitar a instrução dos filhos, o casal Nassar voltou a mudar-se, desta vez para S. Paulo, onde o pai, João, abre um bazar. Raduan trabalha na loja e estuda à noite. Em 1955, matriculou-se simultaneamente em Direito e no curso de Letras Clássicas da Universidade de São Paulo, mas abandonaria Letras no segundo semestre. E em 1957, ingressou ainda no curso de Filosofia, que interrompe em 1959, abandonando também Direito no ano seguinte.
Por esta altura, a literatura era já um interesse central, e em 1960 – o ano da morte do pai – escreve o seu primeiro conto, Menina a Caminho, que só viria a ter edição comercial nos anos 90, juntamente com outros dois textos dos anos 70 e um conto inédito.
Viaja pelo Canadá e pelos Estados Unidos, regressando ao Brasil em 1962. Retoma e termina o curso de Filosofia. Viaja para a Alemanha em 1964, estuda alemão, e passa ainda pela aldeia dos pais, no Líbano, antes de, novamente em S. Paulo, se dedicar, em 1965, à criação de coelhos. Com o empenho necessário para, logo em 1966, ter passado a presidir à Associação Brasileira de Criadores de Coelho. O que não o impede de encerrar a criação no ano seguinte para fundar, com alguns irmãos, o Jornal do Bairro. É por esta altura que começa a tomar notas para o que será Lavoura Arcaica.
Em 1973 conhece uma professora de Germânicas da USP, Heidrun Brückner, que viria a tornar-se sua companheira. E em 1974, em desacordo com mudanças editoriais promovidas no Jornal do Bairro, que tirava então 160 mil exemplares, abandona também este projecto. Começa então a escrever intensivamente, e termina Lavoura Arcaica. Sem que Raduan o saiba, o seu irmão Raja tira duas cópias do romance, e uma  delas acaba na Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro, onde o livro é publicado em 1975, ganhando o prémio Coelho Neto para romance da Academia Brasileira de Letras. Três anos depois, sai Um Copo de Cólera, que vence o prémio de Ficção da Associação Paulista de Críticos de Arte.
Nos anos 80, quando começa a ter algum sucesso editorial, no Brasil e no estrangeiro, decide deixar a literatura e passa a cuidar da sua fazenda, a Lagoa do Sino, no município de Buri, criando galinha e outras aves. Foi esse, durante décadas, o seu modo de vida, que só deixou em 2011, doando então a fazenda à Universidade Federal de S. Carlos, depois de já ter distribuído terras aos seus funcionários.
Depois dos romances que o celebrizaram nos anos 70, Nassar, que hoje mora hoje em S. Paulo, só publicou o ensaio A Corrente do Esforço Humano, originalmente editado na Alemanha, e o conto inédito Mãozinhas de Seda, incluído em Menina a Caminho.
Toda a obra do escritor vai agora ser reeditada em Portugal pela Companhia das Letras, que lançará já em Junho Um Copo de Cólera.
Brasil-12; Portugal-11
Instituído em 1988 pelos governos de Portugal e do Brasil, o prémio Camões é atribuído a “um autor de língua portuguesa que tenha contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum”, diz o respectivo protocolo, na sua versão revista de 1999. O acordo obriga a que o prémio seja alternadamente atribuído em território português e brasileiro, e a sua história sugere que tem também prevalecido a intenção de equilibrar o número de vencedores portugueses e brasileiros, bem como a preocupação de fazer representar as várias literaturas africanas.
Antes do prémio agora atribuído a Nassar, Portugal e Brasil estavam empatados com 11 autores de cada país. Miguel Torga foi o primeiro escritor a receber o Camões, em 1989, e o prémio voltou a ficar em Portugal mais dez vezes: Vergílio Ferreira recebeu-o em 1992, José Saramago em 1995, Eduardo Lourenço em 1996, Sophia de Mello Breyner Andresen em 1999, Eugénio de Andrade em 2001, Maria Velho da Costa em 2002, Agustina Bessa-Luís em 2004, António Lobo Antunes em 2007, Manuel António Pina em 2011 e Hélia Correia em 2015.
A lista de premiados brasileiros começa com João Cabral de Melo Neto, em 1990, e inclui Rachel de Queiroz (1993), Jorge Amado (1994), António Cândido (1998), Autran Dourado (2000), Rubem Fonseca (2003), Lygia Fagundes Telles (2005), João Ubaldo Ribeiro (2008), Ferreira Gullar (2010), Dalton Trevisan (2012) e Alberto da Costa e Silva (2014).
O poeta moçambicano José Craveirinha foi o primeiro autor africano a receber o Camões, em 1991. Em 1997, Pepetela, então com 56 anos, tornava-se simultaneamente o primeiro angolano e o mais jovem autor de sempre – ainda o é – a ser galardoado com este prémio, que só voltaria à literatura africana em 2006 para reconhecer a obra do angolano Luandino Vieira, que recusou o galardão. Em 2009, venceu o poeta cabo-verdiano Arménio Vieira, e em 2013 o escolhido foi o romancista moçambicano Mia Couto.