Quero voltar no tempo

 

                                                                    Cunha e Silva Filho

 

 

              Pouco me importa se me infantilizo, que é melhor do que virar “o homem medíocre’ de José  Ingenieros (1877-1925). Quero ir  pro fundo da memória lá onde há tanto tempo a terra me viu primeiro sob o terno olhar de mamãe. Passagem do não ser ao ser. Do vagido aos primeiros segundos  fora de mamãe, dela desejando umbilicalmente apenas os seios fartos  de leite – força da vida e da saúde materna. Em verdade vos digo: era o início de tudo, da vida e das transformações céleres, continuas e irreversíveis com marcas corporais do tempo  e cicatrizes da alma.  Tudo, visto e posto: data, hora, - enigmas. Limite  da matéria e passagem para a     metafísica.  Num e noutro caso, tudo são mistérios, campo do insondável.

 O lugar: uma   casa  simples e velhíssima, com porta e janelas (duas, no máximo) que ainda não consegui  precisar, visto que ninguém até hoje me disse onde  se fincava como  habitação. “Olha, lá adiante, do lado direito da Avenida Amaral. É uma daquelas casas. Já foi  reformada, certeza não tenho.”  O  tempo é fumaça. Só volta se o transformarmos  em arte ou História para não confundir com os ambíguos estória e história  da ficcionalidade.

Uma vez que não sou  historiador,  escolho  o caminho da arte ou o que imagino que  o seja. Opção que nada tem a ver com os dois caminhos de Robert Frost (1874-1963) no poema “The road not taken” (1916).

Dando os primeiros  passos da longa estrada, ali estou  nos cueiros aos cuidados de minha mãe, uma jovem senhora de cabelos escuros  ondulados,  pele morena clara e ainda bela naquele sempre lembrado  sinalzinho por  sobre os lábios.    

Amarante ...  A calma Amarante do fim da Segunda Guerra Mundial. Era o início de dezembro. Lá estava eu na rede. Imagino que  fosse rede, pois berço era raro. Ninguém me disse.

Papai, no Atheneu  Ruy Barbosa, não muito  distante dali. Umas duas ou três  ruas. Estava com  quarenta anos. Bem moço, ocupado com  a preparação de suas aulas em tantas matérias: português, aritmética, álgebra,  história, geografia, desenho   rudimentos de física,   de química,  até noções de francês e inglês. Era o tempo em que imperavam  os livros velhuscos  de Antonio Trajano (aritmética e álgebra ),  Suzanne Burtin Vinholes (francês), Jacob Bensabat (gramática inglesa),  Pe.. Júlio Albino Ferreira (An English Method),  entre  outros.

Segundo me diria mais tarde,  quando eu    era adolescente,  sua disciplina no Atheneu era rígida. Os alunos  o respeitavam. Por isso,  muito feliz foi como  professor com alunos  que passaram pelas suas mãos e, na vida púbica  e profissional se deram muito bem. Tornar-se-iam adultos ilustres: governadores,ministros,  prefeitos,  militares do Exército de alta  patente  altos  funcionários do Banco do Brasil, médicos,  engenheiros, dentistas,  e uma gama de outras atividades nas quais se saíram  vitoriosos. Seus ex-alunos de Amarante foram seu  verdadeiro  orgulho de professor nato, como  ele costumava  se definir.

Além da atividade do Atheneu, Ruy Barbosa,  desde cedo  começara a escrever  artigos para jornais de Floriano  e de Teresina. Eram artigos que já chamavam a atenção  do leitor para o seu  talento e competência. Isso tudo só mais tarde vim a  saber  por ele ou  por outros meios  de informação.

Eu, criança,  ia me desenvolvendo: um ano, dois anos,  três anos. Já falava alguma coisa talvez atrapalhadamente. Já andava,  já brincava.  De poucos incidentse me recordo plenamente.  Um foi, quando pequenino, caí no chão de casa e tive  um rasgão no queixo. Lembro-me  de quem  então  mais  se  preocupou comigo: minha  avó  paterna, Candinha. Foi ela quem cuidou do ferimento.

Lavou-me o queixo sangrando, passou-me  sal no local. Não sei bem se era sal, mas a sensação que tenho agora é que tinha  o  gosto de sal que seguramente  se espalhou pela boca escorrendo – quem sabe – do colo dela onde pusera  a criança  chorando  de dores. Resquícios do  ferimento ainda tenho até hoje. Quase invisíveis.

Um outro incidente se refere à viagem de  ônibus de Amarante para Teresina. Estávamos de mudança para fixarmos residência na capital. Ônibus que não era fechado dos lados. Só havia os  assentos sem nenhum conforto. Era  o ano de 1948. Esse incidente,  porém, me foi contado  por mamãe.  O casal Cunha e Silva  já contava com  quatro filhos. Eu, o terceiro. Papai e mamãe cuidavam de segurar  três: Sônia,  Winston e Evandro, o quarto. Um senhora, companheira de viagem,  pediu à minha mamãe que  eu fosse para o colo dela, no que mamãe acedeu agradecida. Era menos um peso e cuidados.

Outros fatos  ou circunstâncias da viagem não me vêm por enquanto à memória. Deixarei  para mais  tarde, seguindo o conselho de Álvaro Lins (1912-1970), a narração  desta  primeira tentativa de uma aspiração ao espólio da memória  de um adulto saudosista  – coisas da idade que já começam a borbulhar no espírito mas que deste fazem parte no "balanço da vida.”