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Quantas sensações poéticas eu vivi com palavras de e sobre Manoel! Estou recordando dos deleites que eu vislumbrei desde quando encontrei o Livro sobre nada. Em outros textos eu havia revelado que o meu primeiro contato com a poesia de Manoel de Barros foi com tal obra. Algumas lembranças simples e valiosas vieram à tona neste instante. Renata Beatriz Brandespin Rolon fazia um curso pré-vestibular com a professora Olívia Garcia, em Alto Garças, juntamente com outros vestibulandos. Eu não aderi ao curso porque sempre escolhi estudar sozinha por conta de meu próprio ritual de poeta e pelo fato de exercitar meu autodidatismo e aprender com o próprio olhar. A sensação de conseguir qualquer coisa com esforços individuais é muito mais prazerosa, não necessariamente egoísta, embora alguns já tenham dito que eu seja individualista em matéria de dividir experiências de leituras. Não é nada disso. Simplesmente prefiro viver assim em matéria de confinamento com os livros.
Nunca me esquecerei da recusa de “colegas” quanto ao empréstimo dos livros para eu xerocar, pois eram todos meus concorrentes no vestibular da Unemat, quando o Curso de Letras era mais procurado e concorrido. Desafortunadamente, lembro-me ainda daqueles que rejeitaram compartilhar os livros e foram todos reprovados no vestibular. Não que eu desejasse isso. Entretanto, Renata, sempre elegante e simpática, ofereceu-me  Livro sobre nada. Engraçado! Escrevo como se neste instante eu estivesse na porta daquela salinha ao lado da antiga sede do Ytrio Corrêia com ela se levantando para me entregar Livro sobre nada, comentando que fazia questão de compartilhar comigo. Nos pequenos gestos desvendamos quem é uma pessoa rara. Eu virei para ela e falei: “Nossa, um livro que fala sobre o nada! E você, entendeu tudo?”. Ela sorriu charmosamente com seus cabelos loiros, dizendo que nada parecia com nada mesmo.
Somente depois de alguns anos, descobri que poesia era o nada multiplicado por zero em matéria de tudo e suas grandezas do ínfimo. Quanto ao relato do empréstimo do livro de poesia, ela deixou os poemas comigo para que eu lesse e relesse o quanto desejasse. Anos depois o meu professor de literatura e ela apaixonaram-se e ambos tiveram experiências promissoras com a poesia de Manoel de Barros e acabaram se casando. Eles visitaram Manoel de Barros, tiraram fotos e tiveram suas vivências marcadas para sempre na memória de um leitor. Ao contrário de mim, que agora poderia fazer uma visita pessoalmente ao poeta, pois recebo bolsa de estudo para isso. No entanto, eu sempre me declino dos encontros, sejam amorosos ou não. Eu prefiro viver a sensação do imaginário, de como seria SE... Na verdade, SE eu visitasse Manoel, o efeito poético do SE deixaria de existir e eu não seria eu.
Inclusive, eu poderia tê-lo visitado SE eu não me declinasse do convite de ser monitora de um projeto que investigava a poesia dele pelo fato de ler bem os textos de Octavio Paz e, em consequência, por ser uma das alunas, na época, que escrevia com certo rigor acadêmico. SE aceitasse entrar para a pesquisa, dessa experiência, eu teria a oportunidade de beber um chá poético com Manoel. É certo que a poesia dele sempre me cercou como se suas fivelas de prender silêncios me colocassem num amontoado de palavras e eu quisesse entendê-las com um “abridor de amanhecer”. Mas deparei-me com outros versos para compreender que poesia é sensibilidade de corpo e “entender é parede”. Enfim, ocorreu que outra amiga abraçou a monitoria e se tornou uma das estudiosas da poesia manoelina, concluindo mestrado e doutorado. Falo de Nismária Alves David Barros, com sua recente Tese O lugar do leitor na poesia de Manoel de Barros, a qual tem lido a poesia dele melhor do que eu.
O certo é que eu fiquei até hoje com diversas sensações de quem guarda os versos do nada numa folha acetinada a espera do próximo poema. Antes de Manoel de Barros publicar Poemas rupestres, mandei uma carta para ele e falei da imagem valéryana e depois quando abri um poema, tinha um verso da mesma forma que eu escrevera na carta (Como diria Paul Valéry/ Poesia é pensar por imagem). No momento, desabrochei em invejamentos da imagem como se o poeta bebesse em minha fonte. Olha só? Quanta sensação pretensiosa e poética esta minha! Foram coincidências então? Logo ri de Manoel e dos acasos líricos, pois ele mesmo já havia dito: “Ninguém é pai de um poema antes de morrer”. Apalpei, senti e vivi a melhor das sensações. Preferi viver sentimentos líricos, idealizando como seria o encontro SE tivesse acontecido a presenciá-lo. Isso é meio aristotélico ou platônico e, de alguma forma, é exclusivamente meu estilo de ser e sentir as coisas e faz parte de minha simplicidade de pessoa.
Fico com a impressão interiorana de quem espera o carteiro no portão de madeira e recebe um envelope escrito à mão, revivendo o passado que foi “massacrado” pela tecnologia e/ou mídias eletrônicas. As sensações poéticas de uma carta são tão intensas como aquela de ver o escritor de perto. É diferente de qualquer carta por e-mail. Também acho meio que novelesca essa ideia de conversar com o poeta como se ele fosse um deus ou um artista famoso de Hollywood. Poeta é, portanto, um ser de linguagem. Como pessoa, ele é tão comum, padecendo de dores e com inúmeras contas a pagar como qualquer outro sujeito humano, quiçá até muito mais que um indivíduo qualquer. Todavia, isso é um privilégio de fontes.
Digo ainda que a sensação de receber um jornal que acabou de sair sobre Manoel de Barros é tão intensa quanto visitá-lo. A percepção lírica de receber algumas palavras trêmulas, escritas pelo poeta, dizendo que ama a minha leitura e se inclinou como meu admirador é muito mais lírica e jamais prosaica. O deleite de fazer uma leitura de uma obra e posteriormente o poeta escrever na carta que minha leitura veio ao encontro de seu objetivo de escrita poética não tem preço. É quase a mesma sensação de um menino que estuda matemática com muitos esforços e depois tira dez. Ou de um jogador que vibra ao fazer o melhor gol de sua vida. Manoel não me diria o que me escreveu pessoalmente e nem eu diria a ele o que escrevo. A letra minúscula de Manoel, parecendo formigas, as invenções e as mentiras poéticas que ele conta para desexplicar a sua poesia são sentimentos que o tempo não consegue apagar, tão conservadora como a mesma imagem de alguém que vai visitar o poeta e tira uma fotografia para guardar o sorriso numa caixa ou num álbum de retratos. É uma linguagem da alma que se identifica com o celestamento do cisco e da terra. Uma sensação dilaceradamente lírica como a mesma que tive ao abrir o seguinte poema pela primeira vez:
 
 
As coisas tinham para nós uma desutilidade poética
Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber.
A gente inventou um truque pra fabricar brinquedos com palavras.
O truque era só virar bocó.
Como dizer: Eu pendurei um bentevi no sol...
O que disse Bugrinha: Por dentro de nossa casa passava um rio inventado.       
O que nosso avô falou: O olho do gafanhoto é sem princípios.
Mano Preto perguntava: Será que fizeram o beija-flor diminuído
só para ele voar parado?
As distâncias somavam a gente para menos
O pai campeava campeava.
A mãe fazia velas.
Meu irmão cangava sapos
Bugrinha batia com uma vara no corpo do sapo e ele virava uma pedra.
Fazia de conta?
Ela era acrescentada de garças concluídas.
(BARROS, 1996, p. 11).
 
 
Estas memórias são improfícuas e não servem para nada em matéria de pesquisa acadêmica. Foi apenas uma forma de reviver os néctares de poesia e agradecer aos que fizeram parte da história que estou escrevendo e compartilhando com ex-colegas de literatura. Obrigada Renata, pelo empréstimo do livro. Obrigada Isaac por levar os versos do “nequinho” para as aulas de poesia. Obrigada Nismária, por sentar comigo na sala de minha casa e falar de suas experiências com a poesia manoelina. Obrigada Goiandira, pela porta aberta para receber os diversos leitores de Manoel. Infinitamente, obrigada Manoel de Barros, por fazer parte de nossas vivências. Que sua poesia voe sempre fora da asa e seja arrebatada pelo azul dos pássaros no entardecer. E que o nada perdure, já que "se o nada desaparecer a poesia acaba".
 
 
(Por Rosidelma Fraga – Hoje, 07 de abril de 2012.)