O recente episódio das sapatadas contra o presidente George Bush merece uma na alise mais profunda em face da relação que o incidente tem com a semiologia que, para o caso, serve à elucidação entre o som, a palavra, os gestos e os signos representativos decorrentes desse incidente que muito tem a ver mais com um gran finale às avessas de uma ópera-bufa. A cena e a coreografia ali avultam de forma histriônica. Não chega ao trágico. Ainda bem. Mas atinge as raias da pantomima.
                    Essa é a nota lúgubre e constrangedora de um homem que atingiu o cargo mais alto do governo e, ainda por cima, por dois sufrágios sucessivos.Fim trágico, incolor e melancólico de um chefe de Estado que administrou seu país – o mais poderoso do planeta -, e não soube manter-se com grandeza na condição de  primeiro mandatário de uma portentosa nação. Não fez jus aos nomes de George Washington, Jefferson, Benjamin Franklin e outras figuras proeminentes de seu país.
                 No exemplo norte-americano, presidentes houve que sofreram atentados, alguns mortais, como Lincoln e Kennedy. Estes, todavia, foram presidentes respeitados pelo seu povo, ainda que neles possamos fazer alguns reparos, como é o caso de Kennedy com respeito ao Vietnam.
                Bush, não. Ele não seria nunca reverenciado pelos cidadãos norte-americanos. Finda o seu segundo mandato combalido, impopularíssimo e o máximo que pode agora fazer é recolher-se ao silêncio dos vencidos.
              Bush foi, talvez, o presidente norte-americano que mais concorreu para que o nome da grande nação americana sofresse os mais duros golpes de execração por parte de algumas nações árabes e de outros povos da Terra. Nunca o pavilhão norte-americano foi tantas vezes queimado em praça pública. Isso não é bom para uma nação que se diz defensora da democracia.
            O maior erro de Bush, ou melhor, seu maior crime, foi invadir o Iraque até quase aos limites do genocídio. Todos nos recordamos das atrocidades cometidas pelos norte-americanos e aliados através dos bombardeios maciços aéreos atingindo em cheio um país já de si assolado por tantos problemas intestinos de natureza político-religioso-ideológica.
             Os alvos das bombas e mísseis de alta potência tornaram-se, via satélite, cenas surreais e ao mesmo tempo banalizadas e embrutecedoras de emoções humanas. Seus objetivos eram alcançar apenas quartéis, depósitos de armas e, é claro, militares iraquianos. Porém, a essa selvageria guerniquiana se somaram aquelas perdas de vida constituídas de crianças, jovens, adultos e velhos. O patrimônio arqueológico, artístico e histórico do Iraque foi também alvo das explosões assassinas. O país, da noite para o dia, virou uma terra arrasada, sem infra-estrutura, entregue à própria sorte.
           As nações submissas à hegemonia norte-americana, sobretudo a Inglaterra, ainda mais contribuíram para a devastação de uma país indefeso e se dizendo, através de um ditador-fanfarrão, pronto a enfrentar a guerra, cujo fim foi trágico e desesperador. Bush, com manu militari, agiu sozinho e redobrou sua ira ainda mais após o 11 de setembro. Suas ações ilícitas pouco se lixaram para os organismos internacionais, tendo à frente a ONU.
          O motivo da invasão: nenhum que justificasse essa vil ação sob o arrepio das leis universais da soberania dos povos. Pois, no Iraque, não havia armas nucleares, conforme especialistas afirmaram. Só petróleo. Ora, era isso justamente a menina dos olhos do arrogante Bush filho.
         Por isso, na passagem de sua última visita oficial ao Iraque, precisamente no Afeganistão, num pronunciamento à imprensa, ao lado do Primeiro Ministroa iraquiano, a tragédia armada por ele se transmudou no mencionado incidente burlesco de que foi vítima solitária. Um jovem jornalista iraquiano, Muntardar al-Zeidi, inopinadamente, sem se importar com as conseqüências que poderiam advir do seu ato, tendo em vista o forte esquema de segurança do presidente, tirou os sapatos e arremessou, um de cada vez, em direção ao ilustre visitante, ao mesmo tempo que xingava o presidente de "cachorro", o que a imprensa de língua inglesa ambiguamente  chamou de “o último insulto”. A ação tragicômica deixou o presidente Bush em deplorável situação farsesca ao desviar-se dos sapatos lançados contra ele. A televisão, com os seus mil recursos, multiplicou em seqüências rápidas que mais pareciam cenas de filme pastelão, ou espetáculo de circo mambembe, com palhaço e tudo para regozijo da garotada sedenta de patuscadas.
     Bush exibiu uma fisionomia entre o trágico e o farsesco. No seus olhos miúdos percebia-se visivelmente o tumulto que lhe ia n’alma constrangida e perplexa como uma criança pega em flagrante por alguma ação travessa. Sorriso alvar, que só lhe fazia crescer o vexame de que era vítima aos olhos do mundo e às reações e aos sorrisos escarninhos partidas dos próprios jornalistas apresentadores, em escala planetária, daquelas imagens, gestos, movimentos, olhares e palavras mal articuladas saindo da boca do presidente da Casa Branca.
   Os sapatos de Muntardar al-Zeidi simbolizam os ataques contra Bagdá e outras regiões iraquianas, contra as violações e estupros de soldados norte-americanos. O alvo do jornalista possivelmente era o rosto do presidente. O alvo é o cérebro, o eixo das determinações. A ousadia e a coragem do jovem jornalista eram uma resposta à invasão fatídica, irresponsável e desnecessária à soberania de um povo, à sua história, aos seus costumes e à sua cultura. O par de sapatos é o correlato da tirania pós-moderna contra fracos e indefesos de nossos dias. Bush, finalmente, torna-se palco de uma comédia de erros. Não merece os aplausos do mundo, mas a indiferença e o repúdio dos povos civilizados.