Quando o ex-escravo Lima chorou
Paulo de Jesus, aposentado que mora em Brasília, recontou uma estória do negro Lima.
Os relatos do velho Lima
das bandas de Paracatu,
estórias das Minas Gerais,
ouço o amigo Paulo contando.
Jà guardados no patiguá
nomes próprios do grande Lago
filhos da negra Carolina:
Fileto, Cecília e Damiana.
Da vila rural de Hematita,
na memória do Dilermando,
estão como num relicário,
belos contos da babá Tana.
(A COLUNA "RECONTANDO...", em 30.1.2010)
Sobre assuntos correlatos, há outras estórias aqui recontadas em:
http://www.portalentretextos.com.br/colunas/recontando-estorias-do-dominio-publico/chica-da-silva-de-oliveira-chico-rei-e-dois-quilombos-do-pai-ambrosio,236,3017.html
(CHICA DA SILVA, CHICO REI E PAI AMBRÓSIO)
http://www.portalentretextos.com.br/colunas/recontando-estorias-do-dominio-publico/indios-mura-os-guardiaes-do-caminho-fluvial,236,3189.html
(CHICA DA SILVA, POCAHONTAS E OS HERÓICOS ÍNDIOS DOS RIOS, PARANÁS, FUROS E LAGOS DA AMAZÔNIA OCIDENTAL)
http://www.portalentretextos.com.br/colunas/recontando-estorias-do-dominio-publico/projeto-pixinguinha-e-acesso-universal-a-dados-culturais-digitalizados,236,2575.html
(ESTÓRIAS DA PRETA TANA, NA RECORDAÇÃO DE DILERMANDO ALVARENGA DE SOUZA)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ulysses_Bittencourt
(MORADORES DO BAIXO PURUS, EX-ESCRAVOS E DESCENDENTES DE EX-ESCRAVOS, NO LAGO DO AYAPUÁ, ESTADO DO AMAZONAS, BRASIL)
A LEI AÚREA, DE 1888, LIBERTOU MAIS DE 700 MIL ESCRAVOS
NO BRASIL
http://asmelhoresjornalistas.wordpress.com/2008/12/
TÍTULO DE LIVRO QUE INSPIROU O NOME
DA PRESENTE recontação DE ESTÓRIA TRISTEMENTE
VERÍDICA
(Reprodução da imagem da capa:
http://psifaa.blogspot.com/2007/04/quando-nietzsche-chorou-chega-aos.html)
"(...) O Império não deu a indenização aos senhores de escravos por motivos econômicos. "O Brasil não é bastante rico para apagar o seu crime", explicou o abolicionista e monarquista Joaquim Nabuco, 40 anos. Ou seja, o Império não tinha dinheiro em caixa para pagar as indenizações aos mais de 200.000 donos dos 700.000 escravos libertados no ano passado. Com isso, a monarquia perdeu sua base de apoio mais sólida, a dos fazendeiros, que se sentiram roubados. Com uma clarividência notável, o falecido João Maurício Wanderley, barão de Cotegipe, presidente do Conselho de Estado até dois meses antes da abolição, afirmou depois da assinatura da Lei Áurea que a princesa Isabel havia libertado uma raça, mas perdido o trono. (...)".
(Revista Veja, VEJA NA HISTÓRIA - Brasil - "Era uma vez a velha monarquia - A anarquia militar, a abolição radical e o centralismo derrubam o Império de supetão" - REPÚBLICA - 20 de novembro de 1889,
http://veja.abril.com.br/historia/republica/queda-imperio-velha-monarquia-impressao.shtml)
Em memória do Sr. Lima, ex-escravo que viveu em Paracatu-MG,
a Bezerra da Silva, que tambem já faleceu,
e para o Sr. Paulo de Jesus, um vizinho, um amigo
30.1.2010 - Certo dia, o finado Sr. Lima chorou copiosamente - Paulo de Jesus (71 anos, em janeiro de 2010), nascido em Paracatu, Estado de Minas Gerais, é aposentado e mora em Brasília. Escuto suas estórias com a máxima atenção. Hoje ele me contou uma estória do negro Lima, recolhida quando o aposentado ainda era adolescente, da cidade de Paracatu-MG, onde o Sr. Paulo nasceu e foi criado. Paulo de Jesus é filho do Sr. Manoel de Jesus e de Dª Maria Ana de Jesus, casal que já não está mais entre nós. Dª Maria Ana foi dona de casa e o Sr. Manoel foi ferroviário. Trabalhou na linha do trem de ferro (Estrada de Ferro Goiás). Sendo filho de um ferroviário que trabalhava em trânsito, - ou "trabalhava andando", como diria o saudoso sambista Bezerra da Silva - imagine-se a quantidade e a qualidade das estórias que Paulo de Jesus não tem para contar...
Conta-me Paulo de Jesus que "O negro Lima afirmava ter sido escravo e preto fujão [expressão utilizada pelo próprio Sr. Lima]. Ao ser capturado pelo senhorio, ficava preso, com água até os joelhos. Por isso, tinha os joelhos duros. Não movia nem dobrava os joelhos, devido ao tempo que ficava de cócoras. O dia mais feliz da vida dele foi quando recebeu um colete xadrez, usado, que lhe dei. Lima o abraçou e, chorando, dizia? '- É igualzinho ao do senhorio, que eu via, ao ser espancado, lá de cima da sacada da sede da fazenda'. Levando porrada, Lima jurou que ainda iria vestir um colete como aquele que ganhou (xadrez), mas disse que não queria ver um negro apanhando como ele apanhava, no tronco".
Agradeço penhorado a paciência do amigo Paulo de Jesus, que parou para me transmitir o significativo relato de QUANDO O NEGRO LIMA CHOROU. Sem demora, passo a compartilhá-lo com os amáveis leitores da Coluna "Recontando estórias do domínio público". Outras estórias do negro Lima aqui serão recontadas, se tudo correr como o previsto. Flávio A. L. Bittencourt ([email protected])
O SENADOR ALOIZIO MERCADANTE, LÍDER DA BANCADA DO GOVERNO BRASILEIRO NO
SENADO FEDERAL, PRONUNCIA DISCURSO POR OCASIÃO DA COMEMORAÇÃO
DOS CENTO E VINTE ANOS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA NO BRASIL
(http://mercadante.com.br/noticias/tv-mercadante/?pagina=8)
Chico Rei [sinopse do filme]
"Em meados do século 18, Galanga, rei do Congo, é aprisionado e vendido como escravo. Trazido da África num navio negreiro, recebe o cognome de Chico Rei e vai trabalhar nas minas de ouro de um desafeto do governador de Vila Rica. Escondendo pepitas no corpo e nos cabelos, Galanga habilita-se a comprar sua alforria e, após a desgraça do seu ex-senhor, adquire a mina Encardideira, tornando-se o primeiro negro proprietário. Ele associa-se a uma irmandade para ajudar outros negros a comprarem sua liberdade". (http://adorocinemabrasileiro.com.br/filmes/chico-rei/chico-rei.asp)
"Chico Rei
In “Meu Torrão”
E o velho, apontando-me o Alto da Cruz, perguntou-me:
Não vê, lá em cima, uma pia de pedra?
Vejo.
Tem mais de duzentos anos.
Era em Ouro Preto, numa daquelas tardes silenciosas que envolvem a velha cidade num lençol de doçura. O velho falava-me de coisas antigas.
— Naquela pia de pedra é que as negras de Chico Rei, nos dias de festa, lavavam os cabelos empoados de ouro. Conhece a história de Chico Rei? interrogou-me.
— Não. Sentou-se. Sentei-me.
— Chico Rei, disse ele, era o monarca de uma nação qualquer lá da África. E rei poderoso, com uma corte numerosa e um exército respeitado pelos reis vizinhos. O seu povo vivia feliz e farto, cultivando a terra.
Um dia chegou a notícia de que os reinos próximos estavam sendo atacados pelos brancos europeus que escravizavam os negros. Uma cidade vizinha tinha sido cercada de surpresa, quando a população dormia e quase toda ela escravizada.
O monarca reuniu o seu exército e preparou-se para resistir. Se os brancos invadissem qualquer pedaço do seu país, o seu povo lutaria até vencer ou até morrer.
Uma noite vieram-lhe trazer uma notícia assustadora: uma das suas aldeias tinha sido assaltada por um bando de negreiros(1) e os habitantes presos e reduzidos à escravidão.
Mas os inimigos estavam ainda em terras do seu reino e podiam ser combatidos. Mandou reunir imediatamente as tropas e imediatamente as enviou ao encontro dos assaltantes.
Foi no dia seguinte à partida do exército que se deu a grande desgraça.
Noite profunda. A cidade real dormia desprevenida, sem defesa. De repente ouvem-se tiros, gritos, alaridos. A população acorda trêmula, assustada. Eram os negreiros que chegavam. A guarda do palácio vem para a rua. Vêm para a rua o rei, a rainha, os príncipes.
O monarca tenta resistir com os poucos soldados de sua guarda. Mas é impossível repelir o ataque: os negreiros servem-se de armas de fogo que ninguém ali conhece.
(1) Negreiro — o que escraviza os negros para vendê-los.
Chega o momento desesperador: ou todo o mundo foge ou será escravizado. Começa a debandada. É o salve-se quem puder. Mas a cidade está cercada por todos os lados.
Dá-se então o desastre. Quase toda a gente é subjugada. Os brancos não respeitam nada, nem as mulheres, nem as crianças. São todos amarrados como se amarram bichos, metidos em algemas e tocados pelos caminhos como se faz com as boiadas.
Ele, a mulher, os filhos, toda a família, toda a corte, têm a mesma sorte dos outros negros.
A caminhada pela floresta dura dias.
Uma tarde chega-se à beira de uma praia. Há um navio no porto. Para dentro do porão do navio atira-se toda aquela multidão sem dó nem piedade. Lá dentro cabem apenas cem pessoas e, no entanto, são quinhentas que metem lá dentro.
Depois o navio começa a balançar e todas aquelas criaturas, ali no porão imprensadas, sem fôlego, uivam, gritam, rugem no desespero de quem sente que vai morrer por falta de ar.
E, na verdade, começa a morrer gente, a morrer. Todos os dias os negreiros atiram ao mar dois, três, cinco cadáveres.
Ele, o rei, resiste a todas as amarguras e a todos os sofrimentos. Morrem-lhe dois filhos e ele não diz palavra.
Afinal o navio chega ao Rio de Janeiro. O bando de negros é exposto numa praça onde os compradores os examinam como os ciganos examinam os cavalos que querem comprar.
Ele, a mulher, os filhos que lhe restam e quase toda a sua gente, são vendidos para as fazendas de Minas Gerais.
E Chico Rei vem aqui para Ouro Preto com a mulher.
Dizem que nunca houve no mundo escravos mais trabalhadores e mais cumpridores dos seus deveres do que eles dois. Os próprios senhores os respeitavam. Contam que, alguns anos depois, o ex-soberano, trabalhando sem descanso, conseguiu juntar dinheiro para comprar a carta de alforria(1) de sua mulher. Mais tarde era a sua própria liberdade que ele comprava.
Todo o mundo esperava que os dois, já quase velhos, fossem descansar dos sofrimentos que a sorte lhes dera. Mas, eles continuaram a trabalhar dia e noite e agora mais do que nunca.
Tempos depois, os dois libertavam um filho. Os três trabalhando, trabalhando, libertaram outro. Os quatro, agora, libertaram mais um. E reunidos, compraram a alforria de uma outra figura da corte. Mais outra figura arrancada da escravidão, mais outra, outra mais.
O reino africano ia-se, pouco a pouco, recompondo. O antigo monarca já recebia dos seus as mesmas homenagens que lhe eram prestadas lá na África.
E Chico Rei (assim era ele conhecido em Ouro Preto) voltou a governar a sua gente como lá nas suas terras africanas.
Verdadeira vida de soberano a sua. A mulher passou a ter honras de rainha. O filho mais velho as de príncipe herdeiro, as noras de princesas.
E o reino negro, que por algum tempo desapareceu, ressuscitou e teve na terra mineira vida risonha e feliz.
( 1) Carta de alforria — carta de liberdade que o senhor dá ao escravo.
Até a riqueza veio ao encontro daquela gente. Chico Rei, com o dinheiro de seu povo, comprou as magníficas minas da Encardideira. E com o ouro das minas os negros viveram vida de luxo.
As festas do dia 6 de janeiro de cada ano foram as mais bonitas a que esta cidade já assistiu. Chico Rei, a mulher, os filhos, toda a família real, toda a corte, toda a gente que compunha o reino, iam à igreja pela manhã.
Que riqueza! As mulheres levavam os cabelos empoados de ouro e, ali, naquela pia de pedra que dois séculos não derrubaram, lavavam elas os cabelos.
O pó de ouro ia-se depositando no fundo da pia. Ao terminar a festa havia centenas e centenas de oitavas de ouro em pó.
Vendia-se depois todo esse ouro em pó. E libertavam-se depois mais e mais escravos.
Chico Rei não queria apenas a liberdade dos seus súditos. Queria a de todos os negros". (VIRIATO CORRÊA)
VERBETE 'CHICO REI' DA WIKIPÉDIA:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Chico_Rei