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 Mas os livros estão aí para nos darem mil moradas aos nossos devaneios.

Gaston Bachelard

Se alguém acredita que gavetas, armários, cofres, cantos ou conchas não são temas ideais para fazer poesia, preciso informar que está redondamente enganado. Todos esses espaços tornam-se, no livro “A Poética do Espaço”, do filósofo francês Gaston Bachelard, assuntos não só poéticos, mas, eu diria, até mesmo transcendentes.

Bachelard, nascido a 27 junho de 1884, queria ser engenheiro, mas para sobreviver acabou se tornando professor de química e física no que hoje, no Brasil, seria o Ensino Médio. No entanto, aos 35 anos, sua vida deu uma nova guinada e ele começou a estudar filosofia, principalmente, filosofia da ciência. É dele a expressão “obstáculos epistemológicos”, ou seja, dificuldades que o homem de ciência deve superar para que se estabeleça e se desenvolva uma mentalidade verdadeiramente cientifica. Segundo ele, para que esses obstáculos fossem vencidos, seria preciso ocorrer uma “ruptura epistemológica” entre a ciência moderna e o senso comum.

Em uma de suas obras mais famosas, “A Formação do Espírito Científico”, Bachelard deixa claro que ciência e poesia são dois mundos diferentes e que deveriam ser mantidos separados para benefício da objetividade do conhecimento científico. Todavia, ao longo da vida o filósofo sentiu-se cada vez mais atraído pelo imaginário poético, passando a escrever sobre esse lugar especial onde ciência e poesia se cruzam e onde razão e sonho convivem lado a lado em relativa harmonia. “A Poética do Devaneio”, “A Água e os Sonhos” e “A Poética do Espaço” são apenas alguns dos livros nos quais Bachelard tratou não só da poesia, mas do complexo universo da imaginação.

Vê-se, então, que o filósofo, assim como qualquer ser humano normal, era constituído de contradições. Se por um lado defendeu, com unhas e dentes, a objetividade na ciência, de outro se dedicou a escrever livros onde podem se encontrar frases como essa: “Nossa alma é uma morada. E quando nos lembramos das ‘casas’, dos ‘aposentos’, aprendemos a ‘morar’ em nós mesmos”. E é sobre a casa e os espaços que existem dentro dela o assunto principal do livro, “A Poética do Espaço”.

A casa, semelhante a um ninho ou uma concha, é um lugar de intimidade. Mais do que uma construção material, é um espaço onde nos sentimos acolhidos e que mantém “o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida”. Reconhecer esse espaço é também reconhecer-se. Compreender os seus diferentes dinamismos ao longo tempo, é experimentar algo que vai além do sonho, que está, segundo Bachelard, no campo do devaneio: “... a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz”.

Dentro da casa encontraremos a eterna criança que reside em nós, “a infância imóvel”. Mesmo quando a abandonamos, ela permanece como parte do nosso imaginário, com sótãos e porões, cada qual escondendo seus próprios segredos. Para o filósofo, enquanto o sótão é o lugar de camundongos e ratos, o porão é onde residem “os seres mais lentos”, e onde o medo se faz mais presente. Contudo, apesar da escuridão que esses espaços muitas vezes albergam, devem, na opinião de Bachelard, ser experimentados e o papel da poesia é nos sensibilizar para eles.

Mas a casa ainda guarda muitos mistérios. As gavetas, os armários, os cofres são, igualmente, espaços de intimidade, atribuindo-se a eles, inclusive, uma memória na qual o passado, o presente e o futuro estão condensados. Em determinado momento, Bachelard me fez lembrar o experimento mental conhecido pelo nome de “Gato de Shoredinger”, quando diz que “haverá mais coisas num cofre fechado do que num cofre aberto”. Conhecedor da física moderna, utilizou essa imagem do cofre para nos demonstrar que tudo depende do observador e do lugar de onde essa observação está sendo feita. Afinal, “A verificação faz morrer as imagens. Sempre, imaginar será mais que viver”.

Porém, o filósofo também alertou para o desgaste das imagens quando são mal empregadas. Considerava, por exemplo, pobre a ideia de ver as gavetas apenas como a imagem da compartimentação do conhecimento; tratava-se, segundo ele, de “um pensamento morto”. Do mesmo modo, afirmava que na literatura a imagem do ninho era uma infantilidade. Entendia, portanto, que todas as metáforas mal utilizadas levavam a ideias estereotipadas, desqualificando o processo imaginativo, pois, para ele, “A metáfora é uma falsa ideia já que não tem a virtude direta de uma imagem produtora de expressão, formada no devaneio falado”.

“A Poética do Espaço” é um livro belíssimo, mas de grande complexidade. É preciso estar atento. Não ter vergonha de voltar atrás nas páginas lidas, para melhor compreender o que o filósofo quer nos comunicar. Contudo, a sonoridade das frases, o conteúdo das ideias, provoca na mente mais objetiva e cartesiana o desejo de vivenciar essas experiências que estariam restritas aos poetas. Bachelard reconheceu que todo o leitor recalca o desejo de ser um escritor. Talvez, o filósofo tenha, em algum momento, identificado, em meio a objetividade científica que tanto defendeu, o desejo íntimo de ser um poeta, esquecendo-se, assim, do formalismo e da rigidez científica, para dar espaço à arte de fazer e viver a poesia.