Quando chove
Por Raphael Cerqueira Silva Em: 14/04/2025, às 18H24

À janela, observo a sete-cascas agitar-se ao vento. As folhas, agora mais alegres, cantarolam comigo: pois a chuva voltando pra terra traz coisas do ar. Que venha abundante, e mansa!
Meu rogo, no entanto, é sufocado pelas notificações no celular.
Mensagens do Bacana, companheiro de escrevivências, vindas da serra gaúcha.
Desbloqueio o telefone: em preto-e-branco, uma montanha-russa sob o céu quase coberto de entardecer. Ele, o Bacana, não sabe: andei apenas uma vez num troço desses. Uma vez pra nunca mais! Certas coisas — certos cagaços, como diz o amigo — a gente não é besta de repetir na vida.
Foi numa tarde quentíssima, como são até hoje as tardes ubaenses. O pai saiu da bilheteria com um montão de ingressos cor-de-rosa na mão; metade pra mim, metade pra minha irmã; mandou escolher aonde iríamos primeiro.
Trem-fantasma! Gritei antes que a bubiça inventasse de desperdiçá-los no carrossel ou no minhocão: eu não tinha mais saco pra ficar rodando em brinquedo de criança. Mas, pra minha surpresa, ela apontou: “Quero ir naquilo ali”. Minhas vistas subiram, subiram, subiram um bocadinho mais. Fiquei tonto. Tá de brincadeira, deixei escapulir. Não, não brincava — embora estivéssemos num parque de diversões. Pra tentar afastá-la daquela ideia de jerico, sugeri o carrinho-de-batida. A marmota emburrou, não arredou pé.
“Você sabe, sua irmã não pode ir sozinha, e eu não entro nessas coisas”, disse o pai. Sim, sabia. Como o Chapolin, suspeitei desde o princípio. Desde que a metida apontou aquele carrinho que quase cuspia gente num looping medonho, eu já sabia. Mesmo assim, insisti no trem-fantasma. O pai crispou a testa, seus olhos me fuzilaram perguntando se eu queria mesmo ficar naquela fila, debaixo do sol de rachar, o resto do dia. Neguei, olhando pra onde seu dedo apontava. A decisão, irrecorrível, foi, então, proferida: “Se não quer perder tempo, acompanha ela. Depois, quando aquele monte de bocoió tiver desocupado o trecho, você vai caçar fantasma.” Fazia sentido, claro. Mesmo assim, acatei a decisão me sentindo um grandessíssimo injustiçado.
Um sujeitinho com cara de lagarto arrancou meus ingressos, abriu a portinhola; ajeitou a mana, me empurrou; mandou não mexer ali e segurar aqui. Àquela altura, não via nem o ali nem o aqui que a mão desmilinguida mostrava. A alavanca desceu; as rodas começaram a rilhar. A marmota ao meu lado ria, ria sem parar. Sem entender o porquê, virei pra trás. O sorriso do lagarto garantia: vai morrer sem conhecer um trem-fantasma.
A subida foi tranquila. Tranquila até demais. De repente, o carrinho disparou a descer, agarrei a barra de ferro (sei lá se podia), as pernas bambearam, os olhos fecharam com muita força, gritei: vai acabar, vai acabaaaaaaaaaar...
Outra notificação: Bacana quer opinião sobre a foto.
“Escribe, y recordarás”, respondo, citando Borges, um de seus prediletos.
Enquanto a mensagem atravessa criptográficos caminhos até se decodificar lá no sul, os primeiros pingos tombam no asfalto.
Olhando novamente a velha árvore, pergunto por que me quedo assim, nostálgico, quando chove.