Quadra 275

[Chagas Botelho] 

Morei por anos na quadra 275. Toda a minha adolescência. Que foi inquieta, confusa e um tanto ilusória. Numa época em que a vizinhança sentava em cadeiras na calçada e sem celular. Quando na maioria das casas havia um quadro da Santa Ceia ou do Cristo apresentado à multidão com sua coroa de espinhos (ecce homo), pendurado na parede da sala de estar. 

Neste tempo, os homens fumavam cigarro Hollywood com piteira ora de baunilha, ora de hortelã e bebiam doses cavalares de Velho Barreiro. Enquanto que as mulheres ajeitavam os filhos para a primeira comunhão. Os meninos de terninho, as meninas de véu sobre a franjinha. Era uma vida à moda antiga. Sem pressa e mais provinciana.

Na quadra 275 residiam personalidades pitorescas. O loiro que trabalhava no maior frigorífico da cidade. Por isso, era muito solicitado a indicar a melhor carne para consumo. O militar que colecionava carros antigos. Em sua garagem eram vistos bugre, fusca e um rodado gurgel. O mascate que vendia produtos importados. Na sua kombi branca tinha de tudo, de cristaleira a cálices. 

Nesse incrível lugar de morada, havia também uma mulher de meia idade. Dona de casa que usava um dente de ouro. Passava o dia inteiro ouvindo o cantor espanhol Julio Iglesias. Não se sabia ao certo se ouvia por estar apaixonada ou por ter sido abandonada. Mais acima, já quase na ponta da quadra, tinha um carpinteiro de costeletas grisalhas que fabricava carrinhos de madeira. Depois passou a esculpir imagens sacras. O negócio não prosperou, a marcenaria fechou. 

Diante de sua casa, morava uma senhora alcunhada de santa. A alcunha não lhe fazia jus. Ela era mãe de centenas de filhos espalhados por esse mundão de Deus. Outro morador era um menino tido como doido. Magro, pele amarelada e de cabelo oxigenado, ele costumava ir até ao cemitério e arrancava cruzes e coroas de flores e as fincava nas portas das casas alheias. Sem falar no policial civil que andava sempre armado com um 38. Nas horas vagas, trabalhava como segurança para um político afamado.

No entanto, na quadra 275, o morador mais ilustre era o seu Messias. Viveu anos e anos na mesma quadra que testemunhou minhas neuras de adolescente. Por esses dias, em obra do acaso, nos cruzamos em um ponto da avenida Miguel Rosa. Há décadas não o via. Está mais velho, é claro, porém, continua sendo eletricista, e dos bons. Trocamos afagos, conversamos e rememoramos histórias e pessoas daquele nosso antigo pedaço de bairro populoso.

Comentei que entre nós, os moleques que jogavam bola descalços em pleno calçamento, ele era sumidade. Gente da maior importância. Ao chegar em casa, montado em sua magrela, companheira inseparável, ficávamos em cochichos: “olha lá, o seu Messias chegou, ele é irmão do craque. Sangue do mesmo sangue”. Seu Messias tinha todo esse prestígio pelo simples fato de ser irmão de um dos maiores jogadores do futebol piauiense: o glorioso lateral esquerdo Bilé. E nos longínquos anos 80, tempo da inocência, ter um parentesco desse quilate, era como marcar um gol de placa.