O genial Gervásio Castro fez a magnífica charge do professor Amstein, sem ter conhecido o mestre, já que ele faleceu em 1948, e sem ter acesso a retrato seu. De modo que se baseou apenas nas informações de que ele era um suíço de alta estatura, avermelhado, de bigode e barbas ruivas, e de que era um professor de matemática e desenho, “colega maior e mais velho, barulhento, inconsequente e brincalhão”, como dele disse o ex-aluno Renato Castelo Branco, no seu livro de memórias Peguei um ita no Norte.

Professor Amstein

Elmar Carvalho

Ainda no início de nossa mudança para Parnaíba, em 1975, meus pais, meus irmãos e eu fomos morar no apartamento dos Correios (ECT), na Praça da Graça. Foi na placa da rua, que lhe passa pela lateral externa, que vi estampado pela primeira vez o seu nome: Rua Professor Amstein. Sempre associei-lhe o nome ao do grande físico e gênio Einstein. Por isso mesmo a minha imaginação, às vezes fantasiosa, me levou a acreditar que ele poderia ser um judeu alemão fugitivo dos nazistas. Da janela de um dos banheiros do apartamento, nas madrugadas silentes, eu vi, muitas vezes, uma nesga dessa rua deserta e a placa luminosa da revenda Poncion Rodrigues com o W estilizado da Volkswagen.

Na época em que frequentei a casa do professor Lima Couto, por ser amigo do Paulo de Athayde Couto, seu filho, meu colega de turma no curso de Administração de Empresas (UFPI – Campus Ministro Reis Velloso), ouvi novamente falar em Amstein. Lima Couto, ao me relatar fatos de sua vida, sobretudo de sua experiência magisterial, me contou que o túmulo do velho mestre e engenheiro suíço fora por ele idealizado, tomando como inspiração o túmulo do Soldado Desconhecido.

Ao visitar o Cemitério da Igualdade, em diferentes ocasiões, descobri, por conta própria ou por informações de coveiros, os túmulos da poetisa Luíza Amélia de Queiroz, à sombra de sua frondosa e bela gameleira, o de minha prima Verônica Melo, morta em plena juventude, no apogeu de sua beleza, e o do professor Alfredo Eduardo Amstein.

Nesse campo santo também foi sepultada minha irmã Josélia, falecida aos 15 anos de idade, em cujo túmulo meu pai afixou uma placa de metal com os imortais versos de Da Costa e Silva: “Saudade! Asa de dor do pensamento!” No túmulo de Amstein, consta: “Nasceu em 27 de março de 1887 – Faleceu em 30 de julho de 1948. Homenagem de seus colegas do Ginásio Parnaibano e Escola Normal de Parnaíba.”

Através do Dr. Lauro Correia, diretor do Campus e meu professor no curso de Administração de Empresas, e que foi seu aluno na segunda metade da década de 1930, tomei conhecimento de outros fatos de sua vida, inclusive de que ele morou na Ilha Grande de Santa Isabel, na mesma casa, por sinal, em que nascera Evandro Lins e Silva, ministro do Supremo Tribunal Federal.

Portanto, eu sabia que Amstein, engenheiro suíço, de porte avantajado, de vastos e bastos bigode e barba ruivos, era um tipo bonachão, um grande contador de estórias e fatos anedóticos, em que a fantasia parecia se misturar com a verdade, em que a ficção se mesclava a fatos reais. Tive certeza disso quando li o capítulo O professor Amstein, do livro Tomei um ita no Norte, de Renato Castelo Branco, com quem, em minha juventude, cheguei a me corresponder por cartas. Dessa obra memorialística extraio os seguintes trechos:

“... Mas ele era bom e todos gostávamos dele. Não como um professor, a quem se respeita, mas como um colega maior e mais velho, barulhento, inconsequente e brincalhão. // ... Suas histórias, geralmente episódios de sua vida, eram ricas, férteis, cheias de pitoresco e de surpresas. Sentia-se que refletiam a verdade. Mas não apenas a verdade. A parte verdadeira as tornava plausíveis. Mas sentíamos que estávamos sendo mistificados, que Amstein enriquecia suas aventuras, que inventava, que acrescentava fatos, acontecimentos, detalhes imaginários. // Onde terminava a verdade e começava a fantasia? Sabíamos que ele mentia. Mas, como o Taubelman de Michel Deon, não sabíamos quando. Pois ele vivia em um mundo a um tempo real e imaginário, do qual era uma espécie de mágico, a nos deslumbrar. // Até mesmo a maneira como viera esbarrar em Parnaíba tinha esta marca de mistério e meia-verdade. Um dia o Diretor do Ginásio Parnaibano recebera um telegrama de Amstein, declarando-se engenheiro suíço, professor de matemática, e disposto a aceitar o convite para lecionar no Ginásio. O Diretor jamais lhe fizera qualquer convite. Nem tampouco o conhecia. Mas precisava de professor e contratou-o. // Assim chegou Amstein em Parnaíba, a cuja vida se incorporou, enriquecendo sua cultura e seu folclore. Deixou muitos amigos. Mas já chegou montado em uma meia-verdade.”   

 

Foto extraída da dissertação de mestrado da professora Maria do Socorro Meireles Rodrigues, cujo arquivo em PDF me foi enviado pela professora Juliana Lacet, que desenvolve uma pesquisa sobre a advogada Catarina Moura, que foi esposa de Amstein. Na foto aparece o corpo docente do antigo Ginásio Parnaibano. Acreditamos que Amstein não esteja nessa foto, uma vez que não aparece nenhum professor com bigode e barba.

No livro Cada Rua – Sua História, de Caio Passos, sobre as ruas, avenidas, praças e outros logradouros de Parnaíba, no local apropriado, encontro muitas informações sobre o velho professor Amstein, que corroboram o que sobre ele eu já sabia, além de outras que desconhecia. Entre estas, tomo conhecimento de que ele gostava de cavalgar e de cultivar suas hortas. E de que falava amiúde das belezas de sua pátria, louvando-lhe as belezas naturais, sobretudo “as edelweiss, uma linda flor branca dos Alpes”, que certamente lhe enchiam o peito de saudade e lhe faziam relembrar as níveas neves alpinas.

Dois ou três dias atrás, mediante comentário em meu blogue e de notificação em minha página no facebook, pude fazer contato com a professora e historiadora Juliana Lacet, que me pediu informações sobre Amstein, uma vez que ela está fazendo uma pesquisa sobre a vida de Catarina Moura, que foi sua esposa, de cujo casamento nasceram duas filhas e um filho, falecido aos vinte e poucos anos. Catarina foi uma mulher avançada para sua época. Advogada, escreveu vários artigos em defesa da mulher e de seus direitos. Ela era natural de Paraíba do Norte, hoje cidade de João Pessoa. Amstein era filho do cônsul suíço em Recife. Portanto, não era fugitivo dos nazistas, como a minha imaginação me fizera suspeitar.

Em meados dos anos 1980, creio, comecei a escrever uma série de poemas sobre figuras populares, anedóticas e folclóricas de Parnaíba, que faziam parte do cenário cultural, pitoresco e histórico dessa cidade. Mensalmente esses textos eram publicados, com esmeradas ilustrações de Flamarion Mesquita, no jornal Inovação. Flamarion é, como já disse, uma flama flamejante de talento. Em 2009 reuni esses poemas, que tinham o título geral de PoeMitos da Parnaíba, e os publiquei em livro, com geniais charges policromáticas de Gervásio Castro e um esmerado prefácio de Cunha e Silva Filho. Mas desde o início achei que entre eles deveria constar um sobre o professor Amstein. Não sei ao certo porque não o fiz. Acho que me faltou engenho e arte para retratar o velho engenheiro suíço.

Agora, muitas décadas depois, motivado pelos fatos acima relatados, escrevi esse desejado poema sobre o inesquecível professor Amstein, que segue abaixo (e que integrará doravante os meus PoeMitos da Parnaíba), como uma homenagem a essa instigante e fulgurante figura humana, humana no melhor e mais completo sentido da palavra:

 

            AMSTEIN

 

Elmar Carvalho

 

O professor Amstein,

com seu vasto bigode

e densa barba ruiva,

alto, forte, avermelhado,

chegou a Parnaíba montado

no árdego Pégaso da mistificação.

Assumiu emprego no

Ginásio Parnaibano e na Escola Normal.

Professor de desenho geométrico e matemática,

fazia suas métricas e matemágicas

em suas fantásticas e fantasiosas histórias.

Engenheiro e da Suíça, era um verdadeiro

canivete suíço: polivalente, pau para toda obra,

homem de sete ou mais instrumentos, substituía

qualquer dos professores faltosos.

Novo Barão de Munchausen

recheava suas aulas e recreios

com seus anedóticos e mirabolantes “causos”,

menino grande entre os demais meninos,

“barulhento, inconsequente e brincalhão”,

no dizer do ex-aluno Renato Castelo Branco.

Para sempre restou em sua mente a saudade

de Edelweiss, a divina e linda nívea flor dos Alpes.