Presente de Natal: um conto de Miguel Carqueija

Ninguém me presentou, antes do Natal, com objetos de ouro, nem de platina, mas eu recebi, via e-mail, um conto de Miguel Carqueija!

Quando o menino Jesus nasceu, três reis magos chegaram do Oriente trazendo presentes ao Salvador. No Natal, Papai Noel presenteia algumas pessoas com um abraço sincero, outros recebem, além disso, por exemplo, um relógio de pulso, uma lembrança do Pão de Açúcar, um CD com músicas preferidas ou, mesmo, um automóvel esportivo italiano. DVDs são largamente distribuídos, na época da celebração daquele crucial nascimento. Outros, ainda, ganham miniaturas de caminhões e helicópteros, meninas ganham bonecas, beberrões recebem garrafas de uísque escocês, os nacionalistas, no Brasil (se não forem abstêmios) são presenteados com garrafas de aguardente de cana, senhoras gostam de abrir bonitos pacotes com perfumes franceses e ávidos leitores de romances ficam felizes quando ganham livros. Eu ganhei, via e-mail, um conto de escritor carioca Miguel Carqueija. Acho que tive sorte - e  transcrevo, alegremente, a curta estória recebida para vocês.

FELIZ NATAL! 

 

 

 

 

 

 

MIGUEL CARQUEIJA

(http://www.oentrevistador.com.br/entrevista21.html)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

BORIS KARLOFF, "preparado para aplicar injeção"

(http://www.bocadoinferno.com/romepeige/filmes/boris.html)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 ROGER CORMAN

(http://teamowens313.wordpress.com/2009/04/15/this-month-in-detroit-history-happy-birthday-roger-corman/)

 

"A MALDIÇÃO DE ROGER CORMAN 

 
 
Miguel Carqueija
 
 
 
    Às duas da madrugada, em muitas ruas do Rio não se vê vivalma. Para um ladrão refinado como Ambrósio "Boavida" Campos, morador de uma cobertura em Ipanema (propriedade dos pais ricos e descuidados), isso era ótimo. Lá estava ele, ocupadíssimo em penetrar na locadora 61 Cigny em busca daquela estante toda especial. Não precisou de pés-de-cabra ou qualquer instrumento de arrombamento. Tinha simplesmente as chaves, copiadas de originais cedidos gentilmente por uma esquelética e mal remunerada namorada de ocasião, devidamente subornada. Ele tinha suas manhas.
   Ambrósio penetrou triunfante na locadora, trancou-se nela e procurou com sua lanterna vermelha o interruptor. Encontrou-o facilmente, acendeu as luzes e desligou a lanterna. Observou então a loja, suas estantes especializadas: infantil, pornô, "western", terror, drama, romance, os raros documentários... todo um mundo de fantasia, de sonho, de paixões humanas, de morbidez, mau gosto e violência convivendo com verdadeiras manifestações artísticas... tudo isso lá estava, num espaço pequeno, pois não era uma loja grande. Filmes nojentos e obscuros lotavam prateleiras; em outras obras-primas como "E o vento levou", "Polyanna", "Derzu Uzala", "Baleias de agosto". Mas nada daquilo importava para Ambrósio. Sem mais delongas, sobraçando uma grande pasta preta de couro, dessas muito largas, ele se encaminhou para uma determinada estante, onde duas prateleiras anunciavam as fitas do "Rei do Cinema B". Era talvez a única locadora da cidade a destacar um espaço só para um cineasta.
   Extasiado, Ambrósio contemplou aquele tesouro, que valeria uma verdadeira fortuna se vendido a um bom receptador; passou então a retirar algumas fitas, examinando os textos e fotografias das embalagens. Deixou-se ficar assim durante alguns minutos, mirando aquelas maravilhas, então voltou à realidade, olhou a hora no relógio de pulso e concluiu que era tempo de completar o que viera fazer.
   Começou a jogar as fitas dentro de sua pasta.
   Um odor estranho, fétido mesmo, chamou de repente a sua atenção.
O rapaz se voltou, estupefato, e viu-se diante de uma coisa monstruosa, que parecia ocupar toda a sala, interpenetrando fantasmagoricamente as estantes. A aparição abriu a maior bocarra, mostrando dentes imensos e agudíssimos.
   — Meu Deus! — Ambrósio não podia acreditar no que via. O bicho era idêntico à figura na embalagem do "Carnossauro".
   Ambrósio se voltou para fugir. A realidade local, porém, transmudara-se; já não parecia se encontrar numa locadora de vídeo. Estava num ambiente fantástico, cheio de faixas em tecnicolor, de matizes cambiantes e cinematográficas. Vestido de bruxo, Vincent Price veio ao seu encontro, e com um gesto hipnótico fê-lo levantar-se no ar, indefeso.
   — Atrevido! — disse Erasmus Craven. — Vamos castigá-lo!
   Logo surgiu Peter Lorre, como o Dr. Bedlo. Ambrósio ainda tentou fugir, pelo ar mesmo, mas um Boris Karloff/Scarabus apareceu, mais feio do que nunca, e pôs-se a executar pomposos gestos mágicos:
   — Dê cambalhotas no ar! Isso! Agora gire! Rodopie!
   — Não! Socorro! Me deixem em paz!
   Um corvo agourento veio crocitar em seu ouvido. Um cardume de ferozes piranhas, nadando em pleno ar, surgiu em seguida, cercando-o e abocanhando-o sofregamente.
   — Ai! — gritou Ambrósio, sentindo realmente as bocadas, embora sem sangrar. — Que diabo está acontecendo afinal?
   Tentou fugir, derrubando no caminho a estante pornô, que ainda transparecia no ambiente. Mas a visão horripilante de um Dr. Xavier, de órbitas vazias, barrou-lhe a passagem. Alguém puxou-o pelo braço. Ambrósio foi forçado a se voltar e o "Futurekick" Don “The Dragon” Wilson deu-lhe um golpe no nariz, jogando-o ao chão. O carnossauro, o Caiman e até a planta canibal Audrey passaram por cima dele, esmagando-o. Com o corpo cheio de dores, alucinado, Ambrósio se ergueu e tentou novamente se por em fuga — só para esbarrar com a figura da Morte Vermelha, com seu apavorante manto.
   — Alto! Você não sairá daqui sem o seu castigo!
   — Mas o que fiz? Quer dizer, de tão grave?
   — Você saberá.
   A Morte Vermelha avançou. O infeliz Ambrósio sabia que por trás da máscara medonha estaria o rosto de Vincent Price, isto é, do Príncipe Próspero, todo ensanguentado. Tentou se desviar e um Peter Fonda com o uniforme dos Anjos Selvagens e a cruz de ferro no pescoço socou-lhe o estômago sem dó nem piedade. De volta ao chão, Ambrósio viu o seu pesadelo continuar: os carros de corrida de "The young racers" passaram por cima dele; depois viu-se no fogo cruzado dos combatentes da Iugoslávia em 1944; depois o gato preto rosnou assustadoramente e pulou-lhe em cima, procurando os seus olhos. Conseguindo se livrar do bichano, Ambrósio saiu correndo e foi repentinamente engolido pela planta canibal; ejetado pelo outro lado de Audrey, o rapaz se viu frente a uma porta mal fechada, que batia insistentemente, como se alguém ou alguma coisa quisesse sair; adivinhando que não devia abri-la, Ambrósio virou-se para a esquerda e foi acossado por um falcão furioso.
   — Socorro! Socorro! Alguém me ajude, por favor! O que é isso?
   Foi a vez do monstro aparecer, agarrando-o pelo colarinho e erguendo-o do assoalho.
   — Como ousou tentar isso? — disse a criatura, furiosa.— Como ousou prejudicar o Mestre...
   — O... o Mestre? Quem? Não sei quem é!
   O Dr. Buchanan também apareceu e secundou o monstro:
   — Não sabe? Puxe pela memória, cara. O que é que você estava tentando fazer?
   — Eu estava... estava... tentando roubar... oh, não! Não quer dizer...
   — Charles Dexter Ward vai lhe dizer o que acontecerá.
   O Dr. Buchanan, o Dr. Victor Frankenstein e o Sr. Valdemar arrastaram Ambrósio até diante de outra caracterização de Vincent Price. Estavam na verdade no alto de um altar macabro, e de uns vasos emanava um incenso qualquer, mal cheiroso. No chão do altar — que parecia se encontrar num sinistro aposento subterrâneo — estava um buraco circular fechado por um tampão de ferro, gradeado. Uma luz verde fluía lá de dentro.
   — O que é isso? Que querem de mim?
   Mas ninguém dava atenção às perguntas de Ambrósio. A uma ordem de Ward, outros personagens, inclusive Ligéia e Byron Orloff, puseram-se a puxar as roldanas que faziam erguer a pesada tampa.
   Joseph Curven (ou Charles Dexter Ward) veio dar a palavra final:
   - Você ousou roubar o tesouro em vídeo de nosso mestre. Como punição por tão grave ato, será entregue aos Grandes Antigos.
     - Os... os que? Quem são eles?
     - Aqueles de quem fala o Necronomicon.     
     Ele foi então empurrado na direção do buraco e pôs-se a se debater furiosamente.
     - Não! Não quero ser jogado ao monstro! Não! Nããããão...
     Um turbilhão o rodeou, indescritível, e Ambrósio afinal despertou caído ao chão, em meio a fitas e mais fitas de vídeo, esparramadas. Tinha um galo e uma dor na cabeça. Aparentemente perdera o equilíbrio e batera de testa numa quina.
     Angustiado, Ambrósio recolocou tudo nos seus lugares, febrilmente, o melhor que pôde, e abandonou aquele lugar, sem esquecer de trancar a porta.
     Meses depois, assistindo vídeo com a namorada, Ambrósio levantou-se e saiu da sala.
     - Não quer mesmo ver esse aqui? Puxa, é do Roger Corman...
     - É por isso mesmo. E não pergunte mais nada...
 
 
 
GUIA DE REFERÊNCIAS DESTE CONTO
 
 
     “Rei do Cinema B” – apelido com que é conhecido o produtor e diretor norte-americano Roger Corman, uma das figuras mais carismáticas do cinema. O título deve-se a serem os seus filmes, invariavelmente, de baixo orçamento – porque são pagos do próprio bolso, conforme Corman explicou em uma entrevista.
     “Carnossauro” – de 1993. Filme de dinossauro, lançado ao mesmo tempo que o “Jurassic Park” de Spielberg. Numa entrevista, Corman declarou achar que Spielberg não teve a intenção de plagiá-lo.
     “O corvo” – de 1963. Estrelado por Vincent Price, Peter Lorre e Boris Karloff, que interpretam os bruxos Erasmus Craven, Bedlo e Scarabus.
     “Piranha” – Roger Corman filmou duas versões desse filme-catástrofe, em 1976 e 1995.
     “O homem dos olhos de raio-X”, de 1963. Ray Milland interpreta o fatídico Dr. Xavier.
     “Futurekick”, de 1992. Notável ficção científica onde o lutador e ator Don “The Dragon” Wilson vive uma história cheia de ação, onde o mundo real se confunde com a realidade virtual.
     “Mercenários das galáxias”, de 1980. Ficção científica espacial, onde aparece o personagem Caiman – um homem-réptil.
     “A pequena loja dos horrores”, de 1960. Obra-prima em preto-e-branco contando a história de um humilde empregado de uma loja de flores, que cria uma planta canibal chamada Audrey.
     “A máscara da Morte Vermelha”, de 1964. Terror baseado em Edgar Allan Poe, com Vincent Price em duplo papel como o Príncipe Próspero e a Morte Vermelha.
     “Anjos selvagens”, de 1966. Vigoroso drama sobre as gangues de motocicleta dos estados Unidos. Nos papéis principais, Peter Fonda e Nancy Sinatra.
     “Desafiando a morte” (The young racers), de 1962. Espetacular drama automobilístico.   
     “A invasão secreta”, de 1964. Drama de guerra passado na Iugoslávia, em 1944.
     “O túmulo de Ligéia”, de 1964. Outro horror inspirado em Allan Poe, com Vincent Price.
     “O altar do diabo”, de 1969. Horror baseado em H. P. Lovecraft.
     “O terror”, de 1963. Com Boris Karloff. Na co-direção, Francis Ford Coppola.   
     “Frankenstein libertado” (Frankenstein unbound), de 1990. Mescla de horror e ficção científica, adaptado de romance de Brian Aldiss.
     “Muralhas do pavor”, de 1962. O Sr. Valdemar é interpretado por Basil Rathbone.  
     “O castelo assombrado”, de 1963. Um dos melhores filmes de Corman, com Vincent Price no duplo papel de Joseph Curven e Charles Dexter Ward. Adaptação de livro de H. P. Lovecraft.
     “Na mira da morte”, de 1968. Filme policial estrelado por Boris Karloff como um alter-ego, Byron Orloff, um astro do cinema de terror ameaçado por um “serial killer”. Título com que o produtor Roger Corman deu uma grande oportunidade ao então iniciante diretor Peter Bogdanovith". (MIGUEL CARQUEIJA)