Presciência Crônica: Uma Odisseia sem Homero
Em: 09/01/2014, às 18H08
[Raymundo Netto]
Fortaleza, cidade-sede, 2070. Abaixo do plúmbeo céu, o trânsito disputado por carros e pessoas declina da tradicional buraqueira nas ruas capeadas por betume artificial feito do chorumento do lixo.
Seguindo as avenidas, os OutWindows, imensas telas de diodos orgânicos com imagens tridimensionais anunciam automóveis, dentifrícios, sapatos femininos e lojas da moda.
Condomínios de apartamentos de 45m2, sob redomas de refrigeração e purificadores de ar, encerram centenas de pequenas famílias (o controle da natalidade é rigoroso). Na sala, nos quartos, no banheiro, monitores com programação pay-per-view simulam janelas postas em paredes de espelhos. Nas áreas públicas: playgrounds, lan houses, quadras, lojas de conveniências, decks e muita grama artificial. Por todos os lados, câmeras, cercas elétricas e alarmes sonoros que causam, pela cidade, sobressaltos a todo instante.
As pessoas quase não saem mais de suas casas (muitas trabalham nela). O inesperado não existe (pensam!). Tudo é planejado e previsível. A vida e a morte. Aliás, a eutanásia, como o aborto, a pena de morte e o uso da maconha são legais. Sonegar, porém, continua sendo ilegal. Os cemitérios foram extintos. Cremar é obrigatório. Não se discute mais sobre gênero: ser homem ou mulher não faz diferença. Todos são potencialmente híbridos.
Em torno da cidade-sede, as satélites — aglomerado de favelas e fracassados conjuntos habitacionais — se disseminam e crescem todos os dias, fomentadas pelo abismo gerado pela exclusão tecnológica e mercantil, fervendo em miséria, doença, violência e rancor, desejosas do inevitável dia em que, juntas e cansadas de privações, tomarão a sede de inocentes burguesinhos, consumistas inúteis, mantenedores do sistema selvagem de capital.
Nos transportes coletivos, a maioria com andar superior, as pessoas dormem, ouvem música, leem mensagens em seus clocks-mails (relógios especiais em sistema de rede wireless). O celular foi abolido — predispunha o aneurisma e acidente vascular cerebrais — usando-se fones com discagem vocal.
As cidades do interior, por ausência de políticas contínuas que evitassem o êxodo de seus jovens à Capital, foram esvaziadas e arrematadas a preço de nada por igrejas que passaram a comprá-las e a construírem pequenas promessas de “paraísos”. Nelas, as autoridades, todas elas, são pastores, eleitos por “inspiração divina”. Os reverendíssimos mantêm, por meio de legislações intermináveis, a cidade “higienizada” — e o grande comércio local — sobre o jugo da tirania celestial, censura dos meios de comunicação, impostos (físicos e espirituais) altíssimos e uma harmonia exclusiva e dogmática.
Quase todas as faculdades aderiram ao ensino à distância. Em algumas, como a de Filosofia “Livre Pensar” — que há anos tenta obter aprovação do Ministério Federativo de Educação —, seus alunos, alcunhados por "espantalhos" e coordenados pelo prof. Aquino, ainda resistem em aulas presenciais nas quadras, praças e vielas das cidades-satélites.
Nas farmácias, ambulatórios coloridos destinados aos portadores das pandêmicas síndrome do pânico, TOC e depressão disponibilizam kits-coktails reequilibrantes e fornecem óculos especiais Dreams’Pixels de projeção de imagens e som, “bengalas” endorfinomiméticas.
Os carros à eletricidade fracassaram e abriram espaço para os movidos por etanol celulósico e à água dessalinizada, nos quais, de seus escapamentos, vemos fluir um vapor branco que deixa em nosso corpo aquela sensação grudenta de maresia. Pneu. Droga, nada substituiu o pneu...
Na paisagem, shoppings de resinas poliméricas e aço de usinagem facilitada tomaram dimensão de bairros. O Cocoh é o maior deles, homenagem ao rio completamente aterrado num passado (o antigo shopping do local foi demolido após a falência do grupo). O segundo, o Trilha das Garças, no Lagamar, que dizia promover a conservação ecológica, foi construído sobre o rio onde as alvas pernaltas, agora extintas, e os pescadores, se encontravam.
Os grande fóruns e casas legislativas, parceiros fiéis dos poderes dominantes, para reduzirem o caótico tráfego aéreo e assegurar a distância do povo, mudaram-se de vez para BrasILHA, onde atuam, quando o fazem, por protegidas e impessoais vias e plenárias eletrônicas.
Hospitais públicos (assim como as escolas e a segurança) só existem nas cidades-satélites. Na Sede, as cooperativas de médicos aliadas aos grandes laboratórios farmacêuticos monopolizaram a atenção — inclusive a financeira — da saúde. As doenças, misteriosamente, só aumentam!
Depois que conseguiram vender o Cine São Luiz aos neo-pentecostais, abrasadas foram as línguas de fogo que consumiram o resto do centro da cidade. Nada mais ficou em pé. Suas ruínas marginais fazem parte de um sítio arqueológico conservado para pesquisas universitárias que não servem para nada. Também estão esquecidas as ruínas de antigos resorts e de parques aquáticos, simulações de um Caribe commodus vivendi metido a besta que expulsaram a população nativa, evadiram divisas e descaracterizaram para sempre a paisagem natural.
Na praça dos Leões, a estátua da Rachel de Queiroz continua sem óculos, e sem cabeça, sendo agora acompanhada da estátua de uma jornalista da cidade que, ao contrário dos demais, conquistou a sua cadeira na Academia Cearense de Letras apenas após a sua morte. Aliás, a Academia, por não conseguir mais o vantajoso ingresso de políticos, juízes ou demais que intermediassem por recursos de subsistência, fechou as portas. Decadentes, outras dezenas de academias foram esvaziadas. Apenas uma resiste — com sede no coreto, mictório improvisado, da praça dos Leões — tendo como único representante e líder, o Lima Freitas, atualmente com mais de 130 anos. Vez ou outra o velho poeta, com seu surrado fardão, sai bengalando os ambulantes perdidos da praça, acusando-os de macularem aquelas calçadas com suas desprestigiosas presenças, tal qual um Jesus nos templos, gritando: "Academus! Academus!"
Na praça Poeta Mário Gomes, antiga do Ferreira, brincadeira de um prefeito, a coluna da hora sucateada não resistiu ao tempo. Do cacimbão, afloram entulhos do velho comércio e ossadas de jumentos.
Diante da escassez planetária de árvores, a “Livraria” — existe apenas uma rede, a BookMegaStore — vende livros impressos tão somente em forma de edições de luxo e em pequeníssimas tiragens destinadas a abastados colecionadores de arte. Os demais fazem download, por meio de assinaturas, para leitores óticos (curiosamente, os preços nunca diminuem) ou os adquirem em forma da mídia Blu-Ray MONDO, versão bisneta do CD/DVD. Mesmo com todas as restrições, comercializam-se Pirate Books.
Hoje, a “Livraria” lançará a Coleção Obra Completa de uma autora cearense que residia em Aquiraz, anunciando, como bônus, hologramas seus em circuitos de entrevistas, enquanto outra, agora, romancista, bastante idosa, recebe um prêmio na África em reconhecimento pela obra.
José de Alencar é considerado, então, o mais revolucionário escritor brasileiro, seguido por seu discípulo e amigo Machado de Assis. Livros impressos também são encontrados na nova Biblioteca Pública (a antiga foi demolida para dar espaço ao Centro Cultural Dragão do Mar, parcialmente arrasado pelo avanço das águas que deixou submersos o prédio da Alfândega, a Ponte Metálica e o Acquário). Com pouquíssimos visitantes, a Biblioteca funciona com o Arquivo Público e mantém um amplo serviço de pesquisa e empréstimo on-line por meio de Cientistas da Informação (as dantes bibliotecárias).
Na Universidade Federal, ao lado do bosque Moreira Campos, uma herma em bronze de um antigo professor anuncia “O último crítico literário do Ceará, cujo maior pecado foi não ter deixado substitutos”.
Já há alguns anos, por não se ter mais o que falar de novo sobre os grandes nomes da literatura nacional, os alunos do curso de Engenharia Linguística e de Artes, antigo curso de Letras, viram-se obrigados a estudar os esquecidos autores cearenses, descobrindo na pesquisa de microfilmes de jornais dos séculos XX e XXI que pouco se falava deles, e que menos ainda — raras as exceções em flashsde colunas sociais cheirando a uísque — se tem registro de sua existência e de sua obra.
Rafael, estudante do curso, fora “sorteado” em classe com o nome deste autor dessas folhas d’O POVO (“Que droga... pode ser outro, não?). Dirigiu-se à Midioteca — intitulada com o nome de um contista tamborilense devido à generosa doação, pela viúva, de seu acervo bibliográfico particular — e, em meio às crônicas delongadas, como esta, encontrou o seu obituário:
— Caramba, e esse coitado morreu assim?
Raymundo Netto que não sabe onde é que nós estávamos que deixamos estragar tudo! Contato: [email protected] e blog: http://raymundo-netto.blogspot.com