PREFÁCIO DO LIVRO DE POESIA "RESSACAS", DE CARLOS ALBERTO GRAMOZA VILARINHO
Por Cunha e Silva Filho Em: 27/06/2018, às 13H28
CUNHA E SILVA FILHO
Um Prefácio não pode ser apenas elogios a um autor, mas adiantar algumas observações de natureza crítica que a obra lida possa suscitar numa primeira leitura, quer dizer, trazer à baila aquilo que o livro lançado possa oferecer de novo no tocante a livros anteriores do autor. Só os livros de estreia podem ser lidos com uma boa dose de indulgência a fim de que o julgamento não seja apenas negativo, pois quem prefacia, antes de tudo, merece tratar um autor novo com alguma boa vontade, mesmo porque o autor, ao escolher alguém que lhe faça um prefácio, já por si só espera uma boa acolhida à obra. De qualquer forma, o gesto de entregar a uma pessoa a incumbência de um prefácio é um maneira de reconhecer o valor de quem vai escrevê-lo. Seria uma espécie de homenagem ao autor do prefácio.
Sendo assim, cumpre a quem escreve esse tipo de paratexto salientar o que esteticamente seja válido na obra e o que poderia ser sugerido ao autor a fim de que ele venha a melhorar no gênero ou gêneros em que exerça a atividade criadora. No caso em exame, um livro de poesia.
Carlos Gramoza está distante de sua estreia no domínio poético há três décadas. Seu livro de estreia, Tempos perplexos, é de 1983, com Prefácio de José Virgílio Madeira Martins Queiroz. Esse longo período de vida não foi, no entanto, acompanhado de uma boa quantidade de obras escritas. Ao contrário, a obra ora lançada, Ressacas, vem a ser a terceira em sua trajetória de poeta.
Circunstâncias várias são, por vezes, impeditivas a que um autor produza mais. Não vem ao caso discutir as razões dessa questão que mais está associada à vida do autor e à vida literária. Não importa. O que permanece na história literária é uma obra editada, não a obra completa, uma vez que o conceito de obra completa é por demais vago e fugidio. Quero significar que o mínimo pode equivaler ao máximo e, em se tratando de valorização estética, número de livros nada tem a ver com bom ou ótimo nível literário.
O fato é que devo assinalar um ponto pacífico na questão axiológica de um poeta com Gramoza, ou seja, não há dúvida quanto ao reconhecimento de seu talento poético, posto que identifique na leitura de seu segundo livro, Passos oblíquos (1994), bem como no terceiro, Ressacas, já mencionado, objeto deste Prefácio, algumas deficiências de ordem gramatical e bem assim de erros de grafias não bem revisados pelo editor. Isso não é bom para uma obra nem para o autor. A habilidade criativa de Gramoza é bem superior ao seu estrito domínio de certos aspectos da disciplina gramatical, porquanto nele a potência do verso está acima do fato meramente gramatical. Com um pocu de esforço, essas defciêencias podem ser sanadas.
À época da publicação de Passos oblíquos, em novembro de 1994, com Prefácio de Clóvis Moura e Introdução de M. Paulo Nunes, não tinha eu conhecimento da existência desse poeta de Amarante. Só naquele ano vim a saber. O autor me havia remetido um exemplar autografado desse segundo livro. O livro de estreia, Tempos perplexos, já citado, somente vim a ler há pouco menos de um mês num exemplar que o autor me remeteu, também
gentilmente autografado com a data do mês corrente. A publicação, em edição simples e desataviada, ficou a cargo da Universidade Federal do Piauí – PREX - Coordenação de Assuntos Culturais. O livro não menciona o número de páginas, frente e verso, que o constitui. Resolvi contá-las. Soma 28 páginas de frente, ficando, porém, em branco a numeração das páginas do verso, num total de 28 poemas.
Entretanto, não resta dúvida de que da obra de estria até Ressacas, houve avanço considerável tanto na técnica de compor os poemas quanto em certas constantes de seu lirismo, as quais se aprofundaram, o que é um bom sinal a um poeta visceralmente sensível ao sentimento humano e ao sentimento da natureza, tanto quanto a uma atenção vigilante com problemas sociais, étnicos, políticos a desafiarem um mundo movimentado pela alta tecnologia.
Continuo apostando na sua capacidade de fazer boa poesia em diferentes frentes temáticas: lirismo, autobiografia, natureza, problemas sociais e artesanato poético, no sentido de criar metáforas poderosas que dão aos seus poemas um sensação de grito contra tudo aquilo que machuca a dignidade do ser humano. Todos esses traços temáticos e expressivos, de sua semântica poética lhe conferem um lugar de realce entre os poetas de sua geração que ainda acreditam no papel da poesia e sua função social como instrumento desalienante dos povos.
Na sua obra de estreia me chamaram a atenção, pela maior qualidade composicional, entre outros, os poemas “Lunar,” “Deslumbrado,” “Pesadelo,” “O pneu,” “Domingo à noite,” “A palavra” e “Vazio.” Gramoza, na condição de estreante tem altos e baixos, algumas hesitações de elaboração de poemas, de pontuação que podem ser sanadas em outras edições. No que tange ao fazer poético, ele se distingue pela inquietação, por um certo pessimismo e pela marca muito pessoal, muito autobiográfica, enrustida no sujeito lírico. Esse meuismo, se assim posso definir, não contribui, se exagerado, para atingir um melhor patamar valorativo de seu estro.
A hipertrofia da subjetividade lírica não ajuda nenhum bom poeta que pratique o verso em moldes modernos, i.e., desde o surgimento das vanguardas europeias e a sua assimilação na poesia brasileira, seja oriundo da ruptura do verso tradicional - rimado e metrificado _, do Modernismo de 22, seja a partir das gerações e movimentos poéticos inovadores do Concretismo de 1956 e de outros movimentos de transformação da poesia brasileira contemporânea.
No entanto, em Gramoza podemos identificar nele processos discursivos e expressivos, aliás, já mencinados atrás e que - reforçamos -, foram se aperfeiçoando desde o livro de estreia: a ) a habilidade de descrição da Natureza; b) o forte sentimento de um lirismo à flor da pele; c) a temática social de viés esquerdista que vai até a uma obsessão por certas figuras mundiais emblemáticas como as de Fidel Castro, Che Guevara, a crítica contundente ao capitalismo, o grito indignado contra a política econômica norte-americana ante as nações subdesenvolvidas (poema “Cloaca,” p.53); d) a voz da poesia impotente diante dos problemas sociais e das subjetividades e a incompletude das ações e objetivos na vida de um indivíduo, o vazio de tudo (Poema “Inconclusa Canção,” p.52); e ) uma cadência rítmica que faz com que a linha do verso seja interrompida, à semelhança de um enjambement, e conclua o sentido do verso no verso seguinte:
Elas são as duas pescadoras
Mais velhas das margens do Parnaíba. (Poema “Elas” Tempos perplexos)
É bem evidente, a começar do livro Passos oblíquos, a constatação dessa acúmulo de versos entrecortados formando, no espaço da página, uma espécie de enfileiramento de versos em estrofes heterométricas, pequenas, médias e grandes, que se vai agrupando até constituir o todo do poema.
Essa estratégia grafemática, que se vai radicalizar em movimentos poéticos posteriores à poesia concretista (Neoconcretismo, Práxis, Vereda, PTYX, Poema-Processo) caracterizada pelo anti-discursivismo, à frente, o uso até exagerado da desarticulação ou atomização dos vocábulos, ocorre igualmente em outros poetas a partir da influência – convém reiterar - das vanguardas europeias. Na verdade, essa novidade verbi-voco-visual remonta até a tempos bem remotos da Antiguidade grega e latina. No entanto, Gramoza faz uso - diga-se assim -, mais comedido dessas hiperrupturas em face do verso tradicional, antes joga mais com o espaço da página em branco e com a heterodoxia das estrofes semanticamente encadeadas.
Ora, o poeta Gramoza, que já está hoje na casa dos sessenta anos, deve ter acompanhado todas essas transformações operadas na poesia brasileira, de vez que, ao publicar seu primeiro livro nos anos 1980, ele já se insere visual e expressivamente na modernidade poética.
No que toca aos temas de sua poesia nele persistem alguns leitmotive basilares de sua produção: a paisagem da cidade natal, Amarante, sua natureza, seus ventos, suas árvores, seus rios, a recorrência de versos alusivos ao rio Parnaíba, o principal da cidade e do Estado do Piauí, o casario, enfim, seus pontos naturais mais conhecidos, sobretudo a principal rua de Amarante, chamada Avenida Amaral.
Um dado curioso do verso de Gramoza: não consegui vinculá-lo a nenhuma influência de poetas piauienses, nem mesmos do seu poeta maior, o Da Costa e Silva (1885-1950). No livro de estreia, somente uma vez me deparei com dois sintagmas que nos trazem, intertextualizadas, na linha de um verso gramoziano, partes justapostas de versos do poeta de Sangue (1908): “... aos ósculos das águas,” do sol de estio (poema “Deslumbrado”) sintagma extraído do poema “Amarante”, do livro Zodíaco ( 1917)e ”...de um sol de estio,” sintagma retirado do soneto “Saudade,” da obra Sangue.
Em Ressacas, o poeta progride, aprofunda mais temas de sua preferência. Não diria que os 57 desse poemas sejam todos ótimos ou bons. Gramoza tem subidas e caídas, mas as subidas é que o mantêm na condição de poeta que pode ser lido e estimado pelo leitor de poesia ou pela crítica.
Gramoza vai do lirismo dolorido à indignação social, do sentimento do amor indefinido à Natureza de mãos dadas com a subjetividade, do telurismo ao urbano, do sentimento da Natureza em fusão com a visão autobiográfica. Como bom poeta, entre outras preocupações, uma se deve assinalar: a de poeta que se volta, de quando em vez, para o próprio ato de criação literária, o qual, de resto, é um interesse constante de alguns grandes poetas de todos os tempo.
Essa reflexão metapoética lhe permite sondar os seus próprios recursos na construção dos poemas. Testar o canal do discurso lírico. Na poesia gramoziana tudo se mistura e tudo, a meu ver, converge a uma postura poética muito colada ao sinestésico, aos ritmos diversos, ao gozo das palavras e, portanto, da linguagem, da sua sintaxe poética que parecem desaguar em cascatas em direção ao mar profundo.
Daí que alguns poemas suscitam em nós, leitores ou críticos, ou ambos, a vontade de afirmar ”Belíssimo poema". E assim eu fiz, anotando à margem da cópia de seu Ressacas, as seguintes conclusões numa segunda leitura do livro: Muito bom ( poema “Evocação a Zumbi” (p. 43); Belíssimo (“Atalhos” p. 42); Muito bom ("Confidências", p. 59); Belíssimo ( "Lumpens", p. 61-62); Belíssimo “Ressacas” (que dá título ao livro, p. 63-64).
Dou aqui por encerrado este Prefácio e com a certeza de que li um livro de um poeta de verdade na exploração, com criatividade, de temas eleitos e com estilo literário inconfundível além de enorme carga de sensibilidade para dar e vender.
Rio de Janeiro, 27 de junho de 2018.
Cunha e Silva Filho
(Pós-Doutor em Literatura Comparada pela UFRJ. Membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia.
NOTA: Livro inédito a ser editado possivelmente este ano.