Herberto Sales, através do romance Cascalho, construiu uma biografia do garimpo de diamantes da Chapada Diamantina no sertão baiano. O que não deixa de ser também parte da sua própria biografia, dado ao conteúdo memorialístico da sua narrativa. Na obra, uma comunidade rural do interior da Bahia torna-se palco das aventuras e desventuras do garimpeiro na busca da pedra que simboliza a riqueza. O pano de fundo da trama é o contexto político da primeira metade do Século XX, no qual a nação se vê diante da necessidade de transformar a sua estrutura econômica baseada na produção agrária, modernizar as relações sociais conservadoras e suas instituições públicas, estas até então dominadas por um tipo de poder autoritário em âmbito nacional que, para se perpetuar, se valia da predominância do coronelismo no interior do país.
Os fatos históricos desta conjuntura repercutem nas Lavras Diamantinas de maneira diferenciada. Enquanto as elites locais buscam retirar o máximo de benefício dos fatos políticos nacionais, as camadas populares ouvem falar apenas de longe sobre eles, embora sejam chamadas a participar dos mesmos dentro da estratégia dos coronéis.
Em Cascalho, o romance do país do garimpo, Herberto Sales vai inscrever na prosa de ficção o universo da cidade de Andaraí, uma pequena comunidade representativa do que vamos chamar de Civilização do Garimpo. A cidade é dominada pelo coronel Germano, uma espécie de vice-rei das Lavras, e seu irmão, major Quelezinho Jardim. Nada se faz e nada se move na pequena cidade sem a permissão dos dois manda-chuvas. O autor, nas quatro partes do livro, vai nos mostrar como este universo extremamente controlado está, ao mesmo tempo, inserido na vida nacional e excluído dela, a depender do lugar ocupado pelo homem na hierarquia social. Do ponto de vista daqueles que detêm o poder local, a comunidade de Andaraí faz parte dos acontecimentos nacionais, enquanto que para aqueles que vivem do duro ofício de garimpagem ou de pequenas profissões, esta comunidade está na periferia da nação.
Capa da 3ª edição de Cascalho. Rio de Janeiro, 1953.
A narrativa de Herberto Sales contrói, em vários planos, um retrato da Civilização do Garimpo do qual fazem parte os conflitos sociais, a exploração desmedida a que são submetidos os garimpeiros, os desmandos da polícia e dos jagunços, a hipocrisia da vida dos bem afortunados e a vileza do homem exposto a condições de vida aviltantes. Ao lado deste plano sociológico vamos encontrar uma descrição sobre a paisagem geográfica da Chapada Diamantina, com suas serras, abundância dos rios, grutas e pedras monumentais, flora e fauna, que a distingue de outras partes do sertão, como a caatinga e o cerrado. Interagindo com este meio natural, o autor descreve o homem das Lavras, preso à atividade econômica do garimpo desde os tempos do Brasil Colônia. O garimpeiro de Herberto Sales, por não ter os necessários recursos tecnológicos, desenvolveu o seu conhecimento do mundo a partir da sua própria experiência na relação com a natureza.
Este conhecimento, construído no contato do homem com a natureza, fruto da experiência prática do garimpeiro, é apresentado no romance como um conhecimento mítico sobre o mundo, adquirido num tempo primordial, ao qual ele, o garimpeiro, recorre para, não somente compreender o mundo natural, mas também para tentar compreender as relações sociais nas quais está inserido.
Assim, o romance Cascalho articula a história, o espaço geográfico, os conflitos sociais explícitos e latentes, o conhecimento mitológico do garimpeiro e a própria opinião do autor, numa biografia da Civilização do Garimpo da Chapada Diamantina da Bahia. A propósito, tentaremos demonstrar, através dos relatos de viajantes – Spix e Martius, Teodoro Sampaio e da Coluna Prestes, este último feito por Anita Leocádia –, que as evidências da constituição desta civilização antecedem a obra de Herberto Sales e que o romance Cascalho é uma superposição de textos históricos, literários e sociológicos, que dialogam entre si e com os mitos da região, presentes na religiosidade, na oralidade e nos costumes do garimpo do interior da Bahia.
Os aspectos simbólicos da vida no garimpo, retratados com minúcias no romance, destacam o caráter singular da cultura da região que, mesmo sendo um território de passagem, consegue se impor à cultura do estrangeiro que por ali passa. Aqueles que por lá chegam e não se submetem a determinados rituais de iniciação, ou não logram sucesso nestes rituais, permanecem como estrangeiros ou são estigmatizados como cópia de uma cultura vinda de fora, como é o caso das famílias aquinhoadas do lugar, que copiam o modo de vida das elites urbanas da metrópole.
A obra de Herberto Sales nos mostra como esta cultura baseada nos mitos, circunscrita aos limites próprias do país do garimpo, para preservar-se, forjou inúmeros fatores que condicionaram a extração artesanal do diamante e, ao mesmo tempo, foi por eles condicionada. Esta combinação das formas simbólicas da cultura, condicionando e sendo condicionada pela atividade econômica do garimpo, é retratada por Herberto Sales, no romance Cascalho como um registro dos acontecimentos da região. Em razão disso, vamos analisar o caráter documental do romance que traz para o presente uma civilização que se encontrava, e ainda se encontra, em risco de existir apenas através de vestígios, dado ao silenciamento, acerca dela, que se seguiu à decadência econômica e política da região, a partir da segunda metade do século XX.
O caráter biográfico do texto literário será uma das motivações centrais desta análise que fazemos do romance Cascalho. Buscamos identificar na obra os marcos históricos da constituição da Civilização do Garimpo, ficcionalizados pelo autor e como se dá na narrativa literária a composição da biografia da região através da descrição do meio natural, da construção dos personagens e no registro dos depoimentos de garimpeiros, capangueiros, pedristas, jagunços, migrantes e coronéis que desfilam pelas ruas de Andaraí.
Praça Aureliano Gondim, década de 40.
Assim o nosso trabalho é composto de quatro partes, além da Introdução. No Capítulo I tratamos da Civilização do Garimpo e das suas partes constituintes: o espaço ficcional da obra, os relatos de viajantes sobre a Chapada Diamantina e o início do povoamento da região.
No Capítulo II falamos do caráter documental do romance Cascalho, fazendo a distinção entre texto de ficção e relato histórico, assinalando as diferenças de relação dos dois textos com o real e a presença do garimpo na prosa de ficção baiana.
O Capítulo III analisa a biografia social do garimpo presente no romance. Aqui, procuramos falar da cidade de Andaraí como parcela representativa do universo da Chapada Diamantina, dominada pelos coronéis através de uma rede de sustentação, cujo poder, em boa parte, advém das relações deles com o Estado. Ainda neste capítulo, tentaremos verificar a existência de um discurso de contestação ao poder local e, também, falar da Civilização do Garimpo como território de passagem de estrangeiros ao longo do tempo.
No Capítulo IV vamos falar do garimpo da Chapada Diamantina como uma civilização baseada num jogo de enganos, no qual a riqueza dos coronéis tem seu lado verdadeiro em permanente jogo com a aparência e a simulação de uma fortuna, que se esvai ao menor abalo provocado por mudanças no mundo exterior. Neste jogo de engano o garimpeiro é o principal envolvido. Na busca incessante e obsessiva da pedra da fortuna ele não muda de lugar social, mesmo nas raras vezes em que consegue o bambúrrio1. Diante disso cabe aos explorados na Civilização do Garimpo constituir uma sociedade-providência para sobreviver.
Ao concluir, reafirmamos que o romance Cascalho se insere no campo da literatura como uma obra de afirmação da cultura baiana à medida que coloca em evidência uma determinada cultura local, cujo grau de singularidade contribui para a diversidade cultural do Estado.
Notas
(1) Bambúrrio: Momento de êxtase no qual o garimpeiro, agraciado pela sorte, consegue achar o diamante, o que provoca múltiplas alterações de comportamento do mesmo e de deslocamento temporário do seu lugar social.