A faisão verde (à guisa de prefácio, introdução ao exame em profundidade de A Batalha do poder, a nova novela de Miguel Carqueija)
 
Por Flávio A. L. Bittencourt [*]
 
“(...) Gosta [M. Carqueija] de trabalhar com personagens femininas bem construídas, instaladas em universos com referências à cultura pop, aos quadrinhos e ao mangá, assim como se apropria, muitas vezes, do rico universo criado pelo cultuado escritor americano H. P. Lovecraft. (...)”

(Cesar Silva, designer e editor, trecho da Apresentação de Os mistérios do Mundo Negro, p. 3)

 
“(...) Era noite e uma nervosa reunião ocorria no castelo. Rini, mal disfarçando sua raiva, encarou o Faisão Verde:
 — Já sabem que você é uma mulher. Não finja mais. Não para mim. Você está se arriscando muito. (...)”

(Miguel Carqueija, escritor e bancário, A Batalha do Poder)

 
 “A tampa de uma caixa perfeita, cuja borda é trabalhada em relevo, não devia desejar outra coisa senão permanecer sobre sua caixa.”
                   
(Rainer Maria von Rilke [1875 – 1926], poeta nasc. em Praga [Império Austro-Húngaro] e falec. Em Valmont, [Suíça], Cadernos, p. 266 da trad. francesa; trecho citado por G. Bachelard, trad. brasileira: Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 3ª  ed., 1988, p. 163; trad.: Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal)
 
 
Não havia rapé na pequena caixa de Dona Mirtes: há um conto de Miguel Carqueija, “O tesouro de Dona Mirtes”, no qual uma senhora – a personagem principal – sempre porta, em sua bolsa, como espécie de amuleto, uma pequena caixa, por ela muito estimada e protegida. Entretanto, o que está dentro da caixa (que não se sabe o que é) virá salvá-la, num covarde assalto a mão armada. Da caixinha sairá uma espécie de “gênio da lâmpada” (ou um “Alien, o oitavo passageiro”, dilacerador, mas do bem), que pode destruir bandidos que porventura ataquem a sua orgulhosa dona. Esse conto, curto, é violento. Não há perdão para os dois marginais que matariam, sem dó nem piedade, a idosa e honesta senhora.
 
Estamos todos fartos de violência e até pedimos – eu peço, melhor situando – vingança contra os autores de maldades, algumas “lúdicas”, outras interessadas, que grassam em todos os quadrantes do Planeta. Mas Miguel Carqueija introduziu, como em esforço menos ligeiro de compreensão das mensagens transmitidas poderá perceber o(a) leitor(a) do conto, um componente evidente de justiça: o esquartejamento rápido dos meliantes aconteceu em legítima defesa. Aquela senhora seria absolvida, se fosse submetida a julgamento em qualquer tribunal.

Miguel Carqueija, católico praticante, não colocaria algo forte – ou violentíssimo, como no caso dessa narrativa curta (cuja versão em curta-metragem cinematográfica também ficou excelente) –, se uma lição final não estivesse ancorada em base ética, considerando-se que essa ética é nitidamente cristã, desenvolvida que foi durante mais de cinquenta anos de estudos bíblicos, leituras de admiráveis narrativas literárias, produções miguelinas de contos e novelas, orações e, principalmente, uma fina percepção daquilo que, talvez impropriamente, chamamos realidade (porque, de início, as “realidades” são várias).

A caixinha é uma espécie de casinha habitada por um fortíssimo soldado-protetor, um policial que, certamente, não é corrupto. No filme, que tampouco mostra o tal policial infrafísico e ultraviolento, sangue não aparece, apenas sacos pretos de lixo dentro dos quais se presume que estejam os repartidos pedaços dos dois bandidos. As porções de homens, acondicionadas sem exibição de carne, são colocados no rabecão: justiça foi realizada e o mundo pode voltar a funcionar em sossego. Evidentemente, estamos no reino das fábulas, inicialmente coletadas (ou coletadas e retrabalhadas) pelo grego Esopo – que pode ter sido escravo –, junto ao povo simples da Grécia Antiga.
 
Em novela mais recente (“Os mistérios do Mundo Negro”), em um “estranho satélite artificial situado nos confins do Sistema Solar” (naves e estações espaciais de filmes notáveis como 2001 – Uma odisseia no espaço e Solaris vem imediatamente à nossa mente), um cachorro negro ataca, todas as noites, em sonho, uma das personagens.

Dezenas de teorias poderiam ser evocadas quando se tentasse “dar conta” de semelhantes “símbolos-fenômenos”. As psicanalíticas, por exemplo. Pesadelo? A Interpretação dos sonhos, de Freud, pode ser trabalho científico imediatamente invocado. Uma espécie de objeto transicional (D. W. Winnicott) imagina-se que seja (como se sabe, o objeto transicional, de Winnicott, é o objeto simbólico da figura materna) a pequena e misteriosa boceta – calma, não se trata da caixinha de metal, madeira, couro, resina, marfim (ou outro osso) ou plástico, utilizada para guardar rapé! – de Dona Mirtes: mães viram feras violentas na defesa de suas crias, como não seria ocioso lembrar.

Isso, aliás, se não trouxermos à baila A poética do espaço, de Gaston Bachelard, nas páginas impressionantemente dedicadas à descrição que Henri Bachelin concentrou sobre a casa rústica, de sua infância, de uma povoação do Morvan (França). [Por falar em França, hoje, em Paris, na magna Data Nacional, na Av. dos Campos Elíseos, houve, enquanto estávamos redigindo o presente texto, a chegada do Tour de France, a fabulosa competição anual de ciclismo, transgaulesa.] 

A caixinha de Dona Mirtes funcionava como uma espécie de casa do Morvan, de Bachelin? Talvez. Como assinalou G. Bachelard – afirmando que se trata de passagem essencial –, escreveu Bachelin (p. 79): “Eram horas em que com força, juro, eu nos sentia como que eliminados da cidadezinha, da França e do mundo. E eu me enchia de prazer – guardava para mim as minhas sensações – quando nos imaginava vivendo no meio dos bosques numa cabana de carvoeiros bem aquecida: eu gostaria de ter ouvido os lobos aguçar as unhas no granito sem fim da soleira da nossa porta. Nossa casa fazia para mim as vezes de cabana. Nela eu me sentia seguro contra a fome e contra a sede. Se eu tremia, era só de bem estar. ” Evocando seu pai, como lembra Bachelard, em romance escrito na segunda pessoa, prossegue H. Bachelin: “Bem escorado na minha cadeira, eu me embebia no sentimento de tua força”.

Se na protetora casa de infância de Bachelin o predador estava fora do cubo, na caixinha do conto magistral de Carqueija, o “lobo” é fiel, protetor, e estraçalha o inimigo boçal: é, como se poderia coloquialmente afirmar, um “Alien do bem”. Ele salta de dentro daquela “casinha de bolso”, faz o que deve fazer, é recolhido – e a caixinha é guardada na bolsa, objeto que a essa altura do relato já é a casa da caixinha, vale dizer que não se trata mais de uma bolsa comum. Dona Mirtes volta para a sua residência (a “casa de todas as casas”), com as postas de repelentes bandidos sendo rapidamente recolhidas pelo funcionários do Instituto Médico Legal. 

E o que surge, espetacularmente, nesta nova novela (A Batalha do Poder) – admirável, um trabalho literário de maturidade – de Miguel Carqueija? Um faisão verde que era uma mulher. O faisão verde é, estranhamente, A faisão verde. Nada se contará, neste momento, sobre a novela, porque o Posfácio só aparecerá depois de terem sido lidos todos os capítulos d'A Batalha do Poder. Neste novo mundo inter e transmidiático, o da Internet, as coisas passam a ser assim: podemos escrever sobre uma narrativa (felizmente) já lida, uma vez que ele, o Posfácio, pode ser divulgado apenas depois de ter sido postado o último capítulo do texto sob estudo!

Como esta novela será divulgada, em capítulos, na Internet, antes de executar a necessária tarefa de introduzir elementos de uma futura exegese da extraordinária personagem faisão verde – e o verdadeiro estudo em profundidade da faisão verde poderá ser empreendido por estudiosos com aparelhamento teórico mais requintado do que o meu (mas a simples introdução/Posfácio farei, espero) –, que constará em seguida ao último o capítulo do livro, transcrevo a apresentação de Os mistérios do Mundo Negro, que bem sintetiza a respeito de Miguel Carqueija e sua respeitável obra literária:

“(...) Miguel Carqueija [é] um dos mais freqüentes colaboradores do Hiperespaço enquanto fanzine, sendo este o quarto trabalho do autor neste formato – os anteriores foram A âncora dos argonautas (1999), número 2 da primeira fase da Coleção Fantástica, e A Esfinge Negra (2003), número 2 da segunda fase da mesma coleção, a As luzes de Alice (2004), com a aventura que antecede a desta coleção.

“Miguel Carqueija é carioca, bancário, com muitos trabalhos publicados em jornais, revistas, livros e fanzines. Sua ficção é conhecida como positivista e construtiva, com previsões favoráveis para o futuro da humanidade. Gosta de trabalhar com personagens femininas bem construídas, instaladas em universos com referências à cultura pop, aos quadrinhos e ao mangá, assim como apropria-se, muitas vezes, do rico universo criado pelo cultuado escritor americano H. P. Lovecraft.

“Desta vez, Carqueija contou com o reforço de Gabriel Coelho [o texto ora resenhado, cuja conclusão estará no Posfácio, é obra apenas de M. Carqueija], escritor carioca de 22 anos que colaborou na concepção da história. Gabriel tem trabalhos publicados nos saites contosfantasticos.com.br e redecomics.com.

“Os mistérios do Mundo Negro é uma aventura de ficção científica tétrica, mística e muito bem humorada, e pode ser lida independentemente de As luzes de Alice, sem qualquer prejuízo.
Boa leitura. O Editor” (Os mistérios do Mundo Negro, pp. 3 – 4)

Na medida em que pretendo me deter na personagem Faisão Verde no Posfácio cuja elaboração ora anuncio, devo, imediatamente, mostrar o resultado – muito interessante, como se pode a seguir constatar – de entrevista a este Pré-Posfácio concedida por Miguel Carqueija. Passo a esse (modéstia à parte, importante) resultado, com a satisfação de quem conseguiu extrair do Autor da novela preciosas informações literário-construtivas e “conteudísticas”.


1) MIGUEL, VOCÊ PODERIA DIZER QUANDO E COMO SURGIU ESSA IDEIA DA FAISÃO VERDE (estória e personagem), POR FAVOR?
 
 
M. CARQUEIJA - Essa estória foi iniciada na década de 1970 - provavelmente em 1976 - deixada incompleta durante muito tempo, finalizada na década de 80 e deixada para trás, sem publicação, porque eu a considerava insatisfatória; só agora, depois de revisá-la totalmente, resolvi liberá-la para publicar. Assim, o processo criativo dos personagens, inclusive a "Faisão Verde" - obviamente um pouco inspirada no Zorro e no Batman - já ficou bem para trás na minha memória.
 
2) HÁ INFLUÊNCIAS IMEDIATAMENTE PERCEPTÍVEIS NA INVENÇÃO DESSA EXTRAORDINÁRIA PERSONAGEM QUE É A FAISÃO VERDE?
 
 
M. CARQUEIJA - Sempre preferi criar heroínas em vez de heróis, quebrando a rotina e quase tabu que havia mesmo na ficção científica. Naquele tempo eu não acompanhava mangás e animês, portanto não houve influência das Magic Knights, Sailor Moon e outras personagens que ainda eram futuro. Ela também não se parece com a Mulher Maravilha e outras super-heroínas norte-americanas. A influência maior talvez seja de estórias libertárias de Robert Heinlein e Clifford D. Simak.

 
3) OS ACONTECIMENTOS DA TRAMA QUE ENVOLVEM A FAISÃO VERDE SÃO, NO SEU ENTENDIMENTO, PREVISÍVEIS OU SURPREENDENTES? 
 
 
M. CARQUEIJA - A trama não se passa na nossa Terra, mas numa Terra alternativa, com outros países. O totalitarismo é uma ameaça permanente. Quanto às formas de energia envolvidas, elas divergem da bomba atômica e da radioatividade; o controle sobre os fenômenos da Natureza é algo que se pode cogitar; infelizmente na estória é usado para fins bélicos.  

 
4) GOSTARIA DE DIZER MAIS ALGUMA COISA SOBRE ESSA SUA NOVELA (A Batalha do Poder) ou, ainda, sobre a sua narrativa anterior (Os mistérios do Mundo Negro, também de 2011), construída em regime de co-autoria?
 
 
M. CARQUEIJA - Digamos que a Lena representa a velha tradição de Robin Hood, Guilherme Tell e outras figuras lendárias do combate á opressão. O livro "Os mistérios do Mundo Negro" [NOVELA ANTERIOR, RECENTEMENTE LANÇADA EM MEIO IMPRESSO, NO RIO DE JANEIRO-RJ], feito em co-autoria com Gabriel Coelho, prossegue com as aventuras da clarividente Alice Chantecler, personagem que apareceu pela primeira vez há sete anos, na novela "As luzes de Alice". Já está iniciada uma terceira estória com essa heroína. Na segunda estória, principalmente, são dadas algumas dicas intrigantes sobre o satélite artificial conhecido como Mundo Negro, situado na órbita de Plutão e cuja finalidade é misteriosa. O texto dá a entender que, afora os incidentes sobrenaturais ali verificados, também existem atividades ilícitas no satélite, que a administração se preocupa em ocultar, e que Alice suspeita, mas ainda não interferiu com isso, pois a sua preocupação, até aqui, foi combater os poderes das trevas que se desencadearam no Mundo Negro. Na terceira estória deverão ser desvendados mais segredos da estação espacial.

 
Miguel Carqueija, ao lado de outros consagrados escritores como Braulio Tavares, Simone Saueressig, Tibor Moricz – e de cem por cento atualizados e argutos estudiosos de FC, como Eduardo Torres (atual presidente da CLFC – Clube de Leitores de Ficção Científica) – e vários outros, é um mestre da literatura fantástica do Brasil, em sintonia com o que se faz, na área, de mais bem engendrado, criativo e divertido em todo mundo, hoje.

Obrigado mais uma vez, Miguel, e – como já desejou o seu editor Cesar Silva, então escrevendo sobre Os mistérios do Mundo Negro – boa leitura, leitores.
O Pré-Posfaciador (continua no Posfácio, onde abordarei exclusivamente a verdadeiramente espantosa personagem Faisão Verde).
 
Brasília, 14 de julho de 2011
(Este texto introdutório é dedicado, com saudade, às memórias das seguintes personalidades, que infelizmente não estão mais entre nós: Luiz Lopes Coelho, Earl Derr Biggers e Ulysses Bittencourt [meu pai, que foi um leitor fiel do citados escritores: L. L. Coelho e E. D. Biggers] – e a todos os parisienses que residem ou residiram no 14e arrondissement de la Ville de Paris, onde passei, em 5, Rue du Cange, uma terça parte de minhas férias de julho de 1979 – quando era colega de M. Carqueija, no Banco do Brasil [Bairro do Andaraí, Rio-RJ] –, em apartamento gentilissimamente emprestado – e não alugado – pela sempre lembrada Mme. Gillette Houssemaine [por solicitação do primo-irmão Rafael Mário Hime, pianista e professor de música, que mora em Paris], uma senhora francesa que estava na Dordonha, sendo Mme. G. Houssemaine uma veneranda matriarca do interior do Département de la Dordogne [naquela época, radicada em Capital Francesa], produtora de vinhos artesanais e outras especialidades da Região [Région Aquitaine], que se tornou viúva durante a II Guerra Mundial, em razão do falecimento de seu esposo, assassinado pelo Exército inimigo, então instalado em Território Francês.)


(*)  –  Flávio Araujo Lima Bittencourt, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP; servidor público federal (IPHAN / MinC – DF); ex-professor de Comunicação Social da rede de Ensino Superior, particular, de Brasília; ex-funcionário [colega, por quase duas décadas, de Miguel Carqueija] do Banco do Brasil S. A.; sócio-correspondente do IGHA – Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas; colunista do portal Entretextos, www.portalentretextos.com.br.


(**) – Curta-metragem a partir do conto de Carqueija está na web em: http://www.youtube.com/watch?v=CYn_11sQEQI.