Prof. Dilson Lages Monteiro
Prof. Dilson Lages Monteiro

Dílson Lages Monteiro – da Academia Piauiense de Letras

Quem foi aluno na década de 1980, quando a inserção da prática da redação começou a ganhar fôlego nos exames de acesso ao ensino superior, lembra-se de que o ensino era calcado quase exclusivamente na identificação de transgressões gramaticais. A aprendizagem ocorria empiricamente. Aprendia-se a escrever não pelo conhecimento dos recursos e mecanismos de expressão, mas pelo ensaio e erro.

Na década de 1990, as contribuições de vários campos dos estudos da linguagem, principalmente da Linguística de Texto, solidificaram-se nos currículos universitários. Da universidade, passaram aos manuais didáticos e às salas de aula. O texto ia gradativamente se transformando no centro do ensino da Língua Portuguesa. A linguagem escrita, o conhecimento dos processos de construção dela, descritos e praticados com clareza. Aprender a escrever textos significava, para muito além de decorar uma fórmula para introduzir, desenvolver e concluir um raciocínio, compreender e usar os recursos de coesão e as estratégias de argumentação.

Muitas contribuições de itens específicos dos estudos da linguagem se fortaleceram. Alguns centros, como a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e a de São Paulo, a Universidade de Campinas, a Universidade Federal de Pernambuco, para citar apenas alguns de destaque, especializaram-se em algum objeto de conhecimento. Nasciam, daí, estudos fundamentais que logo circularam em outros centros, consagrando o nome de pesquisadores sempre vivos na memória dos professores.

Assim é que a autoria, a referenciação, gêneros textuais levaram a uma ampla valorização de aspectos cognitivos do ato de escrever e principalmente à escritura de textos a partir da valorização da função social deles. Favorecia-se uma nova forma de vivenciar a linguagem, com uma maior aproximação do cotidiano e da realidade social, a língua viva, como expressão das condições de produção do discurso.

As alterações implementadas no processo de avaliação do Enem, ao longo da história do certame, não obstante o seu notável significado para a educação brasileira, conduziram a uma maior objetividade, segurança e otimização avaliativa das redações. Entretanto, levaram a um cenário viciado em que o ato de escrever é hoje decorar citações e expressões com lugar certo no texto. Está aí o manual com as melhores redações, as redações notas mil, disponibilizadas online pelo Inep, todas aparentando serem escritas por uma única pessoa.

Bauman, Kant, Rousseau etc, etc aparecem em um sem número de textos, sem que efetivamente pertençam ao repertório de quem escreveu. Saiu de cena a descrição real dos recursos responsáveis pela construção do sentido. Entrou em cena a memorização. Professores das séries finais do ensino médio reclamam que alunos fazem textos em série com a mesma organização, a mesma citação do início ao fim do ano. Tornam-se professores, escolas, cursos especializados e plataformas reféns de uma prática que contraria o significado do que é escrever de verdade. Reféns da antiética. Fariam diferentemente se as regras do jogo fossem outras.

Para além disso tudo, há o descomunal prejuízo que essa forma de conceber a aprendizagem da linguagem escrita provoca no ensino superior. O surgimento de alunos que chegam a essa etapa da formação sem o domínio concreto do ato de escrever e, consequentemente, com prejuízos evidentes à vida acadêmica, profissional e pessoal.

Diante de tão grave situação, que passa silenciosa aos olhos da sociedade civil, às vezes, como instrumento para a fabricação de resultados da escola pública brasileira, não seria a hora de mudanças profundas nesse modelo de configuração do Enem com alterações visando o fim dos vícios que deturpam o processo? Mudanças no valor geral atribuído à Redação no conjunto total da nota?

Por que não exigir para além da clássica dissertação-argumentativa, outros gêneros textuais de base argumentativa? Por que não exigir no Enem, a fim de libertação das fórmulas prontas que empobrecem nossa educação, como acontece em vários vestibulares de excelência, o manifesto, o editorial, o artigo de opinião, a carta argumentativa, a crônica, a resenha etc? Por que não diminuir o escopo geral da nota de Redação para 30 ou 40 por cento da pontuação total da nota final do Enem, com a Redação sendo solicitada antecipadamente por meio tanto da prova escrita como de questões objetivas que medem o domínio sobre a construção da linguagem (há bons exemplos de provas organizadas nesse sentido, como o modelo de provas de concurso da Esaf)?

É uma discussão necessária. Para o bem da educação brasileira. Para a construção de uma educação cidadã de verdade. Com alunos críticos e não apenas meros decoradores de frases-feitas.

Está na hora de o Brasil discutir o assunto.