POR CAUSA DA SANTA SE BEIJA O ALTAR - CRÔNICA DE DIEGO MENDES SOUSA
Por Diego Mendes Sousa Em: 04/04/2025, às 16H44

POR CAUSA DA SANTA SE BEIJA O ALTAR
Diego Mendes Sousa
Vivendo uma vida prática e corrida na capital da República, lembrei-me dos meninos do meu tempo: Fagner, Adílson, David, Rafael, Jotinha, Victor, Tiago, Ítalo, Frederico. Eram os nomes que povoavam a minha infância, no bairro dos artistas, isto é, no arrabalde Nova Parnaíba, na Parnaíba natal.
Sinto a melancolia do passado arrastar as recordações da mesma maneira como ainda hoje o pescador da praia da Pedra do Sal lança a rede rumo ao fundo do mar em busca de uma prata sagrada para aplacar a fome durante os dias quentes no Labino.
Ando também tateando o abismo do meu ser. Meus primos saltam como imagens distantes e vejo o rastro dos afetos aflorar rapidamente. O que o tempo faz é imperdoável! Márcia, Victor, Marco, este para mim era sempre Marquinho, um primo-irmão inseparável, que desapareceu do convívio e ficou perdido lá onde os dias morrem, no crepúsculo de uma nítida saudade.
Minha avó Maria José era assertiva com a sua coragem e arte de desconsertar o mundo. Ela era silenciosa, íntegra e comedida, mas disparava certos pensamentos incomuns, nada triviais. Vovó dizia: meu neto e meu filho, você acabou de nascer, não sabe nada sobre esta vida, nem nunca saberá, enquanto for menino e sonhador.
Cresci. Não deixei de ser sonhador, no entanto, ela estava certa. Hoje sei da vida, porque não sou mais menino. E por não ser mais menino, quero voltar a ser o mais completo menino do meu tempo de menino sonhador. Brinquei, joguei, pulei, corri e me escondi.
Meu amigo José Luiz de Carvalho fez surgir muitas emoções dentro de mim, quando impeliu um haicai da sua lavra em homenagem a minha avó Maria José Ferreira Sousa, em celebração aos seus 100 anos de vida, a serem festejados neste ano de 2025. Escreveu José Luiz de Carvalho:
Não há rosa sem espinho,
nem amor, sem ciúme.
Nem lírio, sem cheiro.
Acontece que vovó gostava de verbalizar os dois primeiros versos desse haicai, no auge da sua sabedoria. O último verso parte da imaginação do poeta, a dar as sensações de uma oferta afortunada, de extrema delicadeza.
Vovó era uma mulher plena em todos os sentidos. Inteligente e culta, recitava Rilke e Bilac com maestria. Era uma leitora substantiva, de inúmeros conhecimentos, de uma cultura invulgar, que abarcava ciência, história, política, literatura, música, pintura... Através dela, fui cercado de livros e galopado por um senso de retidão, de respeito e de valorização do outro.
Vovó doava-se como ser humano, porque era uma humanista nata. Existia para servir ao próximo e esquecia de zelar por si mesma. Apesar de ter sido alta funcionária do tesouro nacional, vovó era destituida de bens materiais. Sua maior riqueza era abastecer os filhos, os sobrinhos, os netos, os amigos, os afilhados, os agregados e os desconhecidos, de conforto. Sua casa era um altar para São Cristovão, nada precário. Não sei se isso era uma virtude, porém, para mim, ela a cada instante se mostrava uma santa.
Por causa da santa se beija o altar e nas minhas mãos sentia os seus beijos de carinho, essas mesmas mãos, que presentemente limam as lágrimas mais clandestinas nos olhos.