[Maria do Rosário Pedreira]

Miguel Real escreveu há poucos anos um excelente romance (se não me engano, finalista do prémio da APE no ano em que Francisco José Viegas o arrebatou com Longe de Manaus). Chama-se O Último Negreiro e é sobre o último grande traficante de escravos português, Francisco Félix de Sousa, que teve mais de cem filhos a quem, sem excepção, deu baptismo cristão e escolaridade. Ao contrário daquilo que o público poderia esperar, embora longe de fazer a apologia da figura, o escritor também nunca atira o homem para a fogueira, situando-o no contexto histórico, e não olhando-o pelos olhos escandalizados do nosso século (onde, apesar de tudo, o tráfico e os escravos permanecem). Há dias, soube que uma editora norte-americana se prepara para substituir as mais de duzentas ocorrências da palavra «nigger» do livro As Aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain, pelo mais sedoso e moderado vocábulo «escravo», a fim de que a obra não seja banida nas escolas. Politicamente correcto? Pode ser, mas a minha resposta é: não, obrigada. Em primeiro lugar, porque ninguém tem o direito de pôr a mão no texto de um génio; em segundo lugar, porque a obra tem de ser lida não apenas como literatura, mas – como disse Sarah Churchwell, professora de Literatura Americana citada pelo Público – como documento histórico que também é, no qual «a palavra em causa é icónica, porque codifica toda a violência da escravatura» e a sua rasura ocultará dos leitores a «evolução moral do carácter» do protagonista. Será que daqui a uns anos nos proíbem de ler A Arte de Amar, de Ovídio, por ser, aos olhos do século XXI, um texto machista?