Poema do milho

[Cora Coralina]

 

Milho . ..

Punhado plantado nos quintais.

Talhões fechados pelas roças.

Entremeado nas lavouras,

Baliza marcante nas divisas.

Milho verde. Milho seco .

Bem granado, cor de ouro.

Alvo. às vezes vareia,

- espiga roxa, vermelha, salpintada.

 

Milho virado, maduro, onde o feijão enrama

Milho quebrado, debulhado

na festa das colheitas anuais.

 

Bandeira de milho levada para os montes

largada pelas roças:

Bandeiras esquecidas na fartura.

Respiga descuidada

dos pássaros e dos bichos.

 

Milho empaiolado .

abastança tranqüila

do rato,

do caruncho.

do cupim.

Palha de milho para o colchão.

Jogada pelos pastos.

Mascada pelo gado.

Trançada em fundos de cadeiras.

 

Queimada nas coivaras.

Leve mortalha de cigarros.

Balaio de milho trocado com o vizinho

no tempo da planta.

"- Não se planta, nos sítios, semente da mcsma terra".

 

Ventos rondando, redemoinhando.

Ventos de outubro.

 

Tempo mudado. Revôo de saúva.

Trovão surdo, tropeiro.

Na vazante do brejo, no lameiro,

o sapo-fole, o sapo-ferreiro, o sapo-cachorro.

Acauã de rnadrugada

marcando o tempo, chamando chuva.

Roça nova encoivarada,

começo de brotação.

Roça velha destocada.

Palhada batida, riscada de arado.

Barrufo de chuva.

Cheiro de terra; cheiro de mato,

Terra molhada, Terra saroia.

Noite chuvada, relampeada.

Dia sombrio. Tempo mudado, dando sinais.

Observatório: lua virada. Lua pendida . . .

Circo amarelo, distanciado,

marcando chuva.

Calendário, Astronomia do lavrador.

 

planta de milho na lua-nova.

Sistema velho colonial.

Planta de enxada.

Seis grãos na cova,

quatro na regra, dois de quebra.

Terra arrastada com o pé ,

pisada, incalcada, mode os bichos.

 

Lanceado certo-cabo-da-enxada..

Vai, vem . . . sobe, desce . . .

terra molhada, terra saroia . . .

Seis grãos na cova; quatro na regra, dois de quebra

Sobe. Desce . , .

Camisa de riscado, calça de mescla

Vai, vem . . .

golpeando a terra, o plantador.

 

Na sombra da moita,

na volta do toco - o ancorote dágua:

 

Cavador de milho, que está fazendo?

A que milênios vem você plantando.

Capanga de grãos dourados a tiracolo.

Crente da Terra, Sacerdote da terra.

Pai da terra.

Filho da terra.

Ascendente da terra.

Descendente da terra.

Ele; mesmo; terra.

 

Planta com fé religiosa.

Planta sozinho, silencioso.

Cava e planta.

Gestos pretéritos, imemoriais..

Oferta remota; patriarcal.

Liturgia milenária.

Ritual de paz.

Em qualquer parte da Terra

um homem estará sempre plantando ,

recriando a Vida.

Recomeçando o Mundo.

 

Milho plantado; dormimdo no chão, aconchegados

seis grãos na cova.

Quatro na regra, dois de quebra.

Vida inerte que a terra vai multiplicar

 

Evém a perseguìção:

o bichinho anônimo que espia, pressente.

A formiga-cortadeira - quenquém.

A ratinha do chão, exploradeira.

A rosca vigilante na rodilha,

O passo-preto vagabundo, galhofeiro,

vaiando, sorrindo . . .

aos gritos arrancando, mal aponta.

O cupim clandestino

roendo, minando,

só de ruindade.

 

E o miho realiza o milagre genético de nascer:

Germina. Vence os inimigos,

Aponta aos milhares.

- Seis grãos na cova.

- Quatro na regra, dois de quebra,

Um canudinho enrolado.

Amarelo-pálido,

frágil, dourado, se levanta.

Cria sustância.

Passa a verde.

Liberta-se. Enraíza,

Abre folhas espaldeiradas.

Encorpa. Encana. Disciplina,

com os poderes de Deus.

 

Jesus e São João

desceram de noite na roça ,

botaram a bênção no milho,

E veio com eles

uma chuva maneira, criadeira, fininha,

uma chuva velhinha,

de cabelos brancos,

abençoando

a infância do milho.

 

O mato vem vindo junto,

Sementeira.

 

As pragas todas, conluiadas.

Carrapicho. Amargoso. Picão.

Marianinha. Caruru-de-espinho.

Pé-de-galinha. Colchão.

Alcança, não alcança.

Competição.

Pac . . . Pac . . . Pac . . .

a enxada canta.

Bota o mato abaixo.

arrasta uma terrinha para o pé da planta.

"...- Carpa bem feita vale por duas . . ."

Quando pode. Quando não... sarobeia.

Chega terra O milho avoa.

 

Cresce na vista dos olhos.

Aumenta de dia. Pula de noite.

Verde Entonado, disciplinado, sadio.

 

Agora ...

A lagarta da folha,

lagarta rendeira . . .

Quem é que vê ?

Faz a renda da folha no quieto da noite.

Dorme de dia no olho da planta,

Gorda; Barriguda. Cheia.

Expurgo : . . nada . . . força da lua . . ,

Chovendo acaba - a Deus querê.

 

" O mio tá bonito ... "

"-Vai sê bão o tempo pras lavoras todas . "

"- O mio tá marcando . . . "

Condieionando o futuro:

"- O roçado de seu Féli tá qui fais gosto ...

Um refrigério "

"- O mio lá tá verde qui chega a star azur..."

- Conversam vizinhos e compadres.

 

Milho crescendo, garfando,

esporando nas defesas...

 

Milho embandeirado.

Embalado pelo vento.

 

"Do chão ao pendão, 60 dias vão".

 

Passou aguaceiro, pé-de-vento.

" - O milho acamou . . . " "- Perdido?" . . . Nada...

Ele arriba com os poderes de Deus .. . "

E arribou mesmo; garboso, empertigado, vertical

 

No cenário vegetal

um engraçado boneco de frangalhos

sobreleva, vigilante.

Alegria verde dos periquitos gritadores . . .

Bandos em sequência . . . Evolução . . .

Pouso . . . retrocesso.

 

Manobras em conjunto.

Desfeita formação.

Roedores grazinando, se fartando,

foliando, vaiando

os ingênuos espantalhos.

 

"Jesus e São João

andaram de noite passeando na lavoura

e botaram a bênção no milho" .

Fala assim gente de roça e fala certo.

Pois não está lá na taipa do rancho

o quadro deles, passeando dentro dos trigais?

Analogias . . . Coerências.

 

Milho embandeirado

bonecando em gestação.

- Senhor! . . . Como a roça cheira bem !

Flor de milho, travessa e festiva.

Flor feminina, esvoaçante, faceira.

Flor masculina - lúbrica, desgraciosa.

 

Bonecas de milho túrgidas,

negaceando, se mostrando vaidosas.

Túnicas, sobretúnicas . . .

saias, sobre-saias . . .

Anáguas . . . camisas verdes.

Cabelos verdes . . .

~Cabeleiras soltas, lavadas, despenteadas. . .

- O milharal é desfile de beleza vegetal.

 

Cabeleiras vermelhas, bastas, onduladas.

Cabelos prateados, verde-gaio.

Cabelos roxos, lisos, encrespados.

Destrançados.

Cabelos compridos, curtos,

queimados, despenteados .

Xampu de chuvas . . .

Flagrâncias novas no milharal.

- Senhor, como a roça cheira bem! . . .

 

As bandeiras altaneiras

vão se abrindo em formação.

Pendões ao vento.

Extravasão da libido vegetal.

procissão fálica, pagã.

Um sentido genésico domina o milharal.

Flor masculina erótica, libidinosa,

polinizando, fecundando

a florada adolescente das bonecas:

 

Boneca de milho, vestida de palha . . .

Sete cenários defendem o grão

Gordas, esguias, delgadas; alongadas

Cheias, fecundadas.

Cabelos soltos excitantes.

Vestidas de palha