ELMAR CARVALHO


Em julho de 1963, quando eu tinha sete anos de idade, fui acordado cedo, por meu pai. Iríamos fazer uma viagem de trem, que então fazia o percurso Parnaíba a Campo Maior e vice-versa. Meu pai e seu colega de DCT Vicente Ibiapina iriam conhecer o mar – o mar que carrego no meu nome, e que só iria conhecer nove anos depois, em viagem comemorativa da colação de grau de minha turma, no antigo Ginásio Estadual. Conheci primeiro os verdes mares bravios de José de Alencar e de Iracema, a índia de negras madeixas e lábios de mel. Somente em 1975 conheci o litoral piauiense, quando fui morar em Parnaíba. Ainda hoje sinto a aragem refrescante a afagar minha pele, de casa para a estação. Fomos no chamado carro dos Correios. Os vagões foram puxados por uma locomotiva a diesel. Entretanto, cheguei a ver, algumas vezes, a velha maria fumaça a desfilar pelos trilhos de minha cidade, toda negra, toda resfolegante, a tocar seu sino e a emitir o seu apito saudoso, cachimbando sua lenha, e a agredir o azul do céu e o branco das nuvens com as baforadas de seu penacho negro de fuligem. Parte de suas engrenagens e vísceras eram expostas, e o seu movimento me atraía e me aterrorizava simultaneamente, pois dizia a lenda que ela tinha uma espécie de ímã, que poderia puxar um menino que lhe estivesse muito perto.


 

Nessa viagem meu pai e seu amigo seguiram para o litoral e eu fiquei em Piripiri, entregue aos cuidados do seu colega dcetista Josino, que me foi levar à casa da tia de minha mãe, Chiquinha Melo Freitas, casada com Raimundo de Freitas, patrono da cadeira que passo a ocupar. Foi a vez primeira em que estive nesta bela cidade, então ainda pequena e bucólica, com as suas flores, cheiros e cores, porquanto é a “terra de buganvílias e madressilvas”, como a denomina poeticamente a professora Clea Rezende Neves de Melo. Depois, estive aqui outras vezes, uma das quais para disputar uma partida de futebol, em minha posição de goleiro. Jogamos no campo do quartel da Polícia Militar, recém inaugurado. Não recordo o resultado da partida. Portanto, me é mais conveniente dizer que houve um empate. À noite, saímos para aventurar uma paquera com as moças em flor de então. Recordo que, certa vez, fui a um piquenique no açude Caldeirão, com minha tia Maria José e seu marido Armilo. Ficamos à sombra de belas árvores nativas. Participei aqui de vários eventos literários e culturais, sobretudo lançamento de livros. Como vou constantemente a Parnaíba, pude acompanhar o acentuado progresso de Piripiri nas últimas décadas, com o surgimento de novos comércios, edifícios e logradouros. Hoje, posso dizer que a estação, onde estive na minha infância, por onde passaram locomotivas e vagões, transformou-se numa espécie de locomotiva da arte e do lazer, local de eventos e promoções culturais.


 

Nas solenidades culturais de que participei, tive a oportunidade de falar em alguns dos bardos piripirienses. Já escrevi um ensaio de crítica literária sobre o vate Osíris Neves de Melo, de versos tão belos e tão sentimentais. É ele o pai da poetisa, cronista, historiadora e memorialista Clea Melo, de quem tenho recebido inúmeras provas de consideração e apreço, cabendo-me ressaltar que a recíproca é verdadeira, na mesma intensidade. Já proclamei o talento de Baurélio Mangabeira, sobrinho de meu patrono, mormente a mordacidade de sua veia humorística e satírica. Já exaltei o potencial poético de Newton Freitas, tio da confreira Regina Coeli Freitas, falecido em pleno albor da mocidade, quando sua alma ainda era um botão que se alcandorava para mais longos e elevados voos. Considero-o, sem nenhum favor, o verdadeiro introdutor do modernismo literário no Piauí, porque o fez de forma firme, decidida, sem concessões medrosas ao ecletismo parnasiano e simbolista vigente. Piripiri, no aspecto cultural, tem dado figuras notáveis ao Piauí, tanto no campo musical, de que é exemplo Jorge de Carvalho Melo, como na seara do humor, em que pontificam João Cláudio Moreno, Dirceu Andrade e Amaury Jucá. Igualmente, por uma peculiaridade sua, tem sido um celeiro de magistrados, entre os quais cito os desembargadores Osíris Neves de Melo, irmão de nossa colega Clea Melo, Antônio Rezende, Antero Rezende e Nívea Assunção, bem como os confrades João Bandeira do Monte Filho e Regina Coeli Freitas, que ilustram a nossa magistratura estadual. Tenho a honra de ser acolhido pelas belas e desvanecedoras palavras desta colega e amiga.


 

Do meu ensaio sobre o poeta Osíris Neves de Melo, gostaria de transcrever, como uma homenagem a todos os piripirienses, a seguinte parte lírica e introdutória:


 

“O poeta João Ferry, amigo do poeta Osíris Neves de Mello (sobre quem já me detive em longo estudo), que bem merecia ter um logradouro com o seu nome, se é que já não o tem, cantou todo o encantamento deste torrão no poema que leva o seu nome – Piripiri. Cantou os pau-d’arcos floridos, derramando suas flores de ouro, como lustres soberbos de góticas catedrais. Exaltou o belo bucolismo da Fonte dos Matos, do Recreio, do Mocozal, do Paciência e do Mosquito, no exotismo engraçado desses nomes, que nos fazem viajar nas asas poderosas do pensamento e da saudade. Nesse périplo poético nos deparamos com o riacho Cabresto, que certamente só tem rédeas nos verões das secas inclementes, mas creio ser indomável nas invernadas das chuvas, nos tempos felizes das cachoeiras, da fartura e do verde reverdecido em verde cada vez mais verde. O Garibaldi de tantas recordações, de tantas conversas, de tantos sonhos que se concretizaram em realidade e de outros que se derruíram em desilusões e irrealizações. Açude Anajás, Flor dos Campos e rio dos Matos, já nos trazem evocações líricas e bucólicas na poesia de seus nomes, que cheiram a terra molhada e a flores silvestres. O primeiro é um céu a retratar outro céu, na ressonância da imagem dacostiana; o segundo faz lembrar um campo matizado de flores do campo, flores simples, flores humildes, flores incultas, jamais encontráveis nos jardins dos palácios e das mansões, porque apenas cultivadas pelo Supremo jardineiro que as criou; e o rio dos Matos, filho dos matos, na sugestão de seu nome floral.


 Por fim, a evocação dos festejos de Nossa Senhora dos Remédios, onde tantos buscaram remédio para seus males, nas promessas da esperança e da fé, onde tantos namoros foram deflagrados, na cumplicidade dos olhares, onde a saudade nascia das bocas das amplificadoras, nas músicas e nos recados do locutor, onde corações eram arrematados nas quermesses dos apaixonados, onde prendas eram leiloadas nas quermesses dos devotos, para as obras da Igreja e ajuda aos necessitados.”

 

Como disse, a mulher de meu patrono era minha tia avó. Na verdade, muitos parentes e ancestrais, tanto por parte de minha mãe como por parte de meu pai, são de origem piripiriense. Nos livros de meu primo e amigo Fabiano Melo, escritor de mérito e notável artista fotográfico, andei colhendo informações a esse respeito. Só pude ingressar neste sodalício porque minha avó paterna nasceu nesta terra. Chamava-se Joana Lina de Deus Carvalho. Era filha de Miguel Furtado do Rego. Sua mãe chamava-se Izabel Lina, de antigas estirpes cearense e piauiense. Meus avós maternos são membros de velhas famílias de Piracuruca e Piripiri. Sobre eles, por necessidade de síntese, direi apenas o seguinte: Meu avô materno se chamava José Horácio de Melo; nasceu no lugar Campestre, município de Piracuruca, no dia 5 de agosto de 1893. Era filho de Horácio Luiz de Melo e Antônia Quitéria de Carvalho. Horácio Luiz era filho de Antônio Luiz de Melo e Hygina Rosa de Menezes. Antônia Quitéria tinha como pais João Bartolomeu de Carvalho e Mariana Rosa de Carvalho. Eram do município de Piracuruca. Minha avó materna se chamava Maria Carlota, e era chamada de Paroara, dizem que por causa de sua tez alva e rosada como essa flor. Pertencia às famílias Sousa e Mendes, da terra dos irmãos Dantas. Morreu jovem, quando minha mãe tinha apenas onze anos de vida.


 

Quero agora me reportar ao patrono de minha cadeira de nº 22, o poeta Raimundo de Freitas e Silva, neto do padre Domingos de Freitas e Silva, considerado, com justiça, o fundador de Piripiri. Através de meu primo Cláudio Denes, tive acesso a alguns poemas de sua autoria. Ele nasceu nesta urbe, no dia 14 de maio de 1875, e aqui faleceu em 24 de outubro de 1938. Foi casado com Francisca Melo Freitas. Era tio de Benedito Aurélio de Freitas, o Baurélio Mangabeira, uma das figuras emblemáticas da Literatura Piauiense. Segundo anotou a professora Clea, no seu livro Velhos Conterrâneos Luminosos, de que tive a honra de ser o prefaciador, era ele um poeta natural, autodidata, e uma espécie de repórter, que “expressava, em versos, o cotidiano da cidade piripiriense e vizinhas”. Pelos poucos poemas a que tive acesso, pude perceber que ele não era um erudito, mas demonstrava ter um talento inato para versejar. Cultivava uma poesia popular, conquanto não fosse propriamente um cordelista e muito menos um repentista, que faz versos ao sabor da viola e do improviso. Contudo, dá para se perceber que ele cometia seus versos com graça, leveza, espontaneidade, sem preocupação com rimas raras e extravagantes. Ao lado de versos de temática séria ou lírica, urdia versos humorísticos, jocosos, muitos deles repassados de acentuada mordacidade satírica, em que, às vezes, não poupava nem a si mesmo ou a seus amigos, como se nota dos seguintes tercetos, datados de 26.01.1934, em que respondia ao poeta Moraes, com quem dialogou poeticamente em várias oportunidades:


 

És poeta, e como tal és um portento.

És poeta de elevada ilustração,

De grande respeito e de talento.


 

Eu porém, que não tenho inspiração

E além disto me sinto sem alento,

Vou baixinho rolando pelo chão.


 

Não obstante o seu viés satírico e humorístico, o poeta tinha, como todo ser humano, os seus rasgos de mau-humor, e, certa feita, incomodado com a profusão de “bons dias”, que a velha Sofia lhe almejava, nas várias vezes em que, em curto intervalo de tempo, passou à porta de sua casa, retrucou-lhe: “Bom dia, siá Sofia! Bom dia por hoje, bom dia por amanhã, bom dia por depois-de-amanhã, bom dia pelo resto da vida.” Esse episódio anedótico foi registrado no referido livro da acadêmica Clea Melo, que, sem dúvida, é a pesquisadora que mais vem trabalhando em prol da preservação da memória histórica, cultural e literária de Piripiri, em seus vários livros.


 

Sendo meu patrono neto do famoso padre Freitas, não perderia a oportunidade de dizer algumas palavras sobre este grande homem, e o farei da forma mais sintética possível. Pelas palavras podemos ser enganados, como somos ludibriados pelos cantos das sereias, que muitas vezes nos arrastam a naufrágios e perdições de toda sorte, como disse Camões. Contudo, pelas ações e atividades, um homem mostra realmente a essência de sua personalidade. E o padre Domingos de Freitas revelou o seu caráter através de sua vida, de suas obras, de suas ações concretas. Participou do movimento do dia 19 de outubro, em Parnaíba, o que nos mostra que ele era de fato um patriota, e que desejava a Independência de nossa pátria. Fundou escola e lecionou, o que demonstra ser ele um cidadão de ideias avançadas; portanto, sabia da importância da educação para o desenvolvimento de um país ou de uma localidade. Dividiu a sua fazenda e fez, acredito, a primeira reforma agrária privada em nosso estado, o que prova que ele era um homem sem apego aos metais, aos bens materiais, e que tinha desprendimento. Fazer reforma agrária com dinheiro e terras públicas é fácil, qualquer demagogo de plantão poderia fazê-lo, mas doar lotes de seu próprio cabedal é uma outra história, e apenas um espírito de escol o faria. Numa época de farisaísmo, ser sacerdote, ter filhos, assumi-los, dar-lhes o sobrenome e reconhecê-los em cartório, prova a firmeza de seu caráter, mostra que o padre Freitas não fugia de suas responsabilidades, e que não se curvava às hipocrisias e convenções sociais. Por todos esses fatos, atos, ações e atividades, o padre Domingos de Freitas e Silva mostrou que era verdadeiramente um grande homem, um notável cidadão, e que de fato é e merece ser considerado o fundador de Piripiri, o seu pró-homem de maior destaque e por excelência.


 

Encerrando minhas palavras, que já se vão alongando, além do que me era permitido, gostaria de lhes agradecer pelo meu meu ingresso nesta augusta e meritória casa de cultura e de letras, e espiritualmente abraço todos os meus confrades e lhes aconchego em meu coração. Gostaria de acrescentar que a minha admissão neste sodalício fará com que eu me sinta verdadeiramente piripiriense, e que o sangue que me corre nas veias, e que me foi legado por pessoas que aqui nasceram e aqui moraram e mourejaram não me foi transmitido em vão, porquanto tenho orgulho em dizer que tenho inquebrantáveis liames atávicos e sentimentais com esta bela e bucólica “Terra de Buganvílias e Madressilvas”.

(*) Discurso de posse de Elmar Carvalho na Academia de Ciências, Artes e Letras de Piripiri - ACALPI, em solenidade ocorrida no dia 17.10.2010.