Quando um texto é publicado na mídia com os podres de um político ou celebridade é reportagem investigativa. Se as mesmas informações forem publicadas numa biografia não autorizada, é pirataria do escritor. O repórter saqueou segredos e direitos do autografado.

A Constituição do Brasil, como a americana, garante o direito de privacidade e a liberdade de expressão. Quem decide se uma informação é invasão de privacidade ou liberdade de expressão é o juiz. Qual é o mistério?

Nos Estados Unidos, há pelo menos um biografado que se sente pirateado por semana. Estamos na semana de Johnny Carson, um dos apresentadores/comediantes mais bem sucedidos, afáveis, moderados e engraçados dos talk shows da TV americana. Um modelo para o Jô.

Ele já está morto, mas os descendentes ou pessoas citadas no livro podem processar. O livro foi escrito por Henry Bushkin, advogado de Carson durante 18 anos. Conta as canalhices do animador com as mulheres, os filhos, com todos com quem conviveu de perto e, muitas vezes, também de longe. Foi um solitário incapaz de amar, ser amado e manter amizades. A culpa, dizia ele, era da mãe repressora.

Biografia autorizada nem sempre é garantia de retrato positivo. O historiador William Manchester tinha publicado uma biografia deslumbrada sobre o presidente John F. Kennedy quatro anos depois da morte deste. Jacqueline Kennedy e Bob Kennedy, irmão do presidente, encomendaram a Manchester um outro livro para contar a história do dia do assassinato em Dallas.

Pagaram a ele US$ 40 mil de adiantamento, teriam controle do conteúdo e os royalties iriam para a biblioteca Kennedy. Quando Manchester vendeu os direitos de serialização para a revista Look, por US$ 650 mil, os Kennedys protestaram. Além de exigir o dinheiro para a biblioteca, queriam fazer cortes.

Entre eles, trechos sobre Jacqueline fumando, um segredo, a informação que o presidente não tinha dormido com ela na véspera porque estava com diarreia e que, no avião, entre Dallas e Washington, com o corpo do marido a bordo, ela se olhava no espelho e fazia comentários preocupados com as rugas.

Manchester fez alguns cortes, mas não todos. Os Kennedys entraram na Justiça. A repercussão foi péssima para ela e quando ameaçou a campanha politica de Bob, fizeram um acordo antes do julgamento.

Se biografia não autorizada é pirataria, o maior pirata do nosso tempo é Kitty Kelley, que não é uma gatinha. Os pirateados dela foram ou são todos feras: Jacqueline Kennedy Onassis (dez anos depois da briga com Manchester), Frank Sinatra, Elizabeth Taylor, Nancy Reagan, quando ainda primeira-dama, a família Bush, a família real inglesa e Oprah Winfrey.
Cada biografia provocou desmentidos, insultos, pressões de todos os lados, mas só Sinatra processou. Queria US$ 2 milhões pelo que afirmava ser mentira ou difamação. Depois de dois anos desistiu.

Os Reagan conseguiram tirar o nome dela das manchetes do jornal Washington Post, mas não impediram que o livro fosse um best seller e vendesse mais de 1 milhão de exemplares, como quase todos outros.

Oprah Winfrey, com suas conexões e prestígio na mídia, conseguiu bloquear as aparições de Kitty Kelley nas redes de rádio e TV para promover o livro e bateu tanto na credibilidade da autora que o livro não passou dos 300 mil exemplares.
Além da biografia de Johnny Carson, há dois casos de pirataria nas manchetes dos tabloides desta semana. Captain Phillips, o filme com Tom Hanks sobre o navio Alabama, sequestrado por piratas na costa da Somália, estreou com sucesso, mas a empresa de navegação está sendo processada por nove tripulantes porque navegou muito perto da costa da Somália para economizar tempo e dinheiro. Querem US$ 50 milhões. Acusam o capitão de ter colocado a vida deles em risco porque tinha um desejo enrustido de ser sequestrado.

Mais bizarro e engraçado foi o golpe da polícia belga, que conseguiu convencer dois chefões da pirataria na Somália a ir a Bélgica acertar os detalhes para assinar um contrato e receber um pagamento pelos direitos de uma biografia e um filme sobre eles e os sequestro de um navio belga. Os dois patetas foram presos quando desceram do avião.

O guru das biografias não autorizadas é o advogado Lloyd Rich. Ele dá o passo a passo, são nove, para evitar processos. Passo fundamental, o autor precisa se cercar de provas. Entrevistas gravadas, recibos, fotos, imagens, o diabo.
Os biografados raramente processam porque correm o risco de pagar uma conta cara, perder a briga e ajudar a promover o livro.

De todas as biografias não autorizadas do nosso tempo, para mim, a mais audaciosa não foi sobre um poderoso ou uma celebridade. Foi Hell's Angel, sobre Madre Teresa de Calcutá. Para o autor, Christopher Hitchens, ela era uma fraude, fanática e fundamentalista. Amiga da pobreza e não dos pobres porque era contra controle de natalidade e aborto. Aceitava doações de ditadores assassinos e escroques.

Em vez de processar, a Madre rezava para Hitchens e para família dele.


Publicado originalmente na BBC Brasil.