Perspectivas culturais do Piauí: a literatura

              Dilson Lages Monteiro -- da Academia Piauiense de Letras

 

Excelentíssimo Senhor Presidente da Academia Piauiense de Letras, Dr. Nelson Nery Costa, Excelentíssima Senhora Acadêmica Coordenadora do Seminário Piauí 2100, Dra. Fides Angélica Veloso,  Excelentíssimo Senhor Professor Antônio José Medeiros, Excelentíssimo Senhor Secretário da Educação de Teresina, Kleber Montezuma, Senhores e senhoras,

 

Dada à amplitude do tema (Perspectivas culturais do Piauí em 2100) e às especificidades de minha formação e leituras (o campo dos estudos da linguagem),  restringirei o olhar para uma manifestação cultural específica, a literatura, aqui concebida em sentidos restritos, o da linguagem carregada de significados até o máximo grau possível, conforme a designou Ezra Pound (2006) ; o da linguagem como expressão de fatores socioculturais,  mesmo que, conforme destaca Antônio Candido, uma leitura  que se “queira integral” deixe “de ser unilateralmente sociológica, psicológica ou linguística, para utilizar livremente os elementos capazes de conduzirem a uma interpretação coerente” (2006), a fim de viabilizar que cada leitor dê mais sentido a fator de seu interesse. Nossa perspectiva é, pois, a do professor e a do literato, o que conduz a ressignificar o pensamento de Ernest Fischer (1966), para quem “a arte é uma forma de equilíbrio para a realidade deficiente”. Por essa razão, forma necessária hoje e sempre. Mas a arte não resolve problemas:

A esse propósito, Fischer indaga retoricamente: “(...) Milhões de pessoas leem livros, ouvem música, vão ao cinema. Por quê?” (1966:16).

A essa formulação, responde que o homem:

 

“(...)anseia por uma ‘plenitude’ que sente e tenta alcançar, uma plenitude de vida que lhe é fraudada pela individualidade e todas as suas limitações (...)busca um mundo mais compreensível e mais justo, um mundo que tenha significação.(...) anseia por absorver o mundo circundante, integrá-lo a si, (...) por unir seu eu limitado com uma existência humana coletiva e por tornar social a sua individualidade” (1966:16-17).

 

Assim é que a arte “reflete a infinda capacidade humana para a associação, para a circulação de experiências e ideias” (1996:17). Entretanto, conforme assinala Marx, a arte “sobrepõe-se ao momento histórico e exerce um fascínio permanente”, porque arte é magia. Nunca uma simples descrição do real. Arte é uma forma regida pela consciência expressiva do tempo: “(...) Algumas vezes, predominará a sugestão mágica; outras a racionalidade, o esclarecimento; algumas vezes, predominará a intuição, o sonho; outras, o desejo de aguçar a percepção” (1966:23).

Dito isso, como palpavelmente situar-me e situar-nos diante do que não aconteceu, diante do que nem é hipótese ainda? Ou apenas um mero imaginar-se incerto tal qual toda especulação não regida pelas leis das circunstâncias e dos cenários oriundos de novas invenções e práticas cotidianas ou de sociabilidades? Somos forçados a pensar nas nossas relações com o tempo e com os significados que atribuímos a ele. Recorremos à oportuna resenha escrita recentemente pelo professor João Wanderley Geraldi, estudioso da leitura e do discurso. Nela, comenta biografia sobre um dos mais festejados romancistas da literatura universal, Marcel Proust, autor do fenomenal “Em busca do tempo perdido”:

 

“Na sua busca para desvendar o mistério do Tempo, Proust joga com as mágicas convicções que a maioria das pessoas conhece: a certeza prazerosamente concebida de que todo o passado é dourado, ou que todos os verões de antigamente eram sempre ensolarados e a misteriosa desconfiança de que um jardim secreto foi avistado um dia, e nunca mais foi reencontrado, e essa sensação estranhamente satisfatória do “já-estive-aqui-antes”, quando nos encontramos num lugar nunca anteriormente visitado”.

 

Passeando pelo valor do tempo e do passado, acrescenta Geraldi:

 

“Proust reconstruiu um tempo desejado fixo, e descobre ao construir que nada é fixo, que as pessoas mudam constantemente, que as paisagens se tornam outras, que os espaços vão sendo ocupados de formas distintas. Ao se perguntar sobre o sentido da vida, ele nos faz também nos percebermos outros a cada vez que nos perguntamos. E que somente uma fixação livre pode existir: o passado lembrado registrado como arte. E estando aí registrado, sua imobilidade se move continuamente a cada leitura e para cada leitor”.

 

Uma dos caminhos que nos ocorreram foi centrar inicialmente a atenção ao passado – um passado que é presente, porque arte verdadeira não tem prazo de validade. Como em Proust, um passado dourado: nunca o mesmo quando recuperado. Como concretamente poderíamos conceber esse outrora? O outrora que é presente tem um nome: tradição. E o que é a tradição, senão os valores e conceitos, de mundo e de linguagem, os quais se repetem por forças além das circunstâncias?  Ela, a tradição, é a fonte basilar de toda criação artística, seja pela reafirmação dos valores clássicos de seus matizes, seja pela negação deles, para a renovação própria das formas, a fim de que reflitam novas culturas de um mundo sempre – mais ainda, agora – mutante.

Examinarmos as perspectivas da literatura para as décadas vindouras é, portanto, entendermos o que o passado nos legou de modo recorrente ao longo da história, isto é, como já frisamos sem receio da redundância, voltarmos o interesse para a tradição; também representa, hoje, entender particularidades da  sociedade em rede, que controla ou descontrola formas, temas, sendo agente regulador do controle social. De volta ao passado, podemos compreender quais elementos do plano da expressão e do plano do conteúdo são frequentemente recuperados (o que, de fato, permanece em todos os tempos?). Dessa forma, pensamos no sistema literário (concepções sobre a obra literária, seu fazer e circulação, o que implica ainda examinar a relação entre literatura e escola, literatura e mídia/tecnologia).

A escola concentra, ou deveria concentrar, lugar de destaque na formação do gosto pela literatura. Se estudantes não lerem os clássicos na escola, é menos certo que a maioria o venha a ler ao longo da vida.  Hoje, impõe-se mais do que estudar a historiografia literária, embora ela ainda seja item regulador do currículo, incitar-se alunos a viverem a literatura como experiência (as rodas de leitura, por exemplo, se constituíram em ferramenta valiosa para esse feito, dentro e fora da escola, com vasta bibliografia já disponível, a fim de fundamentar a prática). Impõe-se incitar alunos, também, a compreenderem, de maneira cada vez mais crescente, o contexto de produção do discurso literário e, a partir da relação entre vozes ou linguagens, atingir-se não apenas a dimensão discursivo-temática dos textos, mas também sua dimensão estética. Esse, porém, é um caminho que apenas se iniciou. Em geral, o aluno do Ensino Médio deixa o sistema escolar sem uma percepção concreta do lugar da literatura em sua formação, muito menos da literatura piauiense, sobre a qual revela quase completo desconhecimento, mesmo dos principais autores ditos canônicos.

Sob quais ângulos, então, anuncia-se o texto literário hoje? A tradição escolar, e consequentemente os leitores por ela formados, ainda se pauta largamente em modelos de abordagem exclusivamente historiográfico ou estilístico. Segundo Dominigue Maigueneau, esses modelos se esgotaram, porque são limitados. Sobre a limitação do primeiro, o enfoque historiográfico, diz: “Essas noções não têm valor explicativo quando não se determina de que modo um texto pode exprimir a mentalidade de uma época ou de um grupo” (2001:01).

Sobre a limitação do segundo, referindo a separação equivocada entre o exterior e o interior dos textos pelo usuário da língua, explica Maingueneau:“A orientação mais estilística prefere apreender a obra como um universo fechado. Não nega a inscrição social dos textos, mas remete seu estudo a um período ulterior” (2001:01).

Diante das práticas de leitura ainda em vigor, quais os novos rumos dos estudos literários? Embora não sejam ainda um prática hegemônica, os estudos literários, conforme Maingueneau, promoveram uma nova concepção do fato literário: “(...) a de um ato de comunicação no qual o dito e o dizer, o texto e o contexto são indissociáveis” (2001:02).

Escrevendo sobre o processo de configuração do português brasileiro, Domício Proença Filho desenhou o novo panorama caracterizado por Maingueneau. Sob essa luz, de acordo com as próprias palavras, aquele buscou “mobilizar a atenção para fatos de relevância vinculados à utilização da língua portuguesa no Brasil, nas múltiplas e várias circunstâncias do convívio comunitário, a relação entre fala e a situação de fala; o papel da escola; as variantes geográficas, socioculturais e expressivas e a norma; a língua e a inclusão social” (2017:13-14). O que opera Proença Filho é o estudo da língua, por meio da literatura, em perspectiva discursiva e não apenas da identificação de características literárias, descrição isolada de fatos históricos ou estudo de tropos. Desse modo, estabeleceu íntima ligação entre acontecimentos político-sociais e econômicos e os textos escritos aos longos de mais de 500 anos de história da língua portuguesa no Brasil, elegendo como protótipo dos diálogos textos literários antológicos.

Domício, para enumerar aspectos da língua ressaltados na linguagem literária brasileira, analisa um rol de circunstâncias, capazes de expressar e interpretar a realidade hodierna.  Para descrever a literatura como manifestação da língua nas últimas décadas do século XX e nas primeiras do século XXI, período a que denomina Quinta ou Nova República, em múltiplas esferas, parte do pressuposto de que vivemos uma crise de modernidade iniciada em 1950 e ainda hoje não superada, situação que revitalizou hoje o processo de desumanização corrente.

Macroestruturalmente, referindo-se a Milton Santos explica Domício:

 

“(...) ao lado da ação humana mundializada, destacam-se alguns aspectos: o assinalado contínuo conflito das variáveis construtoras do sistema em que se configura; o endeusamento da ciência e da tecnologia; a materialização da existência, medida, sobretudo, por índices estatísticos; o império da competitividade, o surgimento de novas ocupações, novas formas de viver, novas atitudes e valores, uma nova ética e, consequentemente, novas palavras” (DOMÍCIO, 2017, apud SANTOS).

 

A esse contexto, relaciona-se, claramente: “(...) o interesse do mercado, associado visceralmente ao poder da formação da opinião. E, segundo alguns, manipulada por altos interesses ideológicos, políticos e econômicos” (2017:509).

As consequências desse rol de variantes levam, paradoxalmente, à mundialização:

 

“Invade-se e exibe-se a privacidade. Banaliza-se a violência. Persistem acentuadas desigualdades sociais. Avultam ameaças ao equilíbrio da Natureza, exaurida. Instauram-se e impõem-se o convívio e a valorização das diferenças: filosóficas, religiosas, ideológicas, políticas, linguísticas. Não sem conflitos. Por vezes radicais. Ganha forte presença, no cotidiano da vida, o espaço virtual”. (2017:509).

 

Ao mobilizarmos qualquer ação para escritura e entendimento do discurso literário tendemos a utilizar, como fundamento, as práticas correntes, ou o que mais claramente as fundamenta. Quando tentamos, por exemplo, compreender qualquer fato literário atual, via de regra, apelamos ao Modernismo tal qual o entendemos hoje. Recorremos a um conjunto de traços oscilantes, ora valorizados, ora postos de lado, embora não abramos mãos de enfatizar a natureza antiacadêmica dos textos e a liberdade de expressão (não tão livre assim, não tão antiacadêmica assim, porque apenas escritos a partir de novos paradigmas, oriundos da ciência e, sobretudo, das artes plásticas). Partindo da relação entre textos e contexto, Domício alude ao Modernismo e assim caracteriza o fazer literário hoje:

 

“Não se efetivam nas últimas décadas, procedimentos literários vinculados a grupos ou a movimentos. Convivem manifestações em prosa e verso intensificadores da dispersão assinalada. Mas que possibilitam no que se refere à poesia, a depreensão de algumas linhas de força dominantes” (2017: 512).

 

Acrescenta: “São bastante numerosos os textos iluminados pelas conquistas do Modernismo, plenamente sedimentados e acrescidos de novos matizes. Mulheres, homossexuais e negros intensificam o discurso vinculado à identidade cultural, com resultados significativos” (2017: 512).

Examinando a materialidade da literatura em prosa, registra:

 

“Na prosa, alguns romances dão continuidade à tradição realista-regionalista. Outros seguem no percurso da introspecção psicológica. Outros mais associam essa mesma dimensão à preocupação com a linguagem. Surgem narrativas apoiadas no diálogo intertextual com outras facções. Ganham presença também narrativas ficcionais ou não de caráter esotérico ou místico. No conto, avultam a permanência da tradição realista, revitalizada a abertura para o imaginário, com ênfase no maravilhoso, e a preocupação acentuada com a linguagem” (2017: 513.).

 

O contexto atual permite que possamos inferir: os estudos culturais em voga determinaram novas formas de conceber o cânone. Já não basta que textos desenvolvam a condição de estranhamento sobre a qual reiteradamente escreveu o crítico literário Harold Broom, embora essa condição também seja necessária. É preciso que as vozes de grupos sociais diversos sejam repercutidas em forma e expressão. A voz, como já citado, de mulheres, de homossexuais, de negros, de crianças, de idosos, dos trabalhadores de um modo geral. É preciso dar voz e ouvidos à periferia, canalizada em linguagem plurissignificativa. A evidência disso é o sucesso editorial obtido nacionalmente nas últimas décadas por autores como Marcelo Moutinho, Geovane Morais, Luiz Ruffato, Conceição Evaristo (traduzida em todo o mundo) e Carolina de Jesus.

Além das incursões sobre o significado da tradição representada pelo Modernismo, também é útil aqui considerar a existência de novos suportes eletrônicos de leitura, principalmente o celular. Esses suportes, agregando grande gama de recursos e linguagens, geram novos modos de ler e organizar o pensamento, pondo em xeque a própria maneira como tradicionalmente as habilidades cognitivas se constroem. Segundo Wolf (2019, 16), “cada mídia de leitura favorece certos processos cognitivos em detrimento de outros”. Para ela,

 

“o jovem leitor tanto pode desenvolver todos os múltiplos processos de leitura profunda que estão atualmente corporificados no cérebro experiente, completamente elaborado; ou o cérebro leitor iniciante pode sofrer um “curto-circuito” em seu desenvolvimento; ou pode adquirir redes completamente novas em circuitos diferentes” (WOLF, 2019:16)

 

Para muitos jovens, a literatura, principalmente os “beste sellers” de ficção científica, chega por intermédio desses suportes e é compartilhada intensamente sob influência das redes sociais, a cada dia mais participativas, com grande favorecimento para a comunicação interpessoal, na qual predomina a linguagem coloquial, com reflexo notável sobre a simplificação vocabular, infelizmente.

A absorção intransponível de novos suportes de leitura criou cenário favorável para a reconfiguração do plano temático e formal da literatura, com efeitos em todos os públicos. Para os defensores ardorosos da literatura nativamente digital, o texto sobre esse formato deveria reunir elementos que o fazem único e não apenas a transmutação para a tela do que já se lê no livro impresso. As crianças de hoje, nascidas sob a égide de um tempo em que serviços diversos são operacionalizados por um clique, também são beneficiárias de fazer artístico em que imagens e sons ganham sentido real em e-books digitais, nos quais é possível não apenas ler ao modo tradicional, mas participar ativamente da leitura, escolhendo personagens, características deles, ações, espaços etc, tudo isso com sons, cores e associações, disponíveis a um toque, que faz da tarefa um divertido jogo.

No passado, a oficina dos escritores era o jornal. Nele se formaram os principais nomes das letras aqui e alhures. A esse respeito, analisando a obra de Gabriel Garcia Marques, escreve Ariel Castillo:

 

“O jornalismo dá ao escritor o conhecimento da diversidade de sua região e do país, com suas etnias, modos de alimentação, história, economia, tradições culturais, sua língua viva e precariedade científica, transformando-se em um polo para a terra, para que a ficção não se separe da realidade, não perca o contanto direto com o mundo e, pouco a pouco, vá tirando-lhe de seus nebulosos projetos literários, abrindo-lhes os olhos, aguçando-lhe os sentidos para a captação do entorno—o olfato, a audição (a música), a visão (as imagens)—permitindo assimilar os sentimentos e a visão do mundo popular, dando-lhes forma a personagens, situações, fatos, frases, ambientes e temas” (2017: 48).

 

O jornal figurou historicamente não apenas como lugar de exercício de linguagem, mas também como espaço determinante do sistema literário, legitimando obras, como o fez Machado de Assis, quando tinha apenas 26 anos, ao reconhecer o valor de um grande romance do cânone brasileiro, à época alvo de pouca atenção, conforme Virna Cunha de Farias:

 

“(...) Apareceu há alguns meses um livro primoroso, uma obra selada por um verdadeiro talento, aliás, conhecido e celebrado. Iracema foi lida, foi apreciada, mas não encontrou o agasalho que uma obra daquelas merecia. Se alguma vez se falou na imprensa a respeito dela, mais detidamente foi para deprimi-la, e isso na própria província que o poeta escolhe para teatro de seu romance. Houve na corte, quem se ocupasse igualmente com o livro, mas a apreciação do escritor reduzida a uma opinião isolada (...) Felizmente o autor de O Guarani é uma dessas organizações rara que acham no trabalho sua própria recompensa, e lutam menos pelo presente, do que pelo futuro (...) temos fé que será lida e apreciada mesmo quando muitas das obras que estão hoje em voga, servirem apenas para a crônica bibliográfica de algum antiquário paciente” (2017:52)

 

Se houve um tempo em que o jornal exercia primazia na formação de literatos e na avaliação do que se ler, hoje esse espaço minguou, sufocado pela tecnologia digital. Ela fechou grandes empresas jornalísticas ou obrigou que migrassem serviços para outros suportes ou a eles se adequassem para continuarem existindo. A facilidade de publicação seja em blog, seja em rede social ou outros espaços, acompanhada do imediato compartilhamento em massa da publicação em meio digital, ao tempo em que fragilizou veículos oficiais de divulgação de literatura, gerou contexto favorável tanto à autopublicação quanto à crítica literária, criando nichos especializados nos mais variados papeis. Basta que sejam descobertos, para que jovens autores de valor ganhem alguma visibilidade e sejam lidos. Estamos diante de novas formas de recepção da arte, de novos leitores – isso não pode ser desconsiderado. Inclusive, porque mediante possibilidades de circulação da obra em formatos variados, inclusive na forma apenas de áudio.

O PIAUÍ NO CONTEXTO

Ao relacionarmos o raciocínio aqui desenvolvido ao nosso Estado, observamos um cenário de demandas cujas intervenções são inquestionáveis: prioritariamente, do ponto de vista da concepção sobre a recepção da literatura na escola e fora dela, deparamo-nos com alguns dilemas. Nossa história literária, historicamente, em geral, em razão dos instrumentais teóricos disponíveis de então e a não circulação pública de obras referenciais, principalmente, foi concebida por critérios outros que não a utilização de procedimentos metodológicos favorecedores da relação clara entre textos e contexto, ressalvadas exceções.

Mesmo o Modernismo, elemento da tradição fundamental para sistematização de obras e estudo da literatura, costuma ser concebido por procedimentos outros que vão da cronologia à relação com categorizações feitas para enquadrar autores nacionais, entre as quais, a empregada por Assis Brasil em coleção escrita para a Editora Americana em 1960; coleção em que prometia uma nova classificação dos autores produzindo literatura à época (os antigos e os novos), baseada no postulado de que se vivia um novo momento cultural cuja abordagem hegemônica de 1945 não conseguia explicar. A tarefa de revisitar a literatura piauiense é, porém, tarefa somente viável coletivamente, em face do grande volume de obras (as consagradas, a maioria recentemente editada pela APL, sob o entusiasmo de seu presidente Nelson Nery Costa, e o grande contingente de obras publicadas nas duas últimas décadas, que requerem atenção especial para verificação de seu real valor estético).

Além desse aspecto, carecemos ainda de projetos e iniciativas centradas na leitura literária, ainda que o Piauí não esteja parado no tempo. Se houve uma época em que não se liam os autores clássicos de nossas letras pela pouca ou quase inexistência de disponibilidade do livro impresso, hoje ele abunda nos mais variados espaços físicos: da biblioteca à prateleira das mais tradicionais livrarias de autores regionais. É preciso vencer também o preconceito contra a literatura local, muitas vezes, oriundo de alegações pautadas no modelo de prova do Enem, ou mesmo no famigerado preconceito de classe ou da incapacidade de ler literatura, da qual não raro o leitor medíocre ou o não proficiente fogem, alegando que só livros produzidos em outros centros são bem escritos.  Paradoxalmente, tudo isso ainda acontece num momento em que a leitura literária se tornou elemento de sociabilidades, com numerosos saraus realizados por grupos diversos; ocorre num momento em que o local é fortalecido pelo interesse crescente de se sentir parte de um lugar, de um grupo, de um tempo. O interesse crescente e inadiável de ter identidade. Não concebível, também, desconsiderar a necessidade de estratégias para alcançar novas gerações que leem cada vez mais em tela, cada vez menos em papel impresso.

Pensar nas perspectivas de um tempo futuro é fazer perguntas cujas respostas dependem de nosso agir agora. O desafio de hoje é o desafio de todos os tempos: o acesso a produtos culturais e à formação de leitores. O livro e a literatura, independentemente de onde estejam, serão eternamente fontes vivas de percepções, para além de sua função de entretenimento e de saber, coloca-nos em contato com o que há de mais íntimo e verdadeiro em cada um de nós.

Perguntar é também agir.

Muito obrigado!

 

Referências:

CANDIDO, Antônio Cândido. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. 

Conferências sobre 8 grandes da literatura latino-americana. Organização Embaixadas da Argentina, Chile, Colômbia, Cuba, Guatemala, México e Peru. Brasília-DF: Geraes Editora, 2017.

FARIAS, Virna L. Cunha de. Machado de Assis na imprensa do século XIX: práticas, leitores e leituras. Judiaí: Paco Editorial, 2016.

FISCHER, Ernest. A função da arte (tradução de Leandro Konder). In: Sociologia da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1966.

GERALDI, João Wanderley. Proust, de William Sansom.   Passagens – o blog do Wanderley Geraldi, 23 de novembro de 2019.  Disponível em: blogdogeraldi.com.br >. Acesso em: 25.11.2019.

MAINGUENEAU, Dominique. O contexto na obra literária. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

PROENÇA FILHO, Domício. Muitas línguas, uma língua: a trajetória do português brasileiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017.

POUND, Ezra. Abc da literatura. São Paulo: Cultrix, 2006.

WOLF, Maryanne. O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era.  São Paulo: Contexto, 2019.