Pe. Miguel de Carvalho e Almeida, fundador de paróquias e missionário do sertão.
Por Reginaldo Miranda Em: 02/08/2017, às 19H41
Durante cinco anos ininterruptos, foi um dos principais nomes do clero no Bispado de Pernambuco, tendo paroquiado o sertão do Rio São Francisco e instalado duas freguesias, sendo uma no médio curso daquele rio e outra na bacia do Parnaíba. Sobre esta última apresentou importante descrição, informando todos os vales ribeirinhos, suas fazendas, moradores e costumes, além das tribos indígenas existentes. Por equívoco do historiador Ernesto Ennes, que primeiro publicou esse importante estudo, a Descrição do Sertão do Piauí, seu nome foi erroneamente grafado e repetido por incontáveis vezes como Miguel do Couto, somente mais tarde sendo restabelecido para Miguel de Carvalho, agora finalmente recomposto para Miguel Carvalho de Almeida ou Miguel de Carvalho e Almeida. Sobre ele já escrevemos artigo na imprensa de Teresina, depois incluído em volume.
Nascido em 1664, no lugar de Bragadas, pequena povoação da freguesia de Santo Aleixo, concelho de Ribeira de Pena, Arcebispado de Braga, teve por genitores Miguel de Carvalho e Almeida(1630 – 6.4.1695), capitão de infantaria dos Auxiliares de Ribeira de Pena, sucessor na quinta das Bragadas de Além Tâmega, e sua esposa Helena Gonçalves de Matos (f. 15.9.1684, em Santo Aleixo); neto paterno de Domingos Carvalho, moço da câmara da Casa Real, juiz dos órfãos de Ribeiro de Pena, senhor da quinta das Bragadas de Além Tâmega, em Santo Aleixo, de onde era natural e onde veio a falecer em 7.7.1668, e de Catarina de Almeida(1ª), nascida cerca de 1608, no lugar da Ribeira de Baixo, freguesia do Salvador da Ribeira de Pena; neto materno de Domingos Dias e Senhorinha Gonçalves, ambos naturais da referida freguesia de Santo Aleixo.
Iniciou os estudos em sua terra natal, mais tarde passando para o Seminário da cidade de Braga, onde prossegue em sua formação com os religiosos inacianos, cursando Filosofia e três anos de Teologia Espiritualista e Moral, além de outras matérias necessárias à complementação da grade curricular, ordenando-se sacerdote e tirando informações de genere, para provar a pureza de sangue, em 22 de julho de 1689.
Depois da ordenação retorna à sua terra natal, onde inicia atividade sacerdotal. Porém, em 1690 muda-se para o Bispado de Pernambuco, prestando exame para a vigararia da cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, em cujo posto não foi provido. Entretanto, com o dito exame ficou habilitado para ocupar o Curato de Rodelas e para servir de vigário da Vara de que o Bispo D. Mathias de Figueiredo(1687 – 1694) lhe mandou ocupar em princípio de 1693.
Então, na distante freguesia de N. Sra. da Conceição de Cabrobó, ou Quebrobó, como primitivamente se chamava a paróquia do Rodelas de Cabrobó ou de Cabrobó e Rodelas, permanece por cinco anos(1693 – 1698), com poderes de missionário apostólico. E com a liderança que lhe era nata, inicia importante trabalho apostolar fundando “à custa de seu sangue e fazenda, duas freguesias e oito missões entre inumeráveis multidões de bárbaros que antes nunca tinham ouvido os sagrados preceitos da nossa Igreja”, diria ele mais tarde perante os inquisidores do Santo Ofício.
Nesse tempo recebe a importante missão de fundar duas novas freguesias no sertão íngreme, do gentio bravo, em território que estava sendo descoberto e incorporado ao Reino de Portugal, as freguesias de São Francisco da Barra do Rio Grande, no médio curso do rio São Francisco, e Nossa Senhora da Vitória, na bacia do Parnaíba. Para esse desiderato mandou buscar na corte dois sacerdotes seus familiares, sendo o irmão Inocêncio de Carvalho e Almeida, que empossou na primeira e o primo Tomé de Carvalho e Silva, que empossou na segunda freguesia.
Sobre esse assunto é importante ressaltar que o padre Miguel de Carvalho, durante o seu paroquiato em Rodelas, não ficou circunscrito à sede da freguesia, mas percorreu incansavelmente o sertão em sua missão evangelizadora. No verão de 1694, adentrou em desobriga o território piauiense em companhia do padre jesuíta alemão Philipe Bourel (1659 – 1709) e mais 42 pessoas de sua comitiva evangelizadora. Descrevendo a fertilidade dos vales do Gurgueia e do Curimatá, anotou o religioso português que quando retornava do sertão por aquele primeiro vale ribeirinho em demanda de Parnaguá, com sua imensa comitiva, mesmo “sem provimento de matalotagens, achamos tanta abundância de mel, peixe, caças e frutas que não experimentamos falta alguma, 16 dias que caminhamos pela beira do rio; apartados, porém, dele padecemos 5 de grande fome e, sem dúvida, morreríamos se a Providência Divina nos não socorrera por um modo que, sendo natural, pareceu prodigioso, e foi que, caminhando por entre umas serras junto do rio Corimataim(hoje Curimatá), achamos um riacho que em distância de uma légua tinha pelas beiras grande quantidade de ananases criados pela natureza, tão deliciosos no cheiro e no gosto, como os que se acham nas praças; só tinham diferença em serem todos brancos e mais pequenos. Até chegarmos à povoada, nos serviram de regalo e matalotagem” (Descrição...).
Como fruto dessa viagem pede ao Bispado para criar nova freguesia na região, mesmo em prejuízo de sua própria arrecadação em Rodelas. Contemplado em seu pleito pelo novo Bispo D. Francisco de Lima, novamente retorna ao Piauí em princípio do ano de 1697, desta feita para instalar a nova freguesia e dar posse ao vigário. Para isto, em 11 de fevereiro de 1697, na fazenda Tranqueira, em casa de Antonio Soares Touquia, reuniu os fazendeiros colonizadores nomeados na pastoral que trazia, e que antes haviam se comprometido a ajudá-lo, e juntos elegeram o local para fundação da nova igreja matriz de Nossa Senhora da Vitória, cuja eleição recaiu no brejo chamado Mocha, por ser a parte mais conveniente aos moradores, ficando no centro geográfico do novo território, com iguais distâncias e caminhos para todas as partes e riachos povoados; e nesta parte se elegeu democraticamente para edificação da igreja matriz e casa do Reverendo Cura, o tabuleiro que se acha pegado à passagem do Jatobá para o Canindé, ficando todo o indicado brejo do riacho do Mocha reservado para roças e passal do Reverendo cura e Igreja. Esse fato, mais tarde, iria ser objeto de demanda com Domingos Jorge Afonso, sucessor do tio Julião Afonso Serra.
Dessa forma, decorridos vinte e dois dias dessa eleição, em 2 de março do mesmo ano, já benzia ele a nova capela construída de pindoba e dava posse ao Reverendo Cura, seu primo e conterrâneo Tomé de Carvalho e Silva. Estava, assim, fundada uma nova freguesia na colônia portuguesa; também, uma nova povoação, futura vila da Mocha, depois cidade de Oeiras, primeira cidade e capital do Piauí.
No entanto, na mesma fazenda Tranqueira morava Domingos Afonso Serra, sobrinho de Julião Afonso Serra, um dos quatro conquistadores e grande sesmeiro em cujas terras estava sendo construída a nova matriz. Ele não esteve presente na indicada reunião. Então, insatisfeito com esse surto de progresso que fomentava a Igreja em sua vizinhança, incita fazendeiros indisciplinados que expulsam o vigário Tomé de Carvalho e Silva, fazendo arder em chamas sua casa, a capela e as choupanas que erguia para acomodar os romeiros em visitação. Desolado, este procura o Pe. Miguel de Carvalho em Rodelas, que sempre inquebrantável, o anima e aos moradores cristãos a reerguerem as edificações com redobrado zelo e maior grandeza.
Nesse contexto, o Pe. Miguel de Carvalho buscou o apoio do valoroso Bispo de Pernambuco, D. Francisco de Lima, a quem estava vinculada a nova freguesia, e juntos fizeram diversos pleitos à Corte, em defesa dos posseiros piauienses contra os absentistas sesmeiros do litoral, de que resultou na desanexação do Piauí, do Estado do Brasil(Bahia) para o Maranhão, em 1700.
Ainda como resultado dessas andanças e trabalho apostolar no Piauí, escreveu e remeteu ao Bispo, interessante relatório a que denominou Descrição do Sertão do Piauí, onde descreve a nova freguesia composta de 129 fazendas, 605 moradores cristãos batizados, dos quais 441 residentes nas fazendas e 164 do Arraial de Paulistas, hoje cidade de Valença do Piauí e em algumas lagoas e olhos d’água. É este o primeiro recenseamento e a primeira descrição do novo território. É por essa razão que o Pe. Miguel de Carvalho, faz parte de nossa história e figura entre os vultos de nossa terra.
Todavia, naquele mesmo ano de 1693, quando assumia o curato do Rodelas, o padre Miguel de Carvalho pleiteou ser comissário do Santo Ofício, assinando petição em que declarava ser clérigo do hábito de São Pedro, vigário da freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Rodelas, no Bispado de Pernambuco e pregador aprovado, justificando que desejava servir no indicado cargo porque não havia outro naquele Bispado, prestando, assim, importantes informações sobre sua ascendência genealógica, todas incorporadas no presente estudo.
Então, diante deste pleito e dessas importantes informações genealógicas inicia-se o criterioso processo de investigação, por parte do Tribunal do Santo Ofício, para aferir se a genealogia era verdadeira, se todos eram naturais de onde se dizia ser, se tinham pureza de sangue, isto é, sem cruzamento com nação considerada de sangue infecto, se possuía meios abastados, enfim, se ele ou seus ancestrais haviam sido punidos por crime de feito ou de direito.
Logo mais, depois de várias diligências, e para averiguar o afirmado, em 12 de dezembro de 1693, na igreja de Santo Aleixo, concelho de Ribeira de Pena, terra natal do pretendente, são ouvidas seis testemunhas, e mais seis em 14 do mesmo mês, na igreja do Salvador, do mesmo concelho, que confirmaram todas as informações prestadas quanto à origem do candidato, de que seus ancestrais eram de sangue limpo e sempre ocuparam os cargos nobres, acrescentando que o mesmo se mudara a três anos para o Brasil, Bispado de Pernambuco.
Foi também solicitada informação ao Bispado de Pernambuco. Então, em 6 de agosto de 1696, no Colégio da Companhia de Jesus, no Recife, pelo padre Filipe Coelho, foram inquiridas mais sete testemunhas moradoras em sua freguesia, que confirmam o bom proceder do vigário no novo domicílio e a sua maneira abastada de viver.
A longa investigação já estava sendo concluída e tudo ia bem para o Padre Miguel de Carvalho, sendo questão de tempo a sua nomeação para comissário do Santo Ofício no Bispado de Pernambuco. No entanto, um fato iria mudar o desfecho dos trabalhos e o destino do vigário. É que por aqueles dias adentra o sertão de Pernambuco, distrito da freguesia do Rodelas, um religioso do Reino de Castelo, Frei Izidro de Casso, que passa a ministrar sacramentos e missionar pelas aldeias e povoações, sem licença do Bispado. O Padre Miguel entendeu que aquela atividade prejudicava a arrecadação de sua freguesia e tentou expulsá-lo, sem êxito. Então, usando de seu prestígio com o Bispo, prende-o, porém, com o gravame de usar o nome do Santo Ofício, para o qual ainda não se encontrava habilitado. Em face desse episódio, o padre Filipe Coelho concluiu a sua investigação dizendo:
“Quando inquiri estas testemunhas, pareceu-me que falavam a verdade pelo conceito que tinham desse sacerdote, mas depois que tive notícia certa que ele dizia vinha com missão do Santo Ofício para prender o Pe. Frei Izidro de Casso e remetê-lo preso até a Inquisição, não me pareceu sujeito de segredo nem de capacidade para negócio deste Santo Ofício. Colégio de Olinda, 8 de maio de 1697. Filipe Coelho”.
Vê-se, pois, que esse desatino complicou uma situação que lhe era favorável, vez que as investigações já haviam sido concluídas com êxito. Ainda assim, em 20 de dezembro de 1697, concluem os julgadores em Lisboa, que ele é por si e seus pais e avós, cristão velho, sem raça de nação considerada infecta, sendo julgado habilitado para ocupar o cargo de comissário do Santo Ofício. Dessa forma, não deram importância ao parecer do padre Filipe Coelho, da Companhia de Jesus e Reitor do Colégio de Olinda, na informação que mandou à Mesa.
No entanto, como houve investigação paralela daqueles fatos com autorização do Tribunal do Santo Ofício, logo mais reformam esta decisão e o julgam inabilitado para o exercício da ocupação que pleiteava.
É quando, em 1698, depois de cinco anos missionando no sertão, o padre Miguel de Carvalho e Almeida, deixa seu cargo de vigário em Rodelas e retorna para Lisboa, no navio de José Pinheiro, onde fixa residência a fim de fazer sua defesa perante o Tribunal do Santo Ofício. Foram dias turbulentos em sua trajetória, passando noites insones no preparo da argumentação. Agora já não era mais o pleito de comissário, que estava definitivamente perdido. Tratava-se de fugir à acusação que lhe era feita.
Dessa forma, em matéria de defesa alega junto ao referido Tribunal, onde a verdade deveria imperar, fatos que vão reconstituindo a sua biografia e a história de sua família. Porém, ao fim do julgamento foi apenado com advertência de que se voltasse a praticar o mesmo delito seria rigorosamente punido, pena que foi aplicada em 12 de fevereiro de 1699.
O Pe. Miguel de Carvalho, como era geralmente conhecido, não mais retornou ao Brasil passando a desenvolver sua atividade sacerdotal no concelho de Ribeira de Pena, norte de Portugal. Em 1721, aos 57 anos de idade, era abade de Santa Marinha, no referido concelho. Segundo seu conterrâneo, o historiador, advogado e genealogista Manuel Abranches de Soveral, ele ainda exerceu o cargo de capelão fidalgo da Casa Real e instituiu do vínculo e capela de Nossa Senhora da Assunção, junto à casa de Senra de Cima, no mesmo concelho. Deixou, porém, seu nome inserido no contexto de nossa história.