Paulo Machado

BIOGRAFIA

Paulo Machado, nasceu em Teresina no dia 23 de julho de 1956. Ganhou vários prêmios na ficção, nos Concursos de Contos e de Poesias. Participou de várias antologias poéticas e tem três livros publicados: 'Ta Pronto, Seu Lobo? (poemas - 1978)), 'A Paz do Pântano' (Poemas- 1982)) e 'Na Trilha da Morte' (sobre a morte dos índios). Os cursos básicos e superiores foram feitos em Teresina. Paulo Machado é formado em Direito pela Universidade Federal do Piauí, com especialização em Direito Agrário. Além da participação em revistas e outras publicações alternativas, como Ciranda (1976), Paulo Machado editou o jornal Floretim (1984), duas publicações que motivaram os movimentos culturais em Teresina, nas décadas de 70 e 80. Ao prefaciar o livro 'Tá Pronto, Seu Lobo?' (1978), o escritor Cineas Santos escreveu: "Grande parte dos poemas que constituem este livro tem gosto de reportagem de rua: são flashes de uma cidade que se transforma, que se desumaniza (perdoem o lugar comum), pela ação (in)consciente dos donos da vida".

AMOSTRAGEM

Post card/57 Na praça Marechal Deodoro Às nove horas falavam Da UDN e do american-can Um louco o Jaime fazia ponto no cruzamento Da Barroso com a Senador Pacheco sem saber Que há tempos existia a guerra fria Quinta-feira era dia de matar o tempo Na praça Pedro Segundo enquanto sapos Copulavam nos lajedos do tanque Nas tertúlias do Clube dos Diários Uma geração embarcava no marasmo Esquecendo tudo mais Nos canteiros da Avenida Frei Serafim Os cupins construíam suas casas Fiando estranha quietude No bar Carnaúba o sol roia o marrom Das tabículas das mesinhas ao passo que Os homens de casimira cinza faziam planos Na Paissandu os bêbados Pregavam a subversão E um bolero esquentava as estranhas da noite Nas calçadas da Simplício Mendes Um rosto magro madalena deixava brotar Estranhamente um sorriso largo de espera No mercado central pretas carnudas Vendiam frito de tripa de porco Fígado picado e caninha No caís do Parnaíba piabas Cor de prata saltavam das águas salobras Como no sonho dos meninos

FORTUNA CRÍTICA

À la recherche du temps perdu: memória e subversão em "Tá Pronto, seu Lobo?"

 

 

 

Ranieri Ribas

Propor o intuicionismo de Bergson como fundamento teórico para leitura de "Tá pronto, seu lobo?", de Paulo Machado, parece-nos forçoso e heterodoxo. Não obstante, se considerarmos os vínculos entre Bergson e Proust, e ramificarmos tal genealogia até a predileção memorial na poesia de Drummond e Bandeira, creio não estar propondo um contorcionismo hermenêutico, mas empreendendo uma crítica arqueológica que arranca os referenciais desde a raiz. Obviamente, a poesia de Paulo Machado não se abebera no "eruditismo" de Proust e Bergson, nem ultrapassa a condição periférica de subserviência aos mestres, sobretudo Drummond e Bandeira, embora assim resista admitir parte da crítica (?) lilliputiana da província. O fato é que as técnicas digressivas drummondianas permeiam todo o livro, seccionado entre a Memória Proustiana de "natureza morta" e o ativismo poético-panfletário de "gerais" (cuja palavra de ordem é a contestação, mesmo que "sob a vigília das baionetas"). A solução proposta para este impasse seccional entre política poética e reminiscência estética ocorre pelo sacrifício do significante em favor do significado, co-optando o ativista-poeta à linearidade do discurso posto a serviço da mensagem. Trata-se de uma recusa à polissemia poética em concessão ao telos político transgressor. As palavras de ordem e seus conteúdos ideológico-poéticos a respeito do papel subversivo do poeta, este personagem idealizado, arquétipo da irreverência, assumem na secção segunda o papel primário, anulando o empreendimento proustiano da secção primeira. Qual a peculiaridade de tal solução? Nenhuma. Encontramo-la em toda problemática da poesia drummondiana e, no caso de Paulo Machado, percebemos a referência nítida ao projeto político-natalício de "A Rosa do Povo" (vejam, por exemplo, "a Morte do Leiteiro" e "Carta a Stalingrado", propostas díspares), a repetitiva re-elaboração do "poema retirado de um jornal", de Bandeira (vide os poemas "concisão", "arquivo" e "cotidiano 1"), além do diálogo com a estrutura memorial de "Poema Sujo" e "Boitempo". O Drummond de "Boitempo" mescla memória e ficção oscilando entre o menino antigo e o esquecer para lembrar, no qual, o tom nostálgico vale-se de uma estilização jornalística. Antes de pormenorizar tais hipóteses cabe-nos justificar a escolha do objeto de estudo. Como sabido, o totemismo intelectual setentista elegeu "Tá pronto, seu lobo?" símbolo da excelência poética do grupo. É certo que bajulação e ausência de leitura crítica deixaram a vaidade do autor em tamanho desproporcional a importância e excelência de sua poesia. Entretanto, o texto nos serve como base para o exercício crítico e o debate democrático. A justificativa então se resume à possibilidade de analisar a obra fora de esquemas pessoais e de compadrio com que se a inferiu costumeiramente.

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Virtude Cívica desde a Grécia Clássica, a memória é o principal instrumento do poeta. O Aedo (poeta oral), traz consigo a verdade (alethéia) e a tradição, instrumentos que combatem lethe (o esquecimento). A verdade seria então recusa do esquecimento. Platão expulsa os poetas da república não apenas por que estes se permitem ao uso licencioso da palavra (metáfora e polissemia), causando mixórdia na compreensão clara dos enunciados, mas também porque a concepção de verdade dos poetas funda-se na potência mnemônica que possuem, ou melhor, na tradição, imprecisa e polifônica, oscilante conforme a narrativa do Aedo.

Já em pleno século XIX, a força libertária bergsoniana insere-se num contexto de hegemonia cientificista e busca valorar categorias desprezadas pelo positivismo de Spencer e Comte: a Intuição, a Duração, a Memória e o Impulso (élan) vital. Em Matière et mémoire, essai sur la relation du corps à lesprit (Matéria e memória, ensaio sobre a relação do corpo com o espírito) Bergson problematiza a inserção do espírito no mundo material conforme a hipótese de que o passado integralmente embalsamado na memória é filtrado pelo espírito, o qual seleciona as lembranças úteis para o agir no presente. A Duração, tempo específico da existência, é apreensível unicamente pela intuição porque não se limita a injunções teleológicas e mecânicas.

Assim é que a concepção qualitativa do tempo, definido como o permanecer contínuo da consciência, ou seja, como Duração, impôs o redimensionamento do materialismo positivista. Tal materialismo propunha o fracionamento racional das categorias espácio-temporais que assumiriam uma formatação objetiva e impessoal, figurada na imagem de tempo fornecida pela disciplina industrial dos relógios. A Duração (durée) bergsoniana, responsável por tal redimensionamento, definir-se-ia como "o progresso contínuo do passado que rói o futuro" de forma a encorpá-lo "na medida em que avança". Duração significa que "o passado, por inteiro, é estendido ao presente e ali mora, real e atuante" definindo a memória como veículo de continuidade do tempo cuja função organizadora do conjunto de imagens pretéritas possibilita a representação do real-presente. O caráter virtual da memória concretiza-se no tempo presente pela recomposição do passado, tal como na obra de Marcel Proust, cujos fundamentos filosóficos (sobretudo quanto à memória involuntária) encontram-se no intuicionismo de Bérgson, propondo recuperar através da obra de arte o Tempo Perdido. O élan vital da obra proustiana revigora não apenas a memória da sociedade francesa do fin de siècle, tal como a narrativa de "O Caminho de Guermantes", mas, sobretudo, revive o microcosmo subjetivo do narrador. A Memória Proustiana estende-se como um fio de Ariadne entre passado e presente, definindo na analogia e nas associações múltiplas entre percepção, representação e memória, o princípio condutor da narrativa. Proust não opera com a memória voluntária, capaz de arquivar nomes, números, datas e fatos, mas sim com a involuntária, que independe do esforço consciente da lembrança e traz à tona, através de uma canção ou um odor, por exemplo, recordações de um tempo pretérito, uma cidade ou um amor perdido. Assim, o gosto do biscoito Madeleine molhado ao chá faz aflorar involuntariamente a lembrança de Combray, onde passava férias quando criança. Revive um tempo perdido da infância, os momentos felizes e o ambiente da época. Esta analogia entre o sabor de um biscoito e a infância é o substrato último da Memória Proustiana, que visa integrar o leitor numa sensação dèjá vu.

A poética de Paulo Machado assim nos afigura, dividida entre um projeto proustiano, de natureza estético-cívica (Machado mescla a memória voluntária à involuntária, resgatando nomes e endereços arquivados como parte da lembrança: "na senador Pacheco 1193 há um poema"), e um programa político geracional. A memória cívico-subjetiva utilizada como instrumento maniqueísta que contrapõe o passado ao presente em sinal de decadência (tal como no poema-núcleo Post Card 57/77), revigora-se através de um recurso proustiano, a analogia empreendida pela memória que correlaciona eventos, fatos e lugares em tempos dialógicos. Os versos (tercetos dantescos?) destinados a 1957 assumem uma certa neutralidade descritiva ausente na representação da cidade em 1977, permitindo-nos concluir que a dualidade temporal comparativa está a serviço de um projeto político, contrário a modernização secular. O passado descrito com uma semi-neutralidade seria um espelho sobre o qual a cidade se contemplaria, como a estátua de Glauco, cuja corrosão, bastante acentuada, ainda permitia entrever seus contornos originais. A descaracterização da cidade, portanto, só será mensurável pela memória, que nos trará o objeto em sua originalidade, cristalizada no passado. Carlos Evandro Eulálio identificou neste poema a técnica de montagem de Serguei Eisenstein ("O Encouraçado Potemkin") cuja linguagem cinematográfica enfatizava a importância de causar tensão emocional nos espectadores através da justaposição dramática de imagens com denso conteúdo simbólico.

A memória a serviço da contestação política prolifera nomes de pessoas, ruas, datas, endereços e situações cotidianas da cidade. Assim, tal retrato fenomênico das ruas e da gente é empreendido de maneira a transformar o projeto político de preservação da memória cívica num elemento de condenação moral da modernização e do progresso, conduzido pelos homens de casimira cinza. Aí, a herança de Balzac, filtrada pela leitura de Drummond, dá-se através do mapeamento geográfico da cidade e seu cotidiano. Em suma, se a temporalidade e a memória provém de Proust/Bergson, a representação geográfica revive Balzac, tudo ruminado na poética drummondiana (excluo, obviamente, o neoclassicismo entediado pelos acontecimentos de "Claro enigma" e acentuo "Boitempo").

A busca de Machado, ao assumir o duplo projeto dividido entre memória e ação, é plasmar um retrato realista da cidade de forma a atingir uma isomorfia entre linguagem e vida. Ao seccionar o livro em dois, evidencia-se a interlocução rarefeita entre o poeta drummondiano, interessado na Memória Proustiana cuja virtualidade e sensibilidade diante do passado se hipertrofia, e o poeta engajado, interessado na ação poético-ideológica, na interação real com a matéria, o tempo presente. O conflito permanece mal resolvido. Deixa-nos a sensação de haverem dois poetas: o poeta solitário ("que se sentia absurdamente só"), absorto em reminiscências (vejam, entre outros, o poema "revisão": "na memória do menino/ os longínquos domingos de verão", os proustianos "herança" e "fragmento": "a rua torta que se prolonga/ à nevoa da infância perdida."; " libertinagem": "um fio de memória fluindo/ qual um rio de lembranças"; "réquiem": "partiu para recuperar o tempo esquecido"; além de "o rio", cuja "água pesada na memória" resgata à Torquato Neto "um tempo que não acaba"), e o ativista, repetindo o coro ideológico de uma geração. Numa relação inversamente proporcional, quanto mais Machado repetiu as palavras de ordem e os imperativos político-poéticos de sua geração, mais perda da energia poética e de força autoral ocorreu. A escolha por uma poesia heterônoma, produzida em série, soterrou o poeta autônomo, com rubrica e autoria. Ainda que o custo de tal escolha heterônoma fosse a queda de energia estética, o benefício estaria na reiteração enfadonha de elogios pelos companheiros de geração. O Compadrio e a defesa apaixonada dos críticos-aduladores que mais reverenciam do que analisam. Graça Vilhena, por exemplo, tentando analisar o poema post card 57/77, afirma não haver nestes versos "nenhum traço de poetagem fácil, pois não lhe interessa a aparência, e sim a essência". Airton Sampaio refere-se a esta "obra-marco, cujos poemas são contudentes mas ternos, [...], incisivos mas leves [...] impiedosos mas utópicos. E profundos. Aliás, profundíssimos". Ou ainda: "seus poemas advêm sim de seu talento enorme [...]". O que poderia ser um estudo introdutório torna-se mero florão com remates peremptórios, fogos de artifício e a tradicional encomiástica apaixonada e emotiva da geração. Descritivismo, elogios adjetivosos, compadrio.

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A secção "natureza morta" caracteriza-se por sua dicção à Bandeira e Drummond, elaborada a partir de uma proposta poética calcada no cotidiano e expressa de modo fenomênico, despojada de elementos transcendentais. Não obstante, o caractere mais significativo deste núcleo poemático reside em sua projeção de imagens resgatadas através de uma Memória Proustiana. Em maiúsculo, porque tal Memória assume uma condição conceitual que nos suprirá explicações e significados relevantes na compreensão do substrato poético da secção. "Natureza morta" admite dois significados plausíveis: i) o significado fundado na Memória Proustiana e sua narração da transitoriedade; ii) o significado estético concernente à proposição de uma linguagem coloquial cotidiana.

A expressão "natureza-morta" formulada por Arnold Houbraken, crítico de arte, foi utilizada no início do século XVIII para designar um gênero de pintura existente desde a antiguidade greco-romana. Representação de seres inanimados, imóveis, porém não necessariamente mortos, o gênero natureza-morta afigura-se na temática recorrente do barroco empós seu abandono durante a Idade Média. A denominada Vanité do período barroco representa cenas que remetem-nos a transitoriedade do mundo, o fluxo do tempo e até mesmo, a morte. Flores murchas fenecendo num vaso e frutos em maturação são transfigurações da efemeridade da vida e do tempo. A secção primeira do livro reitera a função da Memória Proustiana de forma a tornar as reminiscências subjetivas do autor em natureza morta, ou melhor, de maneira a transformar a Memória cotidiana, pessoal e própria à vivência do autor, uma linguagem de representação do tempo (dureé). Vista do alto, ou seja, pelo resgate da Memória, "a cidade pertence a todos e a ninguém" porque se cristaliza na lembrança subjetiva e intransferível de cada habitante, testemunho e partícipe de um tempo. A epígrafe de Gullar, disfarçada em verso geográfico, dir-se-ia, cartográfico, atua no corpo textual do livro de forma a reiterar a Memória como lugar da cidade. O próprio Gullar enfatiza no "Poema Sujo" que "o homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ e a cidade está no homem[...]". Machado compõe um intertexto com alguns versos deste longo poema, tal como demonstram as respectivas passagens:

É impossível dizer

em quantas velocidades diferentes

se move uma cidade

(Gullar - Poema Sujo)

impossível esquecer

a fúria dos táxis, imponentes

[...]

impossível esquecer

o último sábado do mês,

(Paulo Machado - Perspectiva)

Só há um lugar para a cidade, e este se resguarda na memória, esta natureza-morta que arrasta o homem para o passado, denuncia-lhe a velhice ("que venha a velhice") e lhe dá a morte por horizonte derradeiro. Mas as recordações são ladras: não nos devolvem o passado e furtam-nos o presente. O ponto irresoluto na proposta do texto está em instrumentalizar as reminiscências para a ação política, libertária. Em outras palavras, como elaborar a Memória ornamental, encerrada às bordas do subjetivismo nostálgico e estéril-estético, de forma a viabilizá-la à práxis em tempo presente? A solução ocorre pela transmutação da mnemosýne Proustiana em recurso político ideológico que virá na secção seguinte ("Gerais") coadunar-se ao papel subversivo da poesia. Vê-se o poema "libertinagem" como a agonia deste projeto memorial diluído em imperativos político poéticos. Nesta peça, a memória, outrora proustiana, assume uma conotação kitsch, representando o tempo pretérito da nação e da província através de uma memória artificial, extraída da visão maniqueísta e caricatural de personagens históricos, envoltos em tempos verbais. Trata-se, neste caso específico, da busca pelo autor, de subsídios na narrativa histórica racional - onde se guarda não a tradição, mas a ciência -, de onde extrai uma coleção de lugares-comuns ("nascido do tempero das raças"; "raiou o quilombo dos palmares"; "a flor do lácio, séculos de decadência") e estereótipos do heroísmo nacional. Este poema representa o desfecho do livro e do projeto de convergir memória (não mais proustiana, e sim, positivista, além de refazer um heroísmo carlyleano) e ação política. Como emblemas da secção primeira temos o poema "herança" que denuncia o "perigo do naufrágio/ nas tradições de há séculos"; "perspectiva", que transforma a Memória Proustiana, de caráter estético, em Memória Cívica, preocupada em salvaguardar hábitos e tradições de um povo. Lethe (o esquecimento) se contrapõe a alethéia (a verdade) de que o poeta é portador: "impossível esquecer um tempo de certezas".

"Gerais" abre-se com a epígrafe de Murilo Carvalho: mal o fogo penetrou/ no espaço sentiram/ que era um fogo que rasgava/ manso a carne, as fibras/ do cobertor, vivo chumbo/ dissolvendo a vida,/ a memória. A Memória Proustiana deglutida pelo anti-civismo ativista manifesta-se nas palavras de ordem dos poemas-panfleto, "poética" e "invenção". O primeiro ressalta a subversão e a resistência como imperativos da poesia: "não fugir nunca./ remar contra a corrente, lutar/ sem temer os golpes sujos dos que rastejam,/ cães roendo os ossos da omissão". O programa subversivo-político como fator primário se evidencia claramente neste fragmento:

fica um princípio:

não temos o direito de trair a poesia,

crucificá-la numa sexta-feira de passivismo.

jamais expô-la como símbolo

de uma vanguarda precoce, medrosa.

a poesia é torpedo-suicida

não podemos camuflá-la de bailarina persa.

a escuridão dos calabouços,

as câmaras de tortura,

nada fará calar os poetas.

Este é um poema sem autoria, poder-se-ia imputá-lo a qualquer poeta setentista.Aí, o locutor não é a subjetividade do poeta, mas o projeto político-estético de uma geração em uníssono. Poemas como este resultam de uma produção em série que aliena e padroniza os processos de autoria e criação poética. A busca de uma voz singular, proustiana e drummondiana, presente na primeira secção do livro foi abdicada em favor da ordem ideológica setentista. Os imperativos da geração emudecem a voz idiossincrática do poeta, agora heterônoma, alienada à ideologia de uma época, desprovida de autoria. O próprio nome dado à secção - "gerais" - teria como antônimo a palavra "particular", ou seja, algo constituído de individualidade, singular, pessoal. O poeta opôs as secções nomeando-as segundo tal antítese (geral vs autoral, geracional vs individual, heterônomo vs autônomo) deflagradora da dubiedade poética do livro (não discutiremos aqui se tal antítese fora elaborada de forma consciente ou não).

Chico Castro atenta an passant para este problema afirmando que "os poemas [de Paulo Machado] não expressam uma escrita automática misturada com gratuidades e trocadilhos, excessivamente iconoclasta e nervosa da maioria dos poetas de sua época, mas apresentam uma valorização da linguagem caraterizada pela uso do senso de medida, um certo culto à pesquisa artística e um reflexivo olhar sobre alguns princípios de composição do texto [...] Uma reação ao desleixo estético permeia todo o texto". Castro prefere enfatizar os elementos singulares do autor em relação aos caracteres gerais, ou melhor, geracionais, incrustados em sua poesia (a singularidade estaria, por exemplo, na presença de elementos formais, na "recomposição de sua própria história de vida" e na recusa do ludismo setentista em favor da disciplina e do trabalho, o que nos lembra o uso sugestivo do verso "rigoroso horizonte" no poema "cotidiano 2"; trata-se de uma epígrafe da "Fábula de Anfion" de João Cabral de Melo Neto, extraída por sua vez de um poema de Jorge Guillén).

Em resumo, Castro sustenta sua interpretação em três hipóteses: i) a reivenção do passado que vislumbra "um perfil de uma cidade que existe apenas na memória de Paulo Machado [...] que busca recuperar o paraíso perdido da infância, suas reminiscências, onde dormem as lembranças de um mundo que não existe mais, sem se esquecer um só momento o lado histórico, político e social do seu tempo"; ii) a poesia documentária ou cinematográfica das cenas teresinenses (hipótese esta já suscitada por Cineas Santos em prefácio ao livro "Tá pronto, seu lobo?", bem como, por Carlos Evandro Eulálio, quanto a comparação com a linguagem cinematográfica de Eisenstein) que constituem-se em "espécie de reportagens poéticas sobre acontecimentos tipicamente urbanos, inclusive retirados ou inspirados nas páginas policiais" [...] "as personagens são pessoas anônimas e marginalizadas pelo processo excludente da sociedade patriarcal e autoritária que se instalou no Piauí[...]". Não obstante, a fatura poética cinematográfico-jornalística não é nada mais que uma re-elaboração exaustiva do "Poema retirado de um jornal" de Bandeira; iii) o construtivismo poético que "não trabalha na perspectiva do despojamento e da espontaneidade, mas se engaja para uma engenharia do poema [...]". Este rigoroso horizonte, via Cabral, seria antitético a proposta setentista.

Para interpretar a poética de Machado, Castro omite as fontes nas quais se nutre. Ao invés de problematizar sua dissertação contrapondo as diversas interpretações existentes -e das quais fez uso - com a sua própria, apropria-se (sem a devida citação, obrigatória aos imperativos éticos da honestidade intelectual) de expressões de Wanderson Lima (referentes ao "lirismo antilírico" do "cotidiano citadino", à "poesia substantiva" com "economia de palavras") e Cineas Santos (referente ao tom de "reportagem de rua" dos poemas). Na bibliografia do livro As Travessuras do Mamulengo nenhum dos estudos referidos ao longo deste artigo é citado: Carlos Evandro Eulálio, Graça Vilhena, Airton Sampaio, Wanderson Lima, Dílson Lages e Cineas Santos. Apesar de não divergirem substantivamente, tais interpretações se contrapõem em alguns pontos e devem ser citadas expressões ou idéias que profiram. Os artigos de Wanderson Lima (Diário do Povo;12/06/2002), Dílson Lages (Diário do Povo;19/06/2002) Graça Vilhena (Scentia et Spes, ano1/2002;nº 2), Carlos Evandro Eulálio (Revista Presença, nº15, Teresina, Jul/outubro de 1985) são anteriores à publicação de Castro (10/2002). Será que o intérprete pretendia anular a análise de outros críticos através da omissão e apropriação de seus contributos?

Já Eulálio, atenua a heteronomia dos poemas-panfleto quando assinala que "no caso específico de Paulo Machado, observamos que sua obra, embora nos pareça vinculada à poesia marginal, tem, por outro lado, procurado afirmar sua individualidade, trilhando caminhos próprios [...] buscando estabelecer relações com a linha poética dos anos 70, mas também tentando surpreender as tendências estilísticas do poeta que lhe permitem superar os contornos estéticos de sua geração". Em verdade, a vinculação ao setentismo não é mera aparência. O poeta geracional anula o poeta individual, e neste diagnóstico Eulálio arrefece, talvez por que soubesse dos riscos de contrariar um grupo fundamentalista que não admite irreverências críticas. Mas ainda assim, o crítico não se omite em identificar dois aspectos convergentes entre a poesia de Machado e o programa político-estético da geração: i) O imperativo da poesia de resistência, com mobilização política e a ruptura com o silêncio imposto pelo AI-5; ii) o imediatismo da linguagem poética que deveria, em prol do significado, expressar de forma linear e discursiva os conteúdos políticos de resistência. A poesia, nesta lógica, transforma-se em instrumento para consecução de fins subversivos, estando alienada de sua linguagem autônoma para servir às mensagens ideológicas e às palavras de ordem. Eulálio surpreende ao denominar pós-vanguardista a poética de Machado. O conceito de pós-vanguarda é impreciso, embora seja presumível que o crítico o tenha franqueado de Haroldo de Campos, que se refere a uma arte pós-moderna cujo horizonte utópico, fundado na revolução e na práxis marxista, se esvaiu. Assim, a pós-modernidade estética traria consigo a perda destes horizontes. Eulálio omite-se e permite-nos deduzir que o sentido atribuído à poética de Machado é meramente cronológico, uma vez que seria errôneo identificar em tal poesia uma pós-modernidade estética devido a seu acentuado teor utópico e subversivo (a quem interessar possa, o conceito de pós-modernidade estética é discutido por Jorge Lúcio de Campos em A Vertigem da Maneira - Pintura e pós-vanguada na década de 80). Em verdade, a possível ligação entre a poética de Machado e a pós-modernidade está na sua ligação genealógica com a natureza-morta, que desembocará na proposta coloquialista e cotidiana da pop-art e sua estética desvinculada dos materiais nobres. Aprofundaremos esta hipótese a seguir.

Retornando a problemática da heteronomia, o poema "invenção" é mais claro quando afirma: "o que há na renúncia, moço, é presságio de morte". Neste fragmento, como em outros esparsos, o autor anuncia imperativamente que a poesia não pode ser renúncia, quietude, silêncio, mutismo, passivismo, omissão. A poesia se afirma como luta, esperança, insubmissão, contestação, irreverência (todas estas palavras extraídas de vários poemas). A resolução política para a Memória Proustiana, acentuadamente esteticista aos parâmetros do poeta avesso (não! não obedeças./ sê o avesso), resume-se na equação que distingue o poeta vivo, lutador, irreverente, ativista político e saintsimonista teófago, do poeta morto, porque estar morto assemelha-se a uma natureza-morta, resumida a contemplação passiva do tempo que a carcome, rói, dissolve. Não por acaso o verbo "roer" e suas variantes ativas, intermedia o passado como natureza-morta ao presente vil, governado pelos homens de casimira cinza (encarnações do mal, responsáveis pela corrosão da Memória e da Tradição). É-nos evidente o tom maniqueísta da narrativa. A memória poética proustiana, se não instrumentalizada para a ação será mero simulacro, virtualidade, nostalgia subjetiva.

A Secção "gerais" traz, além da imagem do porto (o horizonte, o "ancorar": as lembranças de uma longa espera/ fingem-se ancoradas; Ou ainda: no porto, a lembrança das velas) a repetição imagética da corrosão. Percebe-se a reiteração do verbo "roer" e sua fanopéia projetada no símbolo da corrosão de um presente carcomido em seus valores e tradições (o Parnaíba continua lavando as almas pagãs/ dos meninos fujões/ roendo as pedras do cais com a mesmo fúria; Ou ainda, em "post card 57/77": No bar Carnaúba o sol roia o marrom; no poema "relatório": A carta patente, com o selo/ das armas da República, /serviu de pasto aos cupins; "Arquivo": Hoje é um número qualquer/ arquivado/ à espera dos cupins; "Cotidiano": vorazes os autos roíam a paisagem; "Herança" há um poema que rói o tédio, "Poética" cães roendo os ossos da omissão, e a epígrafe da secção "gerais", na qual se usa "dissolver" ao invés de "roer", o que altera o vocábulo, mas o substrato imagético permanece, ou seja, a idéia de corrosão temporal e corrupção de valores e tradições). Castro já havia atentado para a função determinante deste verbo-ação, intermediário da relação entre presente e passado.

Por fim, o outro significado da natureza-morta, este de caráter estético, assinala uma opção pelo coloquial e pelo cotidiano. A continuidade e renovação deste gênero de pintura, a partir do século XIX, inicia-se com movimento impressionista, contrário as convenções da arte que se tornara acadêmica e rígida. Em Renoir, por exemplo, flores transbordando de um jarro, são meras manchas de tinta representando a transitoriedade e a aparência modificável dos objetos com as mudanças de luz e sombra. Kurt Schwitters (estudado por Haroldo de Campos em conhecido ensaio) e, sobretudo, Marcel Duchamp, com os ready-made, estetizaram objetos da vida cotidiana. Em suma, a tradição da natureza-morta desemboca na pop art de Andy Warhol que confecciona uma arte a partir de materiais não-nobres (ao invés do bronze como matéria-prima trabalha-se com latas velhas de refrigerante, por exemplo), cotidianos e despojados da linguagem e das temáticas superpoéticas. A tradição poética da natureza-morta é a tradição do coloquialismo e do cotidiano como substrato poemático portador de riqueza. E aí se insere a poesia de Paulo Machado. A tradição estética do gênero natureza morta ramifica-se até a própria geração setenta, ancorando a proposta artística na estetização de objetos cotidianos com uma linguagem coloquial, avessa, desde Renoir, ao rigor acadêmico. O nó-górdio da poética de Machado, entretanto, reside em sua opção pelo populismo poético, opção por soar uníssono ao coro dos descontentes, abdicando do projeto de criação autônoma. Ao alienar, transferir o domínio de sua voz poética autoral em favor de uma voz geracional, circunscrita a um momento histórico, Machado optou pela platéia, quando o poeta só deve respeito ao teatro vazio.

Ranieri Ribas é sociólogo e cientista político,

autor do livro de Poemas Os Cactos de Lakatus

(Amálgama, Teresina, 2003)