Paul Valery: conceito poético de autoria
[Marcos Pasche]
 
A contemporaneidade literária é o jardim das veredas que se bifurcam para se cruzarem, embolando propositadamente as direções possíveis. Em suas obras mais representativas, as categorias teóricas (de gênero, de estilo, de registro linguístico, por exemplo) não são evocadas com outra finalidade que não seja a de subvertê-las e extrapolá-las. Segundo os autores contemporâneos, em linhas gerais, aquilo que é é o que deve deixar de ser, para que limites sejam identificados e, consequentemente, ultrapassados.
 
Acerca do livro “Poemas de Paul Valéry” traduzidos por Márcio-André, convém destacar inicialmente que ele se vincula a uma coleção editorial chamada “Os contemporâneos”. Esse vínculo pode ser tomado como primeiro indício interpretativo da obra, pois a referida tradução do livro soa como um pretexto para a feitura de uma ficção poética.
 
Na introdução, Márcio-André narra os acontecimentos que o fizeram chegar aos poemas apócrifos atribuídos a Paul Valéry, referindo uma série de detalhes que soam nítidos e irrefutáveis, envolvendo nomes de pessoas, editora, biblioteca, ensaios, legislação autoral e até fotografias dos originais. Entretanto, por ser contemporâneo e quase esclarecedor, Márcio-André lança no campo da informação ampla e minuciosa a nota desestabilizadora de toda a convicção factual: “A maior questão de nossa era é a problematização das fronteiras, talvez inexistentes, entre ficção e realidade. A busca pela Verdade nos levou a tal quantidade de informação que tudo poderia ter sido inventado, e é aí que a mentira passa a ser a única maneira de acreditarmos nas coisas do mundo”.
 
Se coligados ao breve epílogo do livro, esses dois fatores iniciais — o título da coleção e o introito — construirão uma chave de leitura da obra. Diz o remate: “É possível que Paul Valéry não tenha existido. Neste caso — e para todos os outros efeitos —, os poemas deste volume poderiam ter sido escritos por mim”. Se os dois protagonistas da trama autoral insistem na recusa da assinatura com todas as letras, resta ficar por conta da própria poesia, que ao dizer “toda fronteira é mais verbal do que física” revela que, no livro, mesmo a questão da autoria não é propriamente autoral, e sim poética.
 
Dada a densidade de sua concepção e o liame existente entre suas dez partes, os Poemas apócrifos de Paul Valéry traduzidos por Márcio-André estão além de mera coletânea de poemas dispersos. Se tomados de forma isolada, os textos demonstram que o livro não se traduz como algo satisfeito em dar cambalhotas terminológicas, dependente de súmula editorial para explicar sua recusa à comunicação ou coisa do tipo. Ao longo das páginas, a poesia se manifesta em imagens densas.
 
Diante de um livro em que a determinação autoral soa tão rarefeita quanto insolúvel, cabia ao leitor ficar a cargo da poesia, levando-se apenas a ela e por ela deixando-se levar. Assim, ela, também alteradora de caminhos, faz deste o mais interessante livro de Márcio-André, que se apresenta mais maduro e autônomo (ainda que ele não se declare decididamente como absoluto criador dos Poemas apócrifos). A linguagem experimental (dominante nos dois livros de poesia que ele publicou anteriormente) mostra-se permeável à palavra figurativa e comunicante – “à noite os pensamentos são mais obscuros/ os quintais se recolhem/ e as lâmpadas dão seus pêssegos de luz” —, pois o que acontece poeticamente é o que deve acontecer novamente: “a morte da semente/ para a invenção da planta”.
 
Marcos Pasche é professor de Literatura Brasileira da UFRJ e crítico literário
 
Foto: Agência O Globo / Acervo
 
Publicado originalmente em O Globo, 25.10.2014