(Miguel Carqueija)


                                     A paisagem era incerta e nebulosa, grandes tiras de névoa moviam-se para lá e para cá quase como objetos sólidos. Eu e Gil caminhávamos meio às cegas até que surgiu mais luz e nós esbarramos afinal com o Rodrigo que, encostado numa mureta de cimento, observava tristemente um calhambeque igualzinho ao automóvel do Pato Donald.
— Qual é o problema? — perguntei.
— Ah, são vocês! Me ajudem a empurrar esse carro!
— Ele está enguiçado? — perguntou Gil.
— É claro, Zé Mané. Ou você acha que eu vou ficar empurrando um carro que funciona?
— Perguntei só por perguntar, calma! Vamos lá, Tristão!
Começamos a empurrar o veículo pela estrada de paralelepípedos. De repente o carro pegou e saiu voando sozinho.
              — Vamos atrás dele! — gritou Rodrigo, desesperado. Corremos e corremos, daí a pouco estávamos voando e alcançamos o carro, conseguindo entrar nele e Rodrigo dirigiu-o para baixo. Logo pousávamos no oceano.
— Olha só, não é a Mary Poppins?
Rodrigo apontou para uma mulher lá nas nuvens, voando com um guarda-chuva.
— Acho que é ela mesma — falei — mas não está nos vendo.
— Ei, Mary! — e Gil acenou com um enorme lenço vermelho.
      — Ela não pode ouvi-lo, tonto! — gritei. — Você só conseguiu atrair um    touro furioso!
— Touro? Aqui no mar? — estranhou Rodrigo.
— Ele não sabe que tudo pode acontecer nos sonhos — cochichou-me Gil.
— Schiu! Não é bom que ele escute.
— Ora, ninguém percebeu nada em milênios...
              Rodrigo pisou no acelerador. O touro virou um rinoceronte azul e continuou nos perseguindo, mas o Pato Donald subiu a bordo, não sei de onde veio, empurrou Rodrigo e assumiu a direção:
— Segurem-se! Lá vamos nós! — grasnou ele.
            “Por que — me pergunto eu muitas vezes — eu e o Gil fomos destacados para os sonhos de um maníaco por história em quadrinhos? Da última vez nós tivemos que brigar duas horas com os Irmãos Metralha e o Tio Patinhas nem nos deu uma gorjeta!”
              Conseguimos afinal escapar do touro-rinoceronte e pousamos numa das ruas principais de Patópolis. Eu e o Gil saltamos e nos despedimos, pois o cenário já começava a tremular.
              — Eu levo você até a praça — disse o Donald. — Aí você salta que eu vou encontrar a Margarida!
E lá foi o Rodrigo com o pato. Intrigado, observei ao Gil:
              — Ele está indo de carona com o Donald? Mas o carro é do Rodrigo ou do Donald afinal?
— Os sonhos desse cara são muito confusos, esquece.
— Nem fale. Só de pensar naquela surriada com o dragão relutante...
            — Ele não passa um dia sem assistir desenhos animados. Eu gosto mais quando aparece a Sailor Moon. Ela é uma gracinha.
— Só que ultimamente quem tem aparecido mesmo é o Capitão Gancho...
— Opa! Estamos desligando!
              Fomos parar na estalagem Cruzeiro do Sul, onde muitos de nós se reúnem. Rodrigo ou estava acordado, ou continuava a dormir sem sonhar.
               Sentamos na mesma mesa do Tadeu, que tomava um chope e parecia muito chateado. Aliás, estava cheio de ferimentos.
               — Isso é que dá — explicou ele — parasitar os sonhos de um fã de Jacquie Chan...
              Terá sido uma boa escolha quando a nossa raça, aportando na Terra, pela diferença de densidade só tenha podido sobreviver nos sonhos dos nativos? Bom, isso depende dos hábitos de nossos hospedeiros... pelo menos, com o Rodrigo é divertido.