(Miguel Carqueija)

 

As histórias de viagem pelo tempo trazem implícitas situações desconcertantes

 

PARADOXOS

 

Pela estrada poeirenta seguia, a passo ligeiro, a menina de tranças negras e uniforme escolar, com sua mochila pendente do ombro direito. Tudo nela era belo e gracioso, até o jeito de andar. Mantendo-se junto do acostamento, via passarem os carros nos dois sentidos.
Bem mais além, a estrada fazia uma curva para a direita, antes de chegar na escola. Um longo trajeto, mas que Tânia estava acostumada a fazer, pois era boa caminhadora. Gostava de seguir cantarolando canções românticas, para distrair durante a caminhada, ou chupar alguma bala de mel, morango ou café; às vezes encontrava colegas pelo caminho, mas nem sempre; muitos vinham de outras direções para a escola rural.
Tânia, nos seus quatorze anos, vivera até então uma vida tranqüila e feliz. Tinha uma boa família, adorava a mãe, o pai e os irmãos, o cachorro da casa, tinha ótimas amizades, nenhuma preocupação material... uma vida despreocupada, talvez rósea demais.
Rósea demais...
Contornando o talude da estrada, que ocultava a paisagem além, ela viu com surpresa o automóvel cinza-prateado, parado no acostamento, com uma mulher jovem, alta, parada ao seu lado. Ao avista-la Tânia teve um choque, súbito e inexplicável. Algo estava errado, ela não podia saber o que. Continuou andando, enquanto a mulher a mirava, intercalando o olhar para o relógio de pulso. “Invenção de Santos-Dumont”, pensou Tânia e se dispôs a passar ao lado do carro. Porém, a pouca distância, olhou distraidamente para a moça e percebeu, espantada, como se parecia com ela própria. Deveria porém ter o dobro de sua idade.
- Espere, Tânia!
A menina parou imediatamente. Não sabia quem era aquela pessoa; mas era alguém que conhecia o seu nome.
- Sim?
A jovem pôs-se bem em frente à garota, que a fitou assombrada, olhos arregalados:
- Quem é você?
- Receio que não terei tempo de explicar agora. Só tenho poucos minutos.
A mulher subitamente agarrou Tânia, forçando-a a se virar de costas e tapando-lhe a boca. A garota debateu-se; seu braço esquerdo foi torcido para trás, dolorosamente, a ponto de lhe arrancar lágrimas, e ela viu-se arrastada para dentro do carro, cuja porta direita estava entreaberta. Tânia lutou o quanto pôde, mas a sua captora conhecia técnicas de luta e, obrigando-a a deitar de bruços no estofamento do carro, amarrou-lhe as mãos para trás com uma corda que já estava no banco. Tânia pôs-se a gritar, mas foi amordaçada. Não satisfeita, a seqüestradora amarrou os seus tornozelos, para que parasse de espernear. Então tomou lugar na direção, com Tânia sentada a seu lado, e ligou o motor. Aí olhou para ela, com uma expressão curiosamente amorosa:
- Vou lhe dizer toda a verdade em poucas palavras e você de início não vai acreditar em mim. Só que eu disponho de poucos minutos e você tem que saber a verdade, tem que tentar entender. Não precisa ficar com medo: eu não lhe farei mal nenhum e a soltarei em poucos minutos.
          “Tânia, você sou eu, eu sou você. Eu sou Tânia Freire de Alvarado, tenho 30 anos e venho do futuro. Se não acredita, veja os meus documentos, veja a data de nascimento, a filiação...”
Ela tirou do porta-luvas alguns documentos: RG, CPF, cartões magnéticos... Tudo conferia. E aí Tânia viu, estarrecida, fotos dela própria, em criança, com oito, nove, onze anos... e até uma fotografia recentíssima, de um mês atrás, mas envelhecida.
- Eu vim do futuro, graças a uma técnica secreta que existirá na minha época, para livrar a mim mesma – isto é, você – do estupro que você vai sofrer daqui a pouco, a caminho da escola. Agora veja esses recortes!
 Jornais amarelados, mas com a data do dia seguinte e dos dias subseqüentes desvendaram à adolescente fatos estarrecedores. Lá estavam manchetes assim: “Terror em Pássaro Verde. Menina de quatorze anos violentada a caminho da escola.” E ainda: “Estupro na estrada. Desconhecido ataca estudante.”
E lá estavam o seu nome, a sua foto com o rosto tarjado, as faces angustiadas de seus pais...
Outros recortes falavam dos ataques subseqüentes, contra outras meninas, inclusive colegas de Tânia. E finalmente outro recorte dava conta da prisão do suspeito de ser o “monstro”. Lá estava a foto, com o nome.
Embora Tânia desejasse ardentemente ler tudo, a outra guardou o material de volta no porta-luvas e consultou o relógio:
- Não há mais tempo. Estou aproveitando que, nesse dia, a estrada estava muito deserta, mas não posso me arriscar muito.
O carro pôs-se em movimento e a Tânia do futuro, conservando o sangue frio, avisou:
- Quer saber o que eu vou fazer? O estuprador está além  da próxima curva, rondando pela estrada, procurando uma vítima. Só que a vítima será ele. Não fique muito chocada, mas assista.
O carro virou a próxima curva - e lá estava ele.
A menina estremeceu, sabia já o que ia acontecer, e não sabia o que pensar. Em vão, forcejou com as cordas que a prendiam e balbuciou através da mordaça. A outra Tânia já não lhe prestava atenção: concentrava-se no alvo...
O homem, espantado, bem que tentou escapar, mas tudo fora muito bem calculado. O Alfa bateu em cheio no pedestre, jogando-o a distancia. O grito de Tânia foi abafado pelo pano, e a Tânia do futuro completou a manobra, fazendo o automóvel passar por cima do corpo.
Tânia adolescente entrara em convulsões e as lágrimas escorriam em sua face.
O alter-ego só parou o automóvel depois de entrar com ele no mato.
- Tânia, por favor, controle-se. Eu vou soltá-la, você tem que  ir para a aula como se nada tivesse acontecido, você é forte o bastante para isso. Encare a situação e aceite! Eu sou você. Eu te salvei do estupro que eu sofri, você fez agora um desvio em sua linha temporal, seu molestador está morto, suas colegas, que seriam as próximas vítimas, estão salvas.  Pássaro Verde não deixará de ser o recanto de tranqüilidade que sempre foi, onde as meninas podiam passear sem susto na estrada. Sabe o que aconteceu com esse gajo na minha linha temporal? Ficou preso alguns anos,  depois foi solto por bom comportamento e, uma vez livre, voltou a molestar meninas e crianças. No meu tempo, continuava livre.
“Eu pensei em mata-lo, mas a minha profissão me mostrou um caminho mais completo. Eu sou física quântica e, trabalhando para o governo, participei de um projeto secreto que trabalhava com o fenômeno da viagem temporal. Afinal, o projeto foi cancelado e proibido, por causa dos riscos inerentes, dos paradoxos, mas a essa altura eu concebera o meu plano e consegui surrupiar uma cápsula temporal que me permitiu retornar a esse ponto e eliminar a injúria que sofri.”
“Em poucos minutos, a carga temporal que ingeri vai se esgotar, e eu desaparecerei de seu tempo – com tudo o que eu trouxe. Entendeu? É perigoso ficar perto de mim. Eu a soltarei e nós nos despediremos. E pelo amor de Deus, não fale a ninguém, você não viu nada e nada sabe sobre o homem atropelado. Não perca a calma e simule, é só não demonstrar conhecimento do que houve.”
Ela desamarrou a Tânia-adolescente e desamordaçou-a., e gesticulou para que ela saísse do carro. A menina obedeceu e esperou-a; a Tânia-adulta também saiu, e viram-se frente a frente.
Fitaram-se longamente.
A menina Tânia compreendera e aceitara tudo.
- Eu agradeço... o que você fez por mim. Muito, muito obrigada.
Abraçou e beijou a outra e, sorrindo, acrescentou:
- É engraçado... agradecer a mim mesma. Entretanto... foi certo matar aquele homem? Apesar de tudo?
-Foi um ato de legítima defesa. Eu não sou deste mundo, eu sou do futuro. Como poderia leva-lo à justiça?
- Você deve ter razão.
- Adeus, Tânia. Se cuida.
- Você também, Tânia. E mais uma vez, obrigada.
- Só te faço uma recomendação: aprenda artes marciais, para saber se defender de qualquer atacante. É o que eu fiz, mas motivada pela agressão que sofri; porém você fará isso de qualquer jeito.
- Tânia, você se casou?
- Estou noiva – ela sorriu. – Deixa eu ir , querida. Fica com Deus.
Beijou-a rapidamente, e voltou ao carro.
- Agora afaste-se, por favor. Em dois minutos vou desaparecer da sua vista, e você deve se afastar pelo menos uns dez metros. Eu volto para o meu tempo!
Ela obedeceu e se afastou, espantada por não haver ninguém por perto. Só então refletiu em como habitava uma região deserta... de casas longínquas entre si... não se tinha medo porque não se ouvia falar em crimes, mas agora ela passaria a sentir medo de lugares ermos.
Em dois minutos o carro pareceu tremer em seus contornos e aos poucos desvaneceu. Era, a princípio, como se estivesse sendo visto através da água.
Por estranho que pareça, Tânia não se admirou quando o automóvel sumiu de sua vista. Ela sentia uma íntima convicção de que aquilo tudo era verdade, sabia que o carro iria desaparecer. E por reconhecer a necessidade de guardar segredo absoluto, afastou-se rapidamente, sem olhar para trás, buscando um atalho para a escola. Estava determinada a ocultar qualquer conhecimento sobre a morte daquele homem.
Vince - assim ele se chamava. Tânia agradecia a Deus por nada reter, em sua memória, da violentação que sofrera em algum tempo diferente daquele.
“Mas – raciocinou a garota – numa coisa, ao menos, minha outra eu se enganou. Ela desapareceu desta época, mas não voltou à sua. Aquela linha temporal foi destruída. Desde o momento em que ela voltou no tempo e matou o tarado, criou uma nova linha temporal. Eu já não fui estuprada; portanto, quando estiver com trinta anos, não terei porque retornar ao passado, não haverá mais estupro para evitar. Portanto, aquela versão de mim mesma desapareceu para sempre; mas ela vive em mim, eu sou ela.”
“Que coisa mais complicada!”



Muitos anos se passaram. E, um belo dia, Tânia encontrou-se com trinta anos, com a idade que tinha ao retornar para o passado.
Infelizmente isto já não lhe era possível. Não buscara ser física; isto agora lhe causava medo. Se naquela linha temporal existiam as pesquisas experimentais de viagem no tempo, mantidas em segredo pelo governo, ela não tinha como saber. Estava noiva, mas não sabia se da mesma pessoa; esquecera de perguntar o nome ao seu alter-ego.
Numa coisa os futuros coincidiram: o carro que ela comprara por reconhecê-lo na revendedora.
E aí veio aquele dia em que o carro enguiçou na estrada, perto de Pássaro Verde, onde ela já não residia há dez anos.
Tendo saído do veículo, contrariada, a jovem olhou em volta, imaginando a que distância ficava o socorro mais próximo. Teria que telefonar e aguardar.
Um homem mal vestido e corpulento apareceu de súbito vindo do mato adjacente.
- Ei, moça!
Ela o olhou, espantada. Ele vinha vindo, com os olhos arregalados.
- Quero falar com você.
Um alarme soou na cabeça de Tânia.
“Meu Deus, é ele!”
Lá estava Vince, sem tirar nem por. Podia estar 16 anos mais velho, mas ainda era novo e forte. E, a julgar pela catadura e pela atitude, não mudara de hábitos. Tânia sentiu estarrecida, num “dejá vu”, todo o horror da violência que um dia sofrera - um obscuro dia perdido nos aranzéis do tempo.
Não devia ser assim, o estupro não podia fazer parte de seu passado, não naquela linha temporal. Mas não pudera ser totalmente apagado de sua consciência.
Mas como poderia Vince estar vivo? Ele morrera naquela linha temporal; como poderia ressuscitar, como se fosse Jason?
Naqueles segundos cruciais ela julgou entender. Aquele era o dia em que Tânia retornara pelas espirais do tempo para salvar a si mesma. Uma vez livre do estupro, seguira a sua vida até chegar novamente àquele dia. Só que desta vez ela não viajara no tempo, não matara Vince no passado. Portanto, criara-se uma terceira linha temporal, na qual Vince ainda não morrera. Por isso aquele reencontro: a situação ficara mal resolvida, e o continuo espaço-temporal queria o desempate.
Ele vinha vindo.
Tânia encostou-se no carro, amedrontada, pensando se conseguiria fugir. E então ela lembrou-se de quem era: não mais uma menina doce e indefesa, mas uma mulher adulta, vivida, e que aprendera caratê, e que sabia dar golpes mortais. Tudo o que ela tinha de fazer era simular pânico, comprimir as costas no automóvel, fingir que estava sem ação, apavorada demais para fugir, e sim, começar a gritar. Aí, quando ele chegasse mais perto, só teria de por em  riste  dois dedos da mão direita -  indicador e anular – e acertar-lhe a carótida.
Tânia pôs-se a gritar e ele apressou o passo. Prestes ao contato, um pensamento curioso atravessou a mente de Tânia. Com certeza, um homem poderia violentar duas vezes a mesma mulher. Mas poderia essa mesma mulher matá-lo... pela segunda vez?