Para que um garoto de dezenove anos pegue o trem para a cidade grande e não desça nem para comprar leite. Para que um figurante sertanejo carregue na cabeça uma pedra que não é de papelão. Para flutuar no céu com uma corda presa ao pé. Para assistir a sessão das 15:30, ir em casa jantar, e depois assistir a das 19 e a das 21. Para gostar tanto de trailers que o começo do filme seja visto como um anticlímax. Para ser barrado num “filme 18 anos” e ficar duas horas na praça esperando que os amigos saiam e digam como foi.
Para a gente ver o quanto a beleza das mulheres independe da época e das roupas. Para a gente se flagrar torcendo pelo bandido. Para que duas pessoas passem uma noite inteira tentando lembrar o nome de um filme cujas cenas não esqueceram. Para que as guerras pareçam um confortável conflito entre heróis indestrutíveis e nítidos vilões. Para colecionar fotos de diretores e de atrizes, cartazes, canhotos de ingressos, figurinhas, fichas técnicas. Para podermos espionar a vida íntima de gigantes por um buraco retangular de fechadura. Para assobiar pro urubu da Condor.
Para a gente saber que existe uma outra realidade, um mundo mais perfeito, um universo criado por uma inteligência superior, mas que não é este. Para saber de cor as fotos expostas na sala de espera e ficar contando à medida que surgem durante o filme. Para que a palavra se faça carne diante dos nossos olhos. Para alguém ver uma cena como se fosse a câmara, como se fosse o personagem, como se fosse o homem que a escreveu e dirigiu, como se fosse o menino que a viu pela primeira vez. Para arremessar um osso para o espaço sideral.
Para viajar na máquina do tempo, na máquina do espaço, na máquina da matéria, na máquina do espírito. Para esperarmos quarenta anos pela chance de ver um filme que todo mundo diz que não presta. Para sentarmos lá na frente e vermos tudo antes de todos. Para aprendermos como erguer uma taça, como desmontar e montar um fuzil, como cavar um túnel, como estaquear um vampiro, como roubar um milhão de dólares, como enlaçar uma cintura. Para pregar um lençol esticado na parede.
Para andar de bicicleta sob a chuva, em volta de uma moça bonita. Para entregar uma flor ao porteiro e entrar sem pagar ingresso. Para continuar sentado após o fim do filme e ver de novo o Canal 100 na próxima sessão. Para ser o único a perceber um erro de continuidade. Para ver dinossauros dançando a sagração da primavera. Para que uma Paillard-Bolex e um Nagra imortalizem uma velhinha que não sabe ler. Para que a nossa mente seja uma cebola que cresce 24 camadas por segundo. Para aprender a ver um filme búlgaro com legendas em holandês. Para ver um menino sertanejo imitando o andar do pai. Para encontrar o homem de areia, a mulher de palha, o coração de vidro, a cruz de ferro, a lua de papel, o mar de rosas, o gosto de mel. Para que a tela seja janela – seja pintura – seja bola de cristal – e seja espelho.