Estátua de Papiniano, Palazzo de Giustizia, Roma.
Estátua de Papiniano, Palazzo de Giustizia, Roma.

Reginaldo Miranda[1]

 

Dentre os jurisconsultos romanos que deixaram obra notável figura Paolo Emílio Papiniano, cognominado príncipe da justiça. É considerado o maior de todos, dada a sua independência de espírito, sobriedade, profundidade dos estudos e segurança nos pareceres, tendo contribuído para a elaboração científica do direito.

Embora não existam fontes seguras, consta que era natural de Emesa, depois denominada Homs, na Síria, então parte integrante do vasto império romano, tendo visto a luz do sol pela primeira vez por volta do ano 140 da Era Cristã. Pertencia a uma família de grandes sacerdotes. Pouco sabemos de sua formação escolar, somente que foi aluno do professor e jurista Quinto Cervídio Escévola. Diz-se que foi condiscípulo do futuro imperador Séptimo Severo, que era natural da Líbia. Porém, pode ter estudado na famosa Escola de Direito de Beirute, um dos berços do estudo jurídico no império romano. Embora não aventem essa hipótese, são unânimes os seus biógrafos em afirmarem ter sido mestre nessa escola.  Foi preceptor do fenício Ulpiano, que o sucedeu nos estudos de jurisprudência.

Em Roma, ocupou os mais elevados cargos, sendo advogado do fisco e assessor do prefeito pretório, no governo de Marco Aurélio. Em abril de 193, assumiu o trono o imperador Septímio Severo, desde o ano 187, casado em segundas núpcias com Júlia Domna, irmã de Papiniano. Foi então esse jurisconsulto sírio nomeado magister libbellorum. No ano 203, assumiu o importante cargo de prefeito pretório, isto é, administrador militar e civil do exército, além de membro do conselho.

Assim, se converteu Papiniano em personagem influente da administração romana, porque ao cargo de prefeito pretório, responsável pela guarda de proteção do imperador, foram anexadas competências no âmbito do exército, administração e finanças. Pelo olhar de hoje seria um superministério de justiça, defesa, administração e finanças. Por essa razão, esse alto cargo foi ocupado em governos distintos por jurisconsultos do porte de Papiniano, Ulpiano e Paulo.

No entanto, o grande legado de Papiniano foi o estudo do direito romano no sentido da universalização, alcançando um grau de excelência jamais atingido na jurisprudência. É considerado um modelo de jurisconsulto, a mais alta expressão do gênio criador da jurisprudência romana[2]. Sua obra compõe-se de 37 livros de Quaestiones libri, escritos sob Sétimo Severo; 19 livros de Responsium libri, terminados sob Caracala; e dois livros de súmulas com o título Definitiones, todos escritos em estilo escorreito, suscinto, elegante e seguro. A segunda coleção constituiu a base dos estudos dos alunos de terceiro e quarto ano nas escolas de direito pós-clássicas, quando os alunos atingiam o nível papinianistae, ou seja, já eram dignos de estudar Papiniano. Sua obra, juntamente com a de outros jurisconsultos foi responsável pela ampliação do direito de cidadania a todos os habitantes das províncias, fato que aumentou a arrecadação do tesouro.

Gozando de alto prestígio entre os contemporâneos, sua fama e reconhecimento só aumentou com o tempo.  Logo depois de sua morte foi sua obra estudada e comentada pelos também jurisconsultos, Paulo e Ulpiano.

Em 321, portanto um século depois de sua morte, proibiu o imperador Constantino por meio de uma constituição[3], que as notae que Paulo e Ulpiano acrescentaram à sua obra fossem alegadas perante os tribunais “porque nelas o pensamento de Papiniano não resultava melhorado, por outro lado – disse o próprio Constantino – resultava deformado”[4]. Era, pois, o reconhecimento da superior e indiscutível autoridade de sua obra.

No século seguinte, duzentos anos depois de sua morte, continuou sendo indiscutível sua superioridade como jurisconsulto. Naquela altura encontrava-se em decadência a jurisprudência romana utilizando-se os magistrados das respostas de diversos juristas clássicos do período anterior. Vivia-se o período pós-clássico. Para eliminar a confusão reinante os imperadores Teodósio II e Valentiniano III promulgaram a Lei das Citações, de 426, determinando que somente as opiniões de Papiniano, Ulpiano, Paulo, Modestino e Gaio tivessem força de lei. Havendo discordância prevaleceria a opinião da maioria. No entanto, em caso de empate seria levada em consideração a opinião de Papiniano, quando alegada, por ser considerado sublime e o mais excelente de todos, no dizer do imperador.

Um século à frente sua obra seria citada nas constituições imperiais, instituições e novelas de Justiniano. Por aí se vê o alto conceito em que era tido e reconhecido esse notável jurisconsulto sírio-romano, dois séculos depois de seu óbito. Foi, assim, alçado ao topo da doutrina e jurisprudência, como príncipe e modelo da justiça romana.

No entanto, faleceu o imperador Séptimo Severo, em 4 de fevereiro de 211, durante campanha na Bretanha, em cuja companhia se achava Papiniano. Então, recomendou-lhe que cuidasse de seus dois filhos, Caracala e Geta, mediando entre os dois. Foi, porém, infrutífero seu esforço porque Caracala assassinou o irmão e seus seguidores no ano seguinte, tornando-se imperador. Em seguida, ordenou a Papiniano que fizesse um discurso perante o Senado justificando o fratricídio. O sábio jurisconsulto negou-se veementemente, dizendo ao imperador: “É mais fácil cometer um fratricídio do que justificá-lo”[5].

Então, olhando nos seus olhos, friamente ordenou Caracala a execução imediata de Papiniano, que sucumbiu ao mundo dos justos em março de 212, da Era Cristã.  Preferiu morrer do que trair seus princípios. Mas a posteridade o consagrou como o mais autorizado intérprete da jurisprudência clássica romana em um momento em que o direito romano se convertia em direito universal, definindo os conceitos que formam a base do direito ocidental. Com ele a jurisprudência clássica alcançou o máximo esplendor. É a razão dessas notas.

 


[1] REGINALDO MIRANDA, advogado com mais de 30 anos de efetiva atividade profissional, cofundador e ex-presidente da Associação de Advogados Previdenciaristas do Piauí (AAPP), ex-membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI, em duas gestões, ex-presidente da Academia Piauiense de Letras, em dois biênios. Autor de diversos livros e artigos. Possui curso de Preparação à Magistratura (ESMEPI) e de especialização em Direito Constitucional e em Direito Processual (UFPI-ESAPI).

[2] BUZAID, Alfredo. A Escola de Direito de Beirute: Berytus ... Legum Nutrix. In: Revista de História, v. 32, n. 66, p. 309-337. São Paulo: USP, 1966.

[3] C. Th. 1.4.1. Perpetuas prudentium contentiones cruere cupientes Ulpianis ac Pauli in Papinianum notas, qui, dum ingenii laudem sectantur, nom tam corrigere cum, quam  depravare maluerunt, aboleri praecipimus – 28 sept. 321/4.

 

[4] FUENTESECA, Margarita. Papiniano y Ulpiano, dos símbolos de la prudentia iuris. In: Grandes juristas, mártires por la justicia. Ángel Sánchez de la Torre e Margarita Fuenteseca (Org.). Madrid: Real Academia de Jurisprudencia e Legislación de España, 2018.

[5] Em latim: Non tam facile parricidium excusari posse quam fieri.