Paisagem, vida e linguagem em Enéas Athanázio: uma leitura de O campo no coração (4)
Por Cunha e Silva Filho Em: 22/04/2012, às 11H15
Vejamos, agora, conforme anunciei neste estudo linhas atrás, um resumo-temático de cada crônica do volume em estudo:
a) Um advogado, por dever de ofício, visita um frigorífico e qual não é sua surpresa quando se defronta com uma cena, segundo ele, bárbara, desumana, uma cena que jamais gostaria de ver de novo e que o impediu, durante muito tempo, de comer frango ou qualquer ave : o modo como os frangos eram abatidos por meios mecânicos, “...uma espécie de navalha de lâmina larga e afiadíssima que ia decepando aqueles pescoços de aves...” Para quem ali trabalhava não era mais do que um ato rotineiro (crônica “A degola”, p. 20);
b) Um narrador recorda as peripécias de um ladrão que se tornou célebre por furtar sem nunca ser flagrante. (crônica “O misterioso João da Banha”);
c) A comovente história de um cãozinho de rua maltratado e amedrontado encontrado por um jovem que dele cuidou carinhosamente. Com a morte do jovem pouco tempo depois, cãozinho logo morreu provavelmente de saudade de quem tanto se importou com ele (crônica “Pulga”);
d) Um advogado, em viagem para tratar de assunto de sua área, se encontra numa cidade do Paraná. Encontra um escrivão bairrista para quem a cidade era u exemplo de progresso. Ironicamente, o advogado percebe que, para voltar no mesmo dia, não encontra condução. O lugar não era assim para ele tão “progressista. Termina por aceitar voltar para casa de carona num caminhão que lhe arranjaram (crônica “Progresso trepidante”);
e) Um curioso diálogo entre um personagem-narrador de primeira pessoa, em viagem de negócio, e um catador de lixo sem teto e vivendo em trema privação em face do surgimento de novos e números catadores de lixo.O velho catador lhe pede algum dinheiro e o personagem o atende, porém não o atende quando o catador lhe pede um lugar para dormir. No desfecho da crônica se econtra, a meu ver, um dos sentidos mais profundos do relato: nossa costumeira incapacidade de sermos humanos por completo ( crônica “Moro onde não mora ninguém”). Vê-se que o título da crônica é o mesmo de uma canção popular do compositor e cantor Agepê (1942-1995). Só que na canção, o personagem pobre tem sua casinha num morro, ao contrário do catador de lixo da crônica de Ênea Athanázio, que, por casa, só tem a rua.
f) Um personagem de nome altissonante, desses nomes cujos portadores deveriam ser dignos de se tornar famosos como é comum encontrar-se na escolha que pais de famílias dão a seus filhos, muitas vezes nomes de figuras históricas nacionais ou estrangeiras que, muitas vezes, por serem famosas pelo lado da crueldade, lhes vão causar sérios constrangimento sociais pelo resto da vida, como Mussolini, Adolf Hitler, Nero, Calígula etc. No caso da crônica o nome do personagem, Júlio César de Oliveira e Cruz, seria um desses nomes destinados a vitoriosos na vida.Não foi o caso do personagem da crônica que foi perdendo parte do nome cada vez que, em carta, pedia ao cartório de sua cidade uma certidão para sua matrícula na série seguinte. Sentiu-se mesmo um ser sem identidade. Ora, no último pedido para se fazer a correção, verificou que ainda estava mais errado o nome. O jeito era voltar à sua cidade e tratar do caso pessoalmente. O que o acontecia era o seguinte. O antigo tabelião tinha um estranho costume de anotar numa das paredes, conforme afirmara a filha dele aos risos. Isso o velho tabelião fez até se aposentar, confirmou ela. Antes de ela assumir a direção do cartório, um interino substituíra o pai dela e a primeira coisa que fez foi mandar pintar a larga parede branca onde estavam escritos os nomes de antigas anotações para certidões de nascimento, casamentos e óbitos. O que era “engraçado para a filha do tabelião era justamente flagelo para o jovem de nome pomposo. Não tendo o cartório mais os registros de tanta gente, era o própria pai que de memória ditava à filha o nome da pessoas que necessitavam de uma certidão. A desfaçatez dela era tanta que afirmara ter sido falha de memória do pai para lembrar do nome todo do jovem. A ironia expressa na crônica se dirige à incompetência dos serviços públicos e da burocracia brasileira(crônica O nome, Ah1, O nome”);
g) Um narrador, em primeira pessoa, relata uma história ouvida de um amigo, um verdadeiro repositório de histórias, Natan Zilef, de apelido Beduíno, muitas delas, segundo ele, criadas pela sua “portentosa imaginação”. O relato faz referência a um colega daquele contador de histórias que, ao contrário de tantos outras colegas dele, com os quais manteve sempre laços de amizade, desapareceu na multidão. Era um jovem de bom caráter, prestativo até ao sacrifício pessoa, além de ser excelente aluno de um internato do qual Natan era também aluno. Não houve tentativa que conseguisse localizar o antigo colega . Ninguém podia dizer o que fim levara o aplicado aluno. Certa feita, anos depois, indo à capital e hospedando-se num hotel, no saguão pegou um jornal para ler e deu com a notícia de um faquir que na cidade se encontrava passando dias e dias “sem comer e beber” numa exposição publica, Sem outro coisa a fazer, decidiu-se a fazer uma visita ao faquir. Qual não fooi seu espanto quando, observando bem o semblante do faquir, descobriu que se tratava do antigo e competente colega do internato que havia sumido do convívio de todos. Notou ainda que o faquir, com um ar de alegria, o reconhecera também. Perplexo com o que a vida surpreendia nas suas malhas de caminhos e descaminhos como aquele colega, que tudo tinha para ser uma pessoa bem- realizada, graças a seus dotes e caráter, chegara àquela situação. (crônica “O colega desaparecido”);
h) Um narrador-personagem vai morar por algum tempo uma cidade e, de repente, percebe que tem a sensação de estar sendo vigiado por alguém ou alguma coisa. Não atinha com o que seja. Pergunta a outras pessoas e todos lhe dão uma explicação diferente para o caso. Instaura-se por completo o mistério. O estranho era que a sensação de estar sendo observado acabava logo que ele saía dos marcos da cidade. Uma noite, o narrador e sua família foram dar um passeio pela cidade. Era perto do Natal. A cidade estava iluminada. Conheceram diferentes locais. Ao subirem um morro da cidade, onde havia uma igreja protestante, percebeu um “reflexo de iluminação e descobriu afinal, o enigma do mistério: no centro da cidade, vista do alto, posicionava-se sobranceira a catedral com duas torres enormes parecendo cortar o céu. Ora, vistas dali, duas luzes vermelhas vindo das torres, semelhavam dois “olhos vigilantes,” os quais, para o narrador, ainda lhe pareciam as amedrontadoras “teletelas de George Orwell,” célebre e controvertido escritor inglês, romancista, crítico e panfletário nascido, porém, na Índia, em 1903 e falecido em 1950, autor dos conhecidos Animal Farm (1945) e 1984 ( 1949). . As telelas, em inglês telescreen, de que o narrador fala na crônica aludem a um dos aspectos relevantes da ficção de George Orwell no romance 1984, ou seja, representam a força da telecomunicação empregando uma televisão e uma câmara, instaladas em cada residência, a fim de o governo, o Big Brother, poder se comunicar com a comunidade e, por outro lado, estar vigiando os cidadãos e controlá-los. (crônica “Olhos vigilantes”);
i) Um relato de um jovem de comportamento estranho, com feições germânicas, alto, louro, sempre na escola, um internato, estava isolado, mesmo no recreio. Seu apelido, por seu físico, era Girafa. Figura misteriosa, ninguém sabia ao certo em que série estava, mas concluía-se -se que provavelmente era aluno das séries mais adiantadas. Anos depois, o narrador o encontrara. Estava bem mais velho. O narrador, acompanhado de uma pessoa, perguntou se ela sabia por acaso quem era aquele ex-aluno do velho internato. Foi então que esclareceu o mistério: Girafa foi um aluno que mais tempo passou pela escola, pois demorava três ou quatro anos numa mesma série (crônica “Girafa”);
j) O comovente relato histórico de uma bela e destemida jovem que desejava ser combatente, em igualdade de condições com os soldados, na Guerra do Paraguai. Seu nome: Jovita. À semelhança, mutatis mutandi de Santa Joana d’Arc, a “donzela de Orléans, combatente na Guerra dos Cem Anos, Jovita foi vítima de duas decepções dilacerantes, ser impedida de enfileirar-se como combatente e ser vítima da ilusão de ter sido amada por um engenheiro inglês que conhecera no Rio de Janeiro e que a deixara para voltar à Inglaterra. (crônica " Os desencantos de Jovita"). (Continua)