Padre Joaquim Damasceno Rodrigues
Por Reginaldo Miranda Em: 02/05/2022, às 20H19
Reginaldo Miranda[1]
Quando veio ao mundo o padre Joaquim Damasceno Rodrigues, em julho de 1826, na freguesia de Nossa Senhora das Mercês da povoação de Jaicós, o Piauí ainda curava as feridas da Guerra da Independência. E recompunha-se das diligências envidadas para conter atos de adesão à Confederação do Equador, revolta de caráter republicano que estourara dois anos antes em Pernambuco, espalhando-se pelas províncias vizinhas, inclusive pelos termos de Parnaíba e Campo Maior. Era uma província com quase noventa e cinco mil habitantes, dos quais setenta por centos eram livres e os demais escravos, fora alguns rebotalhos indígenas que vagavam pelas matas das cabeceiras do rio Piauí e confins de Parnaguá. A educação era deficiente, sobressaindo-se a escola particular de Boa Esperança, dirigida pelo afamado padre Marcos de Araújo Costa, primo-irmão de seu pai. Aliás, era também a província dirigida por outro primo-irmão de seu pai, Manuel de Sousa Martins, o visconde da Parnaíba. O Brasil vivia uma nova era com a consolidação de sua independência política e outorga da Carta Constitucional de 1824.
Com esses novos rumos políticos sua família ascendeu ao centro do poder na província. Aliás, seus ancestrais estão entre os primeiros colonizadores de nosso sertão; entre os fundadores dos primeiros currais de nossos vales ribeirinhos; entre os grandes fazendeiros do período colonial e imperial. Disse Pereira da Costa, que, em 1719, uma bandeira de paulistas adentrou no território piauiense e “estabeleceram diversas fazendas de criação de gado vacum e cavalar nas cabeceiras dos rios Piauí e Gurgueia”[2]. É fato que entre esses paulistas estava seu trisavô Hilário Vieira de Carvalho, um típico bandeirante paulista, que integrou uma bandeira tardia, sendo descendente de portugueses com algum traço de sangue tupiniquim. Existe declaração de “ouvir dizer”, ter ele “uma pequena parte de mulato, porém creio ser tão pouco que era imperceptível”[3]. Estabeleceu sua principal fazenda nas planícies que margeiam uma volta do rio Canindé, daí ser conhecida como Fazenda da Volta, ou a Volta. Com ele vieram os genitores, José Vieira de Carvalho e Maria Freire da Silva, conforme asseveram diversos genealogistas. Naquele mesmo ano também entram na região como arrematantes dos dízimos reais, o casal do capitão-mor Manuel do Rego Monteiro e dona Maria da Encarnação, ele provavelmente natural do reino e ela da vila da Cachoeira, no Recôncavo da Bahia. Foi dali que partiram para o Piauí, em companhia de um sócio. Hilário iria casar-se com uma filha desse último casal, de cujo consórcio geraria mais de uma dezena de filhos, entre os quais dona Domiciana Vieira de Carvalho, que fora casada com o português Valério Coelho Rodrigues[4], tudo gente abastada, senhora de muitos rebanhos de gado vacum e cavalar, fruto do pioneirismo e do trabalho diuturno.
Foi filho desse último casal o fazendeiro e político José Rodrigues Coelho, estabelecido com seus currais na fazenda Carnaíbas, onde tinha sua morada, situada nas cabeceiras do rio Canindé. Também criava em outras fazendas adjacentes que se estendiam até o divisor de águas com a capitania de Pernambuco, a saber: Riacho do Meio, Itans, Chapéu. Pocinho e Curral Novo[5]. Ocupou diversos cargos por eleição popular e nomeação do governo, entre os quais: vereador do senado da câmara da cidade de Oeiras e, por força do cargo, juiz ordinário e membro de uma junta trina de governo do Piauí, em janeiro de 1790. Em 14 de março de 1809, foi nomeado e assumiu o cargo de diretor do aldeamento indígena dos índios Jaicós, em cujo exercício ainda se encontrava em 23 de março de 1811[6]. Foi casado com dona Cristina Maria de Jesus, natural da freguesia de Natuba, hoje Nova Soure, na Bahia. Do consórcio gerou 16 filhos, entre os quais João Damasceno Rodrigues (1791 – 24.4.1873), criador nas fazendas Carnaíbas e Curral Novo, militante no partido conservador. Casou-se em 10 de novembro de 1811, com a prima Joaquina Rodrigues de Andrade, filha de Manoel Rodrigues Coelho, comandante militar do distrito do rio Canindé[7] e Maria Aldonça Micaela Freire de Andrade[8], moradores e criadores na fazenda Paulista. São os pais do padre Joaquim Damasceno Rodrigues.
O padre Joaquim Damasceno Rodrigues foi batizado em 30 de setembro de 1826, com dois meses de idade.
Chegando à idade escolar foi mandado para estudar na escola de Boa Esperança, onde fez o curso primário sob os cuidados do abnegado mestre, padre Marcos de Araújo Costa. Em seguida, ávido por conhecimento, foi mandado para a cidade da Bahia, em cujo seminário ingressou com “sumo desejo de ascender ao estado sacerdotal”, diria mais tarde em petição[9]. Alcança as ordens menores e sacras em 1847, quando procedeu-se ao seu processo de habilitações de genere.
Pouco depois, ordenando-se sacerdote retorna ao termo de Jaicós, onde assume a freguesia de Nossa Senhora das Mercês, em sucessão ao seu preceptor, o padre Marcos, da Boa Esperança, falecido em 1850. Fixa residência em meio à extensa parentela, na fazenda Paulista, que herdara de seus progenitores. E desde então, por mais de trinta anos, foi o vigário colado daquela freguesia, conduzindo com verdadeira devoção o rebanho católico espalhado pelas diversas fazendas e povoações.
Foi também um padre fazendeiro, como a imensa maioria dos sacerdotes piauienses daquele período. Multiplicou as fazendas que herdara, construindo a maior fortuna daquela freguesia, segundo apurou a mestranda Mônica Valéria Monteiro de Carvalho, em sua dissertação de mestrado, a que denominou Senhores do Gado: relações de mandonismo no sertão do Piauí: 1874 – 1888. Depois de analisar os autos de inventários daquela comarca, ela assim concluiu:
“O Padre Joaquim Damasceno Rodrigues concentrava a maior quantidade de terras da região de Jaicós, correspondente em bens de Raiz à importância de 10 contos 631 mil 809 reis, onde pastava o maior rebanho bovino da região com 1.064 cabeças de gado de toda sorte, vigiadas por 11 escravos e muitos agregados, exercendo o maior poder econômico da região. Somando-se a isso sua posição de pároco, Padre Joaquim Damasceno Rodrigues era o homem mais ilustre e poderoso da pequena vila de Jaicós. Essa quantidade de bens de raiz equivalia a uma grande quantidade de propriedades dentre as quais estavam inclusos sítios, posses de terras e fazendas. No inventário de Pe. Joaquim Rodrigues estão relacionadas 13 fazendas de grande e médio porte, muitas dessas fazendas fracionadas em várias porções de terras”[10].
Em outro trecho consta referência à análise de “7 inventários, onde o de maior monte-mor é o do Padre Joaquim Damasceno Rodrigues, 43 contos 900 mil e 809 reis”[11].
Porém, esse dedicado sacerdote piauiense deu sequência ao trabalho do Padre Marcos, a quem tinha como referência, não somente na atividade pecuária e na condução espiritual do rebanho católico daquela freguesia, como também no campo educacional, abrindo escola em sua casa situada na fazenda Paulista. Alfabetizou uma legião de alunos, sendo o mais famoso deles, o jurista Antônio Coelho Rodrigues, seu sobrinho e afilhado, que faria carreira notável no parlamento e na cátedra. Ensinava em sua escola e às próprias custas, rudimentos das primeiras letras e alguns princípios de instrução secundária, diria em 1851, Simplício de Sousa Mendes, diretor do Liceu Piauiense[12]. “Nos anos de 1855 e 1856 a escola do padre Joaquim Damasceno Rodrigues passou a funcionar na vila de Jaicós atendendo 31 (trinta e um) meninos que ali assistiam aulas de filosofia, francês e latim”[13].
Militou na política, filiando-se ao partido conservador, por cuja legenda foi eleito deputado provincial para a legislatura iniciada em 1852.
Em 1865, exortou os paroquianos e agenciou voluntários para defender a pátria na Guerra do Paraguai[14].
Durante sua atividade apostolar muito lutou para emancipar sua povoação de Paulista, deixando em testamento para patrimônio da capela de Nossa Senhora dos Humildes, a casa de sótão em que morava, assim permanecendo “até que se realizasse a passagem da freguesia, e dada a hipótese de passar a vila, ficará dita casa considerada como de câmara”[15].
Foi administrador dos bens patrimoniais da capela de N. Sra. dos Humildes[16], situada na povoação de Paulista.
Felizmente, mesmo depois de seu óbito foi sua luta foi coroada de êxito, alcançando a povoação os predicados de freguesia pela lei provincial n.º 1078, de 13 de julho de 1883, sendo canonicamente instituída em 14 de agosto de 1888. A emancipação política veio com a lei provincial n.º 1137, de 20 de julho de 1885, que elevou a povoação à categoria de vila e município, solenemente instalado em 25 de dezembro daquele ano. Em virtude de lei federal que vedava a existência de mais de uma municipalidade com a mesma denominação, foi promulgado o decreto-lei estadual n.º 754, que alterou a denominação para Paulistana.
Tendo adoecido gravemente de ulceração cancerosa no estômago, foi socorrido pelo médico José Ignácio da Silva, da cidade de Juazeiro, na Bahia, que fora levado às pressas para a fazenda Paulista. No entanto, dado o estado avançado da doença, não resistiu ao tratamento vindo a falecer no dia seguinte, 24 de setembro de 1882, em pleno gozo de suas faculdades mentais. Possuía 56 anos de idade. Deixou testamento que foi objeto de controvérsia por alguns familiares[17].
Foi o padre Joaquim Damasceno Rodrigues um típico filho da aristocracia rural piauiense, não ficando, porém, inerte aos problemas de sua época. Soube unir espontaneamente seu destino individual ao destino da sociedade, integrando-se ao meio e o influenciando através da catequese e da educação. Sábio discípulo do benemérito de Boa Esperança, também foi protagonista de sua época com as aulas ministradas nas escolas de Paulista e Jaicós. Por essa razão, merece figurar nessa galeria de notáveis.
[1] REGINALDO MIRANDA, advogado especialista em direito constitucional e em direito processual, foi membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI, da Comissão de História, Memória, Verdade e Justiça, assim como cofundador e presidente da Associação de Advogados Previdenciaristas do Piauí. É membro da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.
[2] COSTA, F. A. Pereira da. Cronologia histórica do Estado do Piauí. Vol. I. 3ª Ed. Coleção Centenário 17. Teresina: APL, 2015.
[3] Autos de habilitação de genere de João Damasceno Ferreira. Câmara Eclesiástica do Maranhão. Ano 1785.
[4] Autos de habilitação de genere de João Damasceno Ferreira. Câmara Eclesiástica do Maranhão. Ano 1785.
[5] AHU. ACL. CU. 016. Cx. 23. D. 1198, 1199 e 1200.
[6] Arquivo Público do Piauí. Cod. 161. P. 34/34v; 42v; 104
[7] Nomeado por ato de 14.3.1809. Era irmão de José Rodrigues Coelho, ambos filhos de Valério Coelho Rodrigues e Domiciana Vieira de Carvalho.
[8] Filha de Diogo Antônio Freire de Andrade e Thomazia da Silva.
[9] Autos n.º 1912, de habilitação de genere do ordinando Joaquim Damasceno Rodrigues. Câmara Eclesiástica de São Luís do Maranhão – Ano 1847.
[10] CARVALHO, Mônica Valéria Monteiro de. Senhores do Gado: relações de mandonismo no sertão do Piauí: 1874 – 1888. Dissertação de Mestrado. In: COSTA, Elias. Padre Joaquim Damasceno Rodrigues e sua fortuna, Jaicós 1874 a 1888. Diário GM, postado em 27.11.2020.
[11] CARVALHO. Op. cit.
[12] Escolas particulares derramadas pelas diversas vilas, povoações e lugarejos do Piauí: 1770 – 1860. VI Congresso Nacional de Educação. Autores: Maria Alveni Barros Vieira, Adauto Neto Fonseca Duque e Vanessa Fortaleza de Sousa.
[13] MENDES, Simplício de Sousa. Relatório do diretor do Leu. Ano 1851. In: Escolas particulares derramadas pelas diversas vilas, povoações e lugarejos do Piauí: 1770 – 1860. VI Congresso Nacional de Educação. Autores: Maria Alveni Barros Vieira, Adauto Neto Fonseca Duque e Vanessa Fortaleza de Sousa.
[14] A Imprensa, 2.12.1865.
[15] A Época, 9.6.1883.
[16] O Paiz, 14.3.1878.
[17] A Época, 9.6.1883. A Imprensa, 14.10.1882.