Igreja do antigo Seminário de Belém de Cachoeira, onde morou e estudou o biografado por cerca de vinte anos.
Igreja do antigo Seminário de Belém de Cachoeira, onde morou e estudou o biografado por cerca de vinte anos.

Reginaldo Miranda[1]

O sistema patriarcal caracterizou o processo de colonização do sertão nordestino, transportado que fora da Europa, quando já se encontrava em fase de desagregação. Aliás, esse sistema remonta às tribos hebraicas, nas quais o patriarca exercia o mando das diferentes esferas de sociabilidade. Foi transferido para a América em face da estrutura econômica sob a qual o europeu aqui se estabeleceu, centrada na colonização territorial, na violência contra os povos indígenas, no latifúndio e na mão de obra escrava.

A religiosidade estava em todas as esferas, como dependência do sistema patriarcal, legitimando moralmente a ocupação da terra e sua exploração econômica. Eram principalmente os padres responsáveis pela educação doméstica, transformando-se em padrinhos da meninada, gente de casa, aliados do sistema patriarcal, no dizer de Gilberto Freyre[2]. Igreja, Estado e família estavam interligados. Então toda família patriarcal desejava ter um filho padre, chegando a designar um deles ainda na meninice.

A família Vieira de Carvalho era uma típica família patriarcal do Sertão de Dentro. Hilário Vieira de Carvalho, seu chefe era um paulista que aqui chegou ainda jovem, no verão de 1719, integrando uma tardia bandeira colonizadora. Fixou-se no vale do rio Canindé, onde chantou a caiçara de muitos currais, amanhando boiadas. Pouco depois de sua chegada casou-se com Maria do Rego Monteiro, filha de um casal de fazendeiros e arrematantes dos dízimos reais que também chegou naquele período. O capitão-mor Manoel do Rego Monteiro, português e sua esposa Maria da Encarnação, baiana, eram oriundos da vila de Cachoeira, na Bahia, onde matrimoniaram-se.

Na fazenda a Volta, situada no vale do rio Canindé, Hilário e Maria construíram casa, curral e roçados, criando gado vacum e cavalar. Contavam com o trabalho de vários escravos. Tornaram-se abastados. Também aumentaram a família, durante a idade fértil nascendo menino quase todo ano, ao todo 17 filhos. Um deles foi o padre Custódio Vieira de Carvalho, nascido e batizado na fazenda paterna, em 2 de outubro de 1730, pelo padre Antônio Rodrigues Tavares. Na pia batismal recebeu por padrinhos o reverendo doutor Antônio Henriques de Almeida Rego e sua tia materna Josefa do Rego, esposa de Gaspar Pereira de Araújo. No entanto, em face de desorganização nos arquivos eclesiásticos esse batizado somente foi transcrito no livro paroquial em 26 de junho de 1736, pelo padre coadjutor André da Silva, quando dele precisou o batizando para matricular-se na Bahia.

Na casa paterna foi desasnado e aos 6 anos de idade mandado para a vila de Cachoeira, na Bahia, matriculando-se no Seminário de Belém. Certamente, pesou nessa escolha ser a terra da genitora. Esse Seminário fora fundado em 1686, pelo padre Alexandre de Gusmão, da Companhia de Jesus. Aliás, os jesuítas foram exímios educadores.   

Sobre o tempo de sua ida para o Seminário de Belém da Cachoeira, ouçamos a voz dos contemporâneos em depoimentos prestados perante o vigário geral André da Silva[3], na cidade de Oeiras, em 9 de junho de 1756, tempo em que o biografado contava 26 anos de idade e desejava ordenar-se:

Luiz Mendes Vieira, homem branco, casado, morador na sua fazenda Talhada, onde vive de criar gado, de 56 anos de idade, disse:

“... não sabia fosse de maus costumes, menino fora para o Seminário de Belém, Arcebispado da Bahia, onde até agora tem assistido e morado, e que ele testemunha pouco ou nenhum conhecimento tem do dito ordinando, só sim conhece muito bem seu pai, morador na sua fazenda da Volta, ribeira do Canindé, distrito desta freguesia de Nossa Senhora da Vitória e mais não disse de todos os interrogatórios”.

Francisco da Silva Ribeiro, homem branco, casado, morador na sua fazenda da Povoação, onde vive de criar gados, de 64 anos de idade, disse:

“que pouco conhecimento tinha do ordinando Custódio Vieira de Carvalho, por este ir menino para o Seminário de Belém, Arcebispado da Bahia, onde até agora tem assistido e assiste, mas que este por seus pais e avós, assim maternos como paternos, era cristão velho e por tal tido e havido e reputado,”;

No entanto, essa testemunha acrescentou de forma indiscreta, por ter “ouvido dizer”, uma maledicência para os padrões da época e para prejuízo do ordinando, a qual disse não “poder jurar na realidade”. Foi um fato isolado, não corroborado pelas demais testemunhas e, por isso mesmo, rechaçado pelos jesuítas:

“e que só ele testemunha tinha ouvido dizer que o pai do dito ordinando Hilário Vieira de Carvalho, inda tinha alguma geração de mulato, e que também tinha ouvido dizer que o queriam cativar, mas que ele testemunha não sabia as razões fundamentais de tais dizeres, nem tinha conhecimento de seus troncos para o poder jurar na realidade, e que não sabia tivesse o ordinando impedimento mais algum nos declarados e conteúdos no mandado, e que era certo ser o ordinando natural desta freguesia e nela batizado, filho legítimo dos pais que dissera e mais não disse e o que dito tem e sabe pela sobredita razão, e assinou seu juramento com o dito reverendo vigário-geral depois de lhe ser lido”.

João de Souza, homem branco, viúvo, morador na vila da Mocha, depois cidade de Oeiras, onde vive de seus bens, de 70 anos de idade, disse:

“... a razão de ter pouco ou nenhum conhecimento dele, era por ele ordinando menino ter ido para o Seminário de Belém, Arcebispado da Bahia, tratar seus estudos, onde inda hoje se acha, mas que ele testemunha julga por si e seus pais é cristão velho e de limpo sangue e por tal reconhecido, inda que dos seus troncos e origens nenhum conhecimento tem ele testemunha por não serem oriundos desta freguesia, e que não sabe se tinha o dito ordinando impedimento algum dos conteúdos e declarados no mandado e interrogatórios”.

Pedro Cardozo Pereira, homem branco, casado, morador nos arrabaldes da vila da Mocha, onde vive de seus bens, de 50 anos de idade, disse ser Custódio:

“... assistente desde menino no Seminário de Belém e cidade do Arcebispado da Bahia, tratando seus estudos, e que sabe ele testemunha que o dito ordinando por seus avós maternos é de limpo sangue tido e havido por cristão velho, de cujos troncos teve ele testemunha largo conhecimento, e que pela parte paterna não tinha ele testemunha conhecimento algum mais do que do pai do ordinando Hilário Vieira de Carvalho e que nunca ouvira tivesse fama ou rumor de judeu ou cristão novo, antes sempre ouvira ser ele de limpo sangue, e que não sabia que o dito ordinando tivesse impedimento algum dos conteúdos e declarados nos interrogatórios do mandado por ser há anos ausente desta freguesia no Arcebispado da Bahia”.

Antônio Fernandes de Vasconcelos, homem brando, solteiro, morador nos arrabaldes da vila da Mocha, onde vive de seus bens, de 60 anos de idade, disse:

“que conhecia muito bem o ordinando Custódio Vieira de Carvalho, hoje morador e assistente a bastantes anos no Arcebispado da Bahia, tratando de seus estudos, ..., era natural desta freguesia e filho legítimo de Hilário Vieira de Carvalho e Maria do Rego, moradores nesta freguesia, e por tal tido e havido e de todos reputado, e que não sabia tivesse impedimento algum dos conteúdos e declarados no mandado pelo qual deixasse de ser promovido às ordens que pretendia”.

Aquela maledicência de Francisco da Silva Ribeiro não foi sem propósito, visando cabalmente prejudicar o seminarista Custódio Vieira de Carvalho, sem dizer a fonte e, por isso mesmo, sem “o poder jurar na realidade”. Nenhuma outra testemunha corroborou seu dito. Naquela época a educação jesuítica tinha caráter aristocrático, voltando-se para formação das elites, excluindo as camadas sociais inferiores, judeus, índios, negros, mulatos e mestiços. Longe iam os primeiros dias em que a educação dos jesuítas tinha caráter democrático e de congraçamento de raças.  O Regimento do Seminário de Belém deixa evidente a dimensão elitista e excludente de seu projeto pedagógico:

“Dos que pretendem entrar no Seminário, se hão de tirar as informações (ainda que não com aquela exação, que se costuma, quando se trata de admitir alguém na Companhia), acerca dos costumes, e da pureza do sangue: excluindo totalmente os que têm qualquer mácula de sangue judeu, e até o 3º grau inclusive os que têm alguma mistura de sangue da terra, a saber, de índios ou de negros mulatos ou mestiços[4].

De toda sorte, não foi levada em consideração aquela informação descontextualizada de Francisco da Silva Ribeiro, sendo Custódio Vieira de Carvalho julgado apto para prosseguir nos estudos e ordenar-se sacerdote, como pretendia. Era seu genitor o colono mais abastado da bacia do rio Canindé, onde comprava terras e situava fazendas com gado vacum e cavalar, dispondo da mão-de-obra de dezenas de escravos.

Ordenado sacerdote no final do ano de 1756, depois de 20 anos de estudos naquele Seminário, o padre Custódio Vieira de Carvalho retorna à fazenda natal para amparar a inconsolável mãe, que se achava viúva e auxiliar os irmãos na administração das fazendas. Concluíra seus estudos em uma das últimas turmas daquela instituição de ensino, cujas portas seriam cerradas em 1759, devido à expulsão dos jesuítas do Brasil pelo Marquês de Pombal.

Interessante é que o seminarista Custódio nem sempre usou por completo o apelido paterno, pois em 9 de março de 1740, foi agraciado pelo governador do Maranhão com uma extensa sesmaria em conjunto com seu genitor Hilário Vieira de Carvalho e os irmãos Floriano Fecundo de Carvalho, José Vieira Escobar e um André Moreira de Sousa[5]. Ali aparece o nome de Custódio Fecundo Monteiro. Mais tarde, ele e os irmãos alteram os nomes familiares.

Por outro lado, parece que Custódio não era uma das mais arraigadas vocações sacerdotais, tendo rejeitado ofertas para assumir diversas freguesias. Preferiu aceitar o cargo de coadjutor na freguesia de Nossa Senhora da Vitória do Sertão do Piauí, onde nascera, porque para esse exercício poderia permanecer morando em sua fazenda, ao lado da genitora e dos demais familiares. De fato, herdou a principal fazenda paterna, a Volta, onde residiu até o fim de sua vida, cuidando da administração do rebanho. Era, de fato, um abastado fazendeiro.

Na gestão do espólio de seu pai, em meados da década de 1760, em conjunto com a mãe e o irmão Floriano do Rego Monteiro apresentam recibos e solicitam aprovação das contas do de cujus como contratante dos dízimos reais no triênio 1740 a 1742[6].

Nesse tempo, morava na fazenda a Volta em companhia da genitora Maria do Rego Monteiro, então viúva e dos irmãos Floriano do Rego Monteiro, Jerônimo do Rego Monteiro, José Vieira de Carvalho, este com a esposa Maria Pereira da Silva; Francisco Vieira de Carvalho, Eugênio Vieira de Carvalho, Marcos Vieira de Carvalho e Quitéria Vieira de Carvalho. Também, com eles moravam na fazenda 17 escravos e 12 escravas de todos eles, uma delas casada com um índio por nome José; mais um índio por nome Fabiano e os forros Félix Rodrigues, Francisco Roque e Antônio Manoel da Silva. Era, pois, uma pequena povoação situada no vale do rio Canindé, com casa de oração onde se celebrava a missa dominical.

E nessa lida permaneceu até o falecimento antes do ano de 1785, com pouco mais de 50 anos de idade, quando deu alma ao Criador, deixando um nome honrado e uma memória imperecível. Foi um dos vetustos vigários piauienses.

 

 


[1] REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor, cofundador e ex-presidente da Associação de Advogados Previdenciaristas do Piauí (AAPP), foi membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI, em dois biênios e presidente da Academia Piauiense de Letras, também em dois biênios. É vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. Autor de diversos livros e artigos. Possui curso de Preparação à Magistratura (ESMEPI) e de especialização em Direito Constitucional e em Direito Processual (UFPI-ESAPI). Contato: [email protected]

[2] FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. - 51ª ed. São Paulo: Global, 2006.

 

[3] Autos cíveis de justificação de vita e moribus do Ordinando Custódio Vieira de Carvalho. Câmara Eclesiástica. São Luiz do Maranhão, 1756.

[4] Regulamento do Seminário de Belém da Cachoeira. In: LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006, Tomo V, p. 1802-183. Apud.: SILVA JÚNIOR, Alfredo Pinto da. O Seminário de Belém da Cachoeira: educando os filhos dos principais em santos e honestos costumes (1686 -1759). Programa de Pós-Graduação em História. Salvador: UFBA, 2016.

 

[5] AHU. ACL. CU 009. Cx. 26. D. 2638.

[6] AHU. ACL. CU 016. Cx. 10. D. 583.