Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, pioneiro da literatura piauiense.
Por Reginaldo Miranda Em: 21/05/2018, às 17H51
Reginaldo Miranda[1]
O primeiro piauiense a incursionar no campo da poesia foi Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva. Nascido em 1784, na vila de S. João da Parnaíba, hoje cidade de Parnaíba, no norte do Estado, era filho de Antônio Saraiva de Carvalho e Margarida Rosa da Silva. Apenas completada a idade de seis anos, o que remete ao ano de 1790, os pais lhe mandaram estudar em Portugal, certamente morando na casa de familiares. É que o Piauí ainda não contava com escolas. Sobre esse prematuro afastamento do lar paterno, longe das brincadeiras entre amigos e dos afagos maternos, assim como a sofrida travessia do Oceano, aos dezoito anos de idade ele vai recordar: “Passaram três lustros e mais três anos/Que à estância dos mortais volvi do nada;/Mas bem que ainda não seja adiantada/Minha idade, sofrido hei já mil danos;//Além dos torvos mares desumanos,/Recebi dos meus pais a vida ervada;/E contando anos seis à Pátria Amada/Arrancaram-me os pais com vis enganos”. Vê-se nesse soneto um traço de amargura pelo afastamento da “Pátria Amada” ainda em tenra idade, o que marcou profundamente a sua personalidade. Assim, parece injusta a crítica de que só tinha de piauiense a origem do nascimento. A verdade é que embora gostasse da sua terra, sua formação se dera toda em Portugal.
Em 29 de outubro de 1805, ingressa no curso de Leis da Universidade de Coimbra, onde se forma em 15 de junho de 1810[2]. Segundo o escritor português Camilo Castelo Branco, por esse tempo Ovídio passa a morar, sucessivamente, no Arco da Traição, n.º 13 e depois nos Palácios Confusos, n.º 7 e 65, designações singelas de repúblicas de jovens universitários. Tentando definir esse ambiente dissoluto e boêmio em que morava o estudante piauiense assim informa esse notável escritor português: “Os Palácios Confusos eram um manancial de onde, do bairro alto, rolavam as catadupas da troça na cidade baixa para a Ponte, para o Sansão e para Sophia. O acadêmico estroina, o faceiro, o arruador, o díscolo, o cábula, o poeta guloso e bêbado do outeiro, o perturbador do seráfico sossego dos mosteiros de Chellas e de Sant’ana, arruavam-se nos Palácios Confusos. Da malta dos facínoras, chamada de ‘Carqueja’, o maior número dos sócios foi dali para o degredo e para a forca”. Em outra passagem: “O Ovídio brasileiro compreendia a natureza, como ela especialmente se exibia nos Palácios Confusos. Tangia a viola e compunha as letras de suas cantigas, que ainda vivem e gemem no primeiro livro dos seus versos”[3].
Por fim, arremata Camilo Castelo Branco sobre essa fase boêmia e vida amorosa do bacharelando piauiense:
“Fora dos mosteiros, amou ao ar livre, nove senhora pseudonimamente. Temos Alcina, Ritália, Cecília, Anália, Sendália, Filinta, Marcília, Morília e Lília. Não sei se esta Lília era uma infeliz de quem Castilho, anos depois cantava:
‘Jovem Lília abandonada
‘De seu lindo ingrato amante.
‘O lindo e ingrato seria o bacharel Ovídio, concluída a formatura, se casou com uma que não era nenhuma das nove cantadas. Era de Umbelina Joana de Vasconcellos Almadahim[4], filha do lente catedrático, Francisco M. de Vasconcellos Almadahim, desembargador da Relação do Porto. Esta senhora não vem no rol das suas inspiradoras porque a idade já lho não permitia. Devia orçar pelos quarenta anos, dezessete mais idosa que o esposo. Todavia, bem pode lhe reflorisse com rica imaginação as rejuvenescências que Balzac recomeçou nas mulheres de quarenta anos. Não será descabida a hipótese de que o bacharel Ovídio Saraiva de Carvalho devesse a este casamento a brevidade do seu despacho”[5].
É desse tempo de convivência entre a Universidade e essa malta de boêmios que publica seu primeiro livro Poemas, em 1808. No mesmo período Portugal foi invadido pelas tropas francesas de Napoleão Bonaparte, obrigando fugirem para o Brasil o Príncipe Regente, toda a família real e os demais graúdos da Corte. A apreensão era grande, os pais no distante Piauí se preocupavam com a sorte do filho que persistiu até a conclusão do curso. E mesmo esse ambiente incerto não impediu o casamento do estudante piauiense.
Dessa forma, formado em Leis e casado, pleiteia passaporte para retornar ao Brasil com a jovem esposa, “em face da repentina invasão do inimigo” francês. Esse passaporte para a viagem foi expedido em 9 de outubro de 1810, o descrevendo como “de estatura ordinária, de idade de vinte e quatro anos, rosto redondo e pálido, olhos pardos, (e) nariz regular”. Traz a Informação de que o titular “intenta passar para a cidade do Maranhão na companhia de sua mulher Dona Umbelina Joana Almadahim, para se transportarem para o Piauí”. Retornava, assim, à terra natal depois de quase vinte anos ausente. Vinha rever os pais e apresentar-lhes a esposa, além de assumir o cargo de juiz de fora em Minas Gerais. Era o segundo bacharel em direito piauiense. Nos autos cíveis para a justificação de passaporte foram ouvidas em Coimbra quatro testemunhas: Jerônimo Luís da Silva, solteiro, 27 anos, bacharel em Leis, residente na Rua dos Sapateiros; José Francisco de Medeiros, solteiro, 28 anos, bacharel em Leis, residente na Rua dos Douradores, freguesia de S. Nicolau; Manoel Francisco de Medeiros, solteiro, 18 anos, estudante do curso de Leis da Universidade de Coimbra, residente na mesma Rua dos Douradores; e consta, também, um atestado de sua naturalidade, casamento e intenção de retornar ao Piauí firmado por Joaquim Félix de Menezes, Feliciano Nogueira e o padre José Maria de Sousa Lima, capelão da Brigada Real da Marinha. Todavia, o poeta se declara batizado na freguesia de N. Sra. do Rosário, da dita vila de Parnaíba, em evidente equívoco. É que ao tempo de seu batizado não existia freguesia em Parnaíba, pertencendo esta à freguesia de N. Sra. do Carmo de Piracuruca.
Ao contrário do que muitos apregoam, nos parece que Ovídio de Carvalho e Silva, não trazia muitas saudades de Portugal, onde fora criado longe do aconchego familiar. Os temas ligados à Corte de que trata em sua obra são em face de sua formação toda ela transcorrendo em Portugal, sob a influência de Bocage. Os cantos de seu primeiro livro são as impressões de um jovem estudante de dezoito anos de idade, cujos últimos dois terços da existência se dera longe da terra natal. Os temas abordados, assim como os oferecimentos às autoridades representam a tentativa vã de um jovem bacharel da Colônia para angariar boa colocação na Corte, frustrada com a mudança de rumos na política europeia. Depois de seu regresso não mais retornou a Portugal, fazendo toda a sua carreira profissional no Brasil. Também, demonstrando afeto com a “Pátria Amada” soube cantar: “Os bronzes da tirania/já no Brasil não rouquejam./Os monstros que os escravizam/já entre nós não vicejam”; “Amanheceu finalmente/a liberdade no Brasil/Ah! Não desça à sepultura/o dia sete de abril”.
Em 1821, embora eleito representante do Piauí junto às Cortes Constituintes de Lisboa, não aceita o mandato porque se encontrava radicado no Brasil, sendo substituído pelo padre Domingos da Conceição, que se dirige para o reino. De fato, preferia a vida em seu jovem País.
Em 1811, assumiu o cargo de juiz de fora da comarca de Mariana, em Minas Gerais, de onde passou, em 24 de julho de 1816, para a comarca de N. Sra. do Desterro, atual Florianópolis, em Santa Catarina, acumulando as funções de provedor dos defuntos e ausentes, capelas e resíduos. Por esse tempo, consta que foi precursor do teatro catarinense, promovendo peças por ele escritas nos salões de sua residência. Em 3 de outubro de 1819, foi removido para a província da Cisplatina, onde assumiu o cargo de desembargador da Relação local. Dali foi removido para a corte, assumindo o cargo de desembargador da Relação do Rio de Janeiro, onde se aposentou[6].
Faleceu o desembargador e poeta Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, na cidade de Piraí (RJ), em 11 de janeiro de 1852, com 68 anos de idade. Sobre seu óbito e a longevidade da viúva, anotou satiricamente Camilo Castelo Branco:
“E morreu no braço de D. Umbelina Joana, que o chorou inconsolável a termos de ninguém lhe dar 15 dias de existência. Depois, a viúva do poeta Ovídio, exaurida de lágrimas começou a mirrar-se, a escanifrar-se, a encorrear-se, a pilar-se, a escalar-se, a perpetuar-se como um pergaminho impenetrável à traça dos velhos xilógrafos. No cume da sua saúde, concentram-se-lhe as dores na parte nobre do seu corpo, na alma, enquanto as funções digestivas se faziam com uma harmonia fisiológica cronométrica, desde a deglutição até o derradeiro fenômeno, sem o mínimo sintoma de dispepsia ileocecal; um duodeno salubérrimo, e todas as mais vísceras sobre e subjacentes não deixavam nada a desejar. Quando a viúva chegou aos cem anos, os pernambucanos entraram a espantar-se; depois, mais anos vieram rodando sobre o século, e ela a digerir as tapiocas, os mingaus, e a falar do seu Ovídio, recitando-lhe as líricas com uma toada muito saudosa, e aos olhos vagos, amamóticos no infinito azul. E os pernambucanos assombrados a cuidarem que o profeta imortal Elias se metera no corpo da velha. Até que enfim há poucos meses, em outubro[7] de 1880, D. Umbelina não podendo mais contemporizar com a saudade do seu defunto, feneceu, acabou como as rosas de Malherbe tendo vivido um pouco mais que ‘o espaço de uma manhã’ – cento e treze anos. E ainda há quem diga que as saudades não matam... e depressa!”[8]
Sobre a viúva, D. Umbelina Joanna de Vasconcellos Almadahim, consta a seguinte nota de seu óbito na imprensa de Pernambuco, onde residia;
“Falecimento. – Nesta cidade deu ontem alma ao Criador, vítima de padecimentos crônicos, na avançada idade de 113 anos, D. Umbelina Joanna de Vasconcelos Almadahim, filha legítima do finado desembargador da Relação do Porto e lente catedrático de cânones na Universidade de Coimbra, Dr. Francisco Miguel de Vasconcellos Almadaim e de sua mulher D. Luiza Joanna da Costa Campos.
‘A finada, que nasceu em 1767, era viúva do desembargador Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, que veio para o Brasil em 1811 como juiz de fora da cidade de Mariana, na província de Minas Gerais.
‘Em seu testamento ela deixou livres os dois únicos escravos que possuía”[9].
De seu consórcio deixou o poeta e desembargador Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, um filho: Dr. Ovídio Saraiva de Carvalho[10], juiz municipal de Piraí, no Rio e de direito, em Pernambuco, prematuramente falecido[11].
Conforme dissemos, o poeta Ovídio Saraiva estreou na poesia com 18 anos de idade, depois reunindo-as em volume com o título Poemas (Coimbra, 1808), que publicou com 24 anos. Participando ativamente das manifestações patrióticas estudantis que rechaçavam a invasão francesa, publicou: Ode pindárica e congratulatória ao Príncipe, à Pátria e à Academia pela restauração do Governo Legítimo (Coimbra, 1808); Narração das marchas feitas pelo corpo acadêmico, desde 21 de março, quando saiu de Coimbra, até 12 de maio, sua entrada no Porto (Coimbra, 1809) e Os sucessos da restauração do Porto (Coimbra, 1812). De retorno ao Brasil, publicou: O patriotismo acadêmico (Rio de Janeiro, 1812); O pranto americano (Rio de Janeiro, 1812); O amigo do rei e da nação (Rio de Janeiro, 1821); As saudosas cinzas do Sr. João de Castro Mello, Visconde de Castro (1821); Considerações sobre a legislação civil e criminal do Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1837); Heroídes de Olímpia e Herculano (Rio de Janeiro, 1840); Defesa de João Guilherme Ratcliff, caso rumoroso que lhe deu notoriedade e associou seu nome ao movimento nativista, ao defender esse português descendente de poloneses, que se envolveu na Confederação do Equador (1824); é, também, autor de uma letra do hino “Ao grande e heroico sete de abril” (1831), considerada fraca, embora musicada por Francisco Manuel da Silva (1795 – 1865).
No entanto, a importância da obra literária de Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva para a literatura piauiense é meramente cronológica, em face de ser considerada fraca e não representar temas, costumes e modus vivendi local. Citando Ronald de Carvalho, afirma João Pinheiro, que esse poeta era “entusiasta admirador de Bocage, filiou-se aos elmanistas, entre os quais muito se distinguiu por diversos trabalhos em que, como quase todos os congêneres da época, sentia-se ainda o influxo dos árcades portugueses”[12]. Para Herculano Moraes, historiador da literatura piauiense, o livro “Poemas é um vasto conjunto de versos da corrente elmanista” com “nítida influência de Bocage, notadamente na construção do soneto, rigorosamente decassílabo”. Acrescenta que a poética desse autor é marcada por temáticas de expressões simbolistas, falando de sofrimento, desengano, desgraça, morte, tristeza, solidão, tortura, desespero, langor e outras expressões sinônimas[13]. É a mesma opinião do crítico literário Francisco Miguel de Moura: “A estética de Ovídio Saraiva era portuguesa, demonstrando forte influência arcádica e acentos bocagianos”[14].
Em ligeiro traço é este o perfil do desembargador Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, o primeiro poeta e escritor nascido na bacia oriental do rio Parnaíba, embora dela, aos prantos, tenha sido arrancado em tenra idade.
[1] * REGINALDO MIRANDA, autor de diversos livros e artigos, é membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI. Atual presidente da Associação de Advogados Previdenciaristas do Piauí. Contato: [email protected]
[2] Nos assentamentos da Universidade de Coimbra, em evidente equívoco, consta que ele era natural de Pernambuco, quando ele mesmo declara em pleito para exercer lugares de letras que era natural da vila de S. João da Parnaíba (PT/AUC/ELU/UC-AUC/B/001-001/S/008498. PT/TT/MR/EXP/051/0245/00044. Ministério do Reino, mç. 888, proc. 44).
[3] CASTELO BRACO, Camilo. A viúva do poeta Ovídio. In: O Paiz, 30.1.1881.
[4] Faleceu na cidade de Recife, onde residia, em 26 de novembro de 1880, sendo a missa de 7º dia celebrada em 2.12.1880 (Jornal do Recife,3.1.2.1880; Diário de Pernambuco, 27.11.1880).
[5] CASTELO BRACO, Camilo. A viúva do poeta Ovídio. In: O Paiz, 30.1.1881.
[6] O Paiz, 30.1.1881; O Conciliador Catharinense, 19.9.1849; O Estado (SC), 24.7.1930.
[7] Faleceu em 26.11.1880, em Recife (Jornal do Recife,3.1.2.1880; Diário de Pernambuco, 27.11.1880).
[8] CASTELLO BRACO, Camillo. A viúva do poeta Ovídio. In: O Paiz, 30.1.1881.
[9] Diário de Pernambuco, 27.11.1880.
[10] Dentre os anúncios constantes no Diário de Pernambuco, de 1834, consta: “Deseja-se falar à senhora d. Umbelina Joana de Vasconcelos, ou seu filho Ovídio Saraiva de Carvalho, para se lhe entregar uma carta vinda da Parnahiba”.
[11] Foi casado com d. Manoela Saraiva de Gondim Neiva (irmã do desembargador da Relação de Pernambuco, Manoel José de Gondim Neiva), falecida em 22.3.1895, no Poço da Panela, com 75 anos de idade, em casa da filha Osória de Miranda: deixou 5 filhos, 15 netos e 7 bisnetos.
[12] PINHEIRO, João. Literatura piauiense. Teresina: 1937.
[13] MORAES, Herculano. Visão histórica da literatura piauiense. 4ª ed. Teresina, 1997.
[14] MOURA. F. Miguel de. Literatura do Piauí, 2001.