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A gente se acostuma com as coisas ficando mais difíceis; a gente acaba não se assustando mais quando o que era mais difícil do difícil fica ainda mais difícil.
J. M. Coetzee
Confesso: eu não o conhecia. Tive de recorrer ao grande oráculo da modernidade, a internet. E aí a vergonha. Tratava-se de um Prêmio Nobel. Prêmio Nobel de Literatura de 2003. O quarto autor africano e o segundo de seu país (África do Sul) a receber essa honraria. Estou falando de John Maxwell Coetzee.
Como não sou uma especialista em literatura, muito menos uma crítica literária, minhas leituras seguem, na maioria das vezes, um padrão meio selvagem. No entanto, estou sempre aberta a sugestões e a qualquer tipo de aconselhamento. Sou selvagem, mas não rebelde, pelo menos no que diz respeito à literatura. Coetzee, por exemplo, foi indicação de uma colega, professora de história que, encantada com a escrita do autor, insistiu em me emprestar um de seus livros. Uma semana depois da nossa conversa, encontrei no meu armário o romance “Desonra”, publicado em 2000 pela Companhia das Letras e ganhador do prêmio Booker Prize de 1999.
O título parece despretensioso. No entanto, já nas primeiras páginas começamos a notar que a complexidade do texto é bem maior do que o nome da obra deixa entrever. O que a palavra “desonra” realmente significa? Vergonha? Opróbrio? Humilhação? Em que nível? Quanto é preciso cair na escala moral para causarmos a desonra de alguém? E se formos nós os desonrados? Um dos grandes méritos do livro é justamente esse: cumular-nos de perguntas, a maioria delas difíceis de responder.
Quando um professor mais velho assedia uma aluna trata-se de um ato desonroso ou apenas um homem querendo sentir-se mais jovem? Pode-se justificar o estupro? E o abate de animais que ninguém quer? Qual a diferença entre um gesto de benevolência e um ato de crueldade? Onde está a linha que separa o certo do errado? Essa linha realmente existe ou ela depende das circunstâncias?
A história começa na Cidade do Cabo, no apartamento de uma prostituta, e termina no interior da África do Sul, em uma clínica para animais. O personagem principal é um professor universitário, vivendo a crise da meia idade com todas as dúvidas e angústias que esse período é capaz de provocar. O envolvimento com uma aluna bem mais jovem complica ainda mais a situação, pois quando o caso é tornado público, ele se vê obrigado a abandonar casa e emprego, para refugiar-se na fazenda de sua única filha. Uma reviravolta completa que o tira da sua zona de conforto e o joga em um universo que até então ele desconhecia, a dura realidade da África do Sul pós-apartheid.
Diferente do que ocorre no filme de Quentin Tarantino – Django Livre – a palavra “negro” nunca aparece. É tudo muito sutil, como se Coetzee tivesse receio de ferir os sentimentos do leitor. No entanto, isso não significa que o preconceito e o ódio racial não estejam presentes. Ao contrário. Há muita raiva e ressentimento envolvidos, e a única válvula de escape é a violência. Uma violência sem sentido, marcada pelo conflito social e o rancor que a miséria e a falta de perspectivas só fazem crescer.
Coetzee, porém, não oferece respostas, e muito menos soluções para todos os conflitos que emergem das páginas de “Desonra”. Ele também não poupa o leitor. A cada parágrafo ele nos exige cada vez mais. Oscilamos entre a certeza de que tudo tem uma explicação razoável e o sentimento de que a qualquer instante o caos pode se instalar na vida dos personagens. É angustiante acompanhar as tentativas do “desafortunado” professor de entender a dinâmica de uma sociedade que vê o homem branco como uma ameaça permanente a sua recém-conquistada, e portanto, frágil, liberdade.

      Confesso que eu também tive, em muitos momentos, dificuldades de entender, talvez porque minha realidade seja em tudo semelhante ao do professor: protegida, resguardada da miséria e da violência. Contudo, Coetzee, em “Desonra”, nos dá a chance de vislumbrar o que significaria ter nosso universo destruído. A reflexão que ele nos sugere não é fácil. Implica colocar-se no lugar do outro, pois só assim seremos capazes de refletir sobre a pergunta que transpassa todo o texto: é possível relativizar a desonra? Leia e encontre a sua resposta. Eu recomendo.