Os Três Poderes e a Sereia Despedaçada
Por Marcelo Martins Eulálio Em: 27/06/2025, às 09H28
Os Três Poderes e a Sereia Despedaçada
[*Marcelo Martins Eulálio]
Antes de tudo, peço licença para uma reflexão que, espero, não seja mal compreendida, embora, confesso, esse tipo de mal-entendido tenha se tornado cada vez mais comum em nossa sociedade. Vivemos tempos em que qualquer análise crítica é vista como ataque, qualquer opinião, como ofensa. A intolerância cresce na mesma medida em que a ignorância política se alastra. Ninguém mais parece disposto a ouvir o outro sem logo empunhar bandeiras, ídolos e ideologias. O debate democrático, tão necessário à saúde da República, tem sido sufocado por paixões cegas e por fanatismos que reduzem a realidade a um “nós contra eles”.
Por isso, convido o leitor a seguir adiante sem paixões, com espírito crítico e olhar cidadão. Ah, o espírito crítico, como faz falta numa sociedade que se pretende democrática. Sem ele, a cidadania se esvazia, e a democracia corre o risco de se tornar apenas um ritual formal, sem alma nem substância. Não se trata aqui de defender partidos, nem de atacar instituições. Trata-se apenas de pensar o Brasil. Porque ele precisa ser pensado. Democraticamente. Urgentemente.
Já faz algum tempo que a harmonia entre os Poderes da República virou lenda, daquelas que se contam em livros de teoria política, mas que não se avistam na realidade. Executivo, Legislativo e Judiciário, que deveriam ser independentes e harmônicos entre si, parecem estar mais para um trio desafinado tentando disputar o microfone e a atenção de uma plateia apática, cada vez mais descrente do espetáculo.
Recentemente, o Legislativo suspendeu os efeitos de decretos do Executivo que aumentavam alíquotas do IOF. Não foi apenas uma derrota política, disseram alguns analistas - foi uma derrota para o país. Para outros, foi só mais um episódio do Congresso legislando em causa própria. Afinal, quem representa quem nesse palco? Temos um Executivo que já não consegue governar e um Legislativo que parece representar a si mesmo. Simpatizantes do governo, inconformados, exigem que o Judiciário reverta a decisão. E, como num jogo de empurra, seguimos.
Enquanto isso, como se não bastasse, o Congresso aprova um projeto de lei complementar que aumenta o número de deputados de 513 para 531, mais cadeiras, mais gastos, mais silêncio da população. Segundo o portal da Câmara dos Deputados, a medida deve gerar um acréscimo de R$ 64,6 milhões anuais aos cofres. Outras estimativas apontam um custo ainda maior. Enfim, haverá um custo e será alto para o país que já sofre com déficits estruturais e serviços públicos precários. Basta lembrar o caso do INSS, recentemente envolvido em um escândalo de fraudes contra idosos, justamente em um dos órgãos mais frágeis da máquina pública, historicamente marcado pela lentidão, pela desorganização e, não raro, por desvios de recursos. Recursos que deveriam ser destinados a uma população vulnerável, que sobrevive com os benefícios do BPC, aposentadorias, pensões, muitas vezes, sua única fonte de sustento. Tudo para cumprir uma decisão do Judiciário que, em tempos recentes, parece ter assumido o papel de maestro dessa orquestra dissonante. Uma correção constitucional? Talvez. Mas o cheiro de conveniência no ar é inegável.
Não me cabe julgar se a política fiscal pretendida ou o aumento no número de parlamentares é, tecnicamente, a escolha mais acertada e esse, aliás, nem é o propósito desta reflexão.
O que verdadeiramente inquieta é a falta de coesão entre os Poderes e o abismo que se aprofunda entre eles e o interesse público. A impressão que fica é a de que as instituições caminham cada vez mais voltadas para si mesmas, enquanto o povo permanece à margem, aguardando, ou já desistindo, de ser prioridade.
O Executivo, por sua vez, já não governa: tropeça em disputas internas e parece cada vez mais refém de sua própria fragilidade política. O Legislativo também não legisla como deveria, ora atua por conveniência, ora em causa própria, muitas vezes distante da vontade popular. O Judiciário já não se limita a julgar. Tem legislado, governado, dado a palavra final sobre praticamente todas as questões, inclusive aquelas que, em um arranjo institucional saudável, deveriam ser resolvidas pelo Legislativo ou pelo Executivo. O Supremo Tribunal Federal, que deveria atuar como guardião da Constituição, tem ocupado um protagonismo cada vez maior, transformando o ativismo judicial em principal condutor das decisões mais relevantes do país, decisões que, muitas vezes, extrapolam os limites da interpretação e avançam sobre o campo da criação normativa e da definição de políticas públicas.
Montesquieu e Locke, que tanto defenderam a separação e o equilíbrio entre os poderes, certamente reviram-se em seus túmulos diante de tamanha dissonância.
E a cidadania? Essa vai ficando para depois. A tão sonhada cidadania plena — civil, política e social, como ensinava José Murilo de Carvalho na clássica obra “Cidadania no Brasil: o longo caminho” — se desfaz aos poucos no compasso das prioridades invertidas. O projeto de uma sociedade livre, justa e solidária vai sendo empurrado para o rodapé da pauta. Erradicar a pobreza? Reduzir desigualdades? Garantir o desenvolvimento nacional? Promover o bem de todos? Não nesta legislatura, talvez nem na próxima.
Há um silêncio que pesa mais que o barulho. É o silêncio do que não se faz. Enquanto as urgências do povo se acumulam — nas áreas da saúde, educação e segurança, principalmente — os três Poderes da República parecem girar em círculos, presos em reuniões intermináveis que pouco ou nada resultam. Fala-se em alinhamento, mas o que se busca, muitas vezes, não é a harmonia em favor do bem comum, e sim o equilíbrio estratégico dos próprios interesses. Um jantar aqui, uma foto ali, uma nota oficial acolá. E o tempo escorre, escorre como esperança escorrendo entre os dedos de quem espera por soluções que não vêm.
Enquanto isso, enquanto o Executivo, o Legislativo e o Judiciário não se alinham, não se entendem, não se respeitam e, sobretudo, não agem conforme os limites e deveres traçados pela Constituição, o povo assiste, ou melhor, sobrevive. E me lembro da canção de Gilberto Gil, como se ele houvesse previsto o enredo: A novidade que seria um sonho, o milagre risonho da sereia... virava um pesadelo tão medonho... ali naquela praia, ali na areia... A sereia da democracia está sendo estilhaçada. Uma parte para o Executivo, outra para o Legislativo, outra para o Judiciário. E o povo, esfomeado, despedaçando o sonho.
Oh, mundo tão desigual… Tudo é tão desigual... De um lado esse carnaval, de outro, a fome total.
*Marcelo Martins Eulálio é advogado, professor universitário e Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí.