Os rastros que deixamos
Em: 03/11/2006, às 13H30
Todos deixamos rastros ao longo da vida. Deixamos rastros nos objetos, nos lugares, na memória de outras pessoas. Rastros de luz. Ou rastros de gosma.
Um detetive não terá dificuldades para descobrir quem fomos e o que fizemos.
Visitamos alguém, e na casa visitada deixamos nossos rastros. Cinzas de cigarro, palavras cujo som ainda vibra na sala de estar, o calor de nosso corpo no sofá.
Em nossa cama deixamos rastros. Rastros dos sonhos que sonhamos, rastros que denunciam com quem dormimos, rastros da insônia que sofremos em solidão.
Finda a refeição, na mesa deixamos nossos rastros. Da gula que nos venceu, deixamos vestígios do prato não apreciado, rastros do pão generosamente dividido, do leite derramado, migalhas, grãos.
Uma amizade deixa rastros. Conselhos inteligentes ou inúteis, gargalhadas sem fim, lágrimas por enxugar, passeios no final de semana, confidências, elogios sinceros, projetos em comum.
Lemos um livro. No livro lido (ainda que nem sempre inteiramente) deixamos nossos rastros. Uma frase sublinhada. Uma passagem inesquecível. Uma folha mal virada. O livro manuseado guarda em suas linhas a nossa leitura.
Trabalhamos em alguma empresa, e nela deixamos rastros: idéias e sugestões interessantes, reputação (boa ou má), contatos, brigas, tédio, troca de experiências.
Viajamos por aí, fomos conhecer outras paragens. Fotografamos paisagens. Guardamos imagens. Trazemos na bagagem um pouco do que vimos. E rastros nossos, nossas surpresas, nossa moeda, nossos passos deixamos nos lugares de turismo.
Pela internet navegamos. Deixamos nossos rastros nos sites descobertos. E-mails distribuímos. Em blogs deixamos comentários. Nossas pegadas ficam eletronicamente registradas. Sabem quem somos, contabilizam o tempo gasto antes do novo clique do nosso mouse.
Escrever é deixar rastros. Rastros voluntários. Parágrafos, estrofes, vírgulas. O autor de um livro é autor de rastros concentrados no objeto que o leitor vai folhear. Escrevemos na areia da praia, as ondas cobrem o poema fugaz. Mas sempre fica um traço, um indício, algum sinal permanece, alguma referência na lembrança, corrente de vento ventando na distância.
Viver é deixar rastros. A morte e seu cão farejador vêm em nosso encalço. Procuram pistas. Querem descobrir nosso paradeiro, nosso esconderijo.
Deixamos rastros nas paredes, nas calçadas, na fisionomia dos nossos filhos. Pedaços minúsculos de nós se desprendem de nós. No meio da multidão deixamos rastros do que somos, de nossa individualidade indivisível.
Deixamos rastros. Nossos rastros de gosma. Ou de luz.
Gabriel Perissé é doutor em educação pela USP e escritor